Ao contrário de Citizen Kane, os repórteres decifraram o segredo de Balsemão

22 out, 19:05
Francisco Pinto Balsemão, por Ricardo Faria Paulino

CRÓNICA || O país deve a Francisco Pinto Balsemão vírgulas, luz e contraditório. Mas ele não era perfeito, nenhuma pessoa o deve ser

A notícia chegou como um vidro a estalar no inverno. 

Alguém soltou da mão um pequeno globo de neve, ele bateu no chão e ficou a girar, devagar, até parar. Na televisão repetiam o nome como se fosse uma palavra-passe para abrir uma redacção antiga: Francisco Pinto Balsemão. Francisco Pinto Balsemão morreu. Morrer é também isto — um eco de tipografia nas casas onde ainda se guardam recortes em caixas de sapatos. Havia 88 invernos naquele globo, e dentro dele, ao invés de uma casinha alpina, eu via uma redação com carpetes gastas, cinzeiros espessos, o cheiro ácido do chumbo e um semanário a nascer contra a corrente. Vi também um estúdio de televisão a acender a primeira lâmpada privada do país e um primeiro-ministro que, por um par de anos, tentou governar as sombras e as luzes de uma democracia adolescente.

A comparação impôs-se sem esforço: Citizen Kane. 

Não por pobreza de imaginação, mas porque há vidas que se escrevem com esse arco clássico do rapaz que aprende a amar o poder como quem aprende a falar — e depois passa o resto da vida a tentar traduzir o que não cabe em idioma nenhum. Em Orson Welles, Kane larga um trenó e passa a vida inteira a persegui-lo; em Lisboa, Balsemão ergue jornais e antenas, faz e desfaz governos, preside a conselhos e consórcios, e no fim talvez volte ao mesmo ponto — a uma palavra que o perseguiu desde o primeiro editorial: liberdade.

*

Primeira cena: noite de outubro, o elevador trava a meio piso, uma vizinha diz “ouviu?” sem dizer o quê. Respondo que sim. Em casa acendo o telemóvel e fico a ver, como quem observa peixes num aquário, as manchetes a nadar: fundador, primeiro-ministro, patrão dos media, patriarca, figura. Há substantivos que nascem para vigiar os mortos. 

Eu penso no jornalista, antes de tudo. No gesto de quem abre a página em branco e decide que o país cabe ali, num título, num lead seco, na fotografia que segura o olhar. Penso no país a sair de uma ditadura e a tropeçar nos próprios pés e num semanário de sábado que ensinou a ler com a pressa certa: devagar.

Segunda cena: volto a Citizen Kane como quem regressa à casa onde uma vez fui feliz. A câmara entra pelo palacete de Xanadu e o velho magnata deixa cair o globo na escada:

“Rosebud”, sussurra. 

A palavra sussurrada que empurra o filme todo — “Rosebud” — e aquele travelling final sobre o império do homem que colecionou tudo e ficou com um vazio perfeito ao centro. O resto é um filme sobre o rumor: ninguém sabe o que quer dizer a palavra, toda a gente tenta adivinhá-la. 

Talvez tenhamos passado décadas a adivinhar a palavra de Balsemão. Uns dirão “poder”, outros “classe”, outros “modernidade”. Eu diria “porta”. Uma porta que ele abriu — por convicção, por cálculo, por teimosia — para que a imprensa portuguesa respirasse ar frio e fizesse perguntas com os sapatos sujos da rua. Há portas que não fecham quando o homem morre; ficam encostadas, com a maçaneta morna, como se de dentro viesse ainda o ruído das rotativas.

*

No romance americano, Kane compra jornais para fazer do mundo a sua manchete. Em Lisboa, Balsemão fundou um semanário para que a manchete não voltasse a ser do mundo dos censores. Mais tarde acendeu uma televisão para que a pluralidade tivesse luz própria, num país habituado à monocromia. 

O magnata de Welles reúne estátuas e zoos privados; o nosso colecionou, com um certo desdém aristocrático e o pragmatismo de um contabilista, o que interessa: talento. Vozes, cabeças, espinhas dorsais. E também, sim, poder — porque não vale a pena pintar de água onde há tinta permanente. O poder gosta de estar perto do poder e em Portugal, como em qualquer lugar, os telefones tocam em circuitos fechados onde a amizade e a conveniência falam pelo mesmo auricular. Balsemão conhecia o dicionário completo. Escreveu-lhe várias entradas. 

“Mas e os defeitos?”, pergunta um leitor que ainda não existe e já me acusa de condescendência. 

Estão no filme inteiro: a distância às ruas quando o vidro dos gabinetes é grosso; o risco de confundir influência com missão; o paternalismo elegante que embala e impõe; a tentação, em todos nós, de chamar liberdade ao que coincide com a nossa vontade. 

Há uma solidão nos homens que dão nome a edifícios — uma solidão tecida de convites, louvores e lugares à mesa — que Welles filmou sem piedade. A certa altura, Kane já não é um homem: é um eco dentro de uma cúpula onde os outros falam baixo. Também por cá, imagino, terá havido noites insones a ouvir o país pela televisão da própria casa, com a sensação de que os factos entram sempre pela janela errada.

Ainda assim, quando penso no balanço, volto ao globo de neve estilhaçado no chão. Cada floco é uma capa que abriu um tema, um debate, um processo; um estúdio que esticou a voz dos outros, com falhas e brilhos, como se deve; uma redação que aprendeu a crescer no fio da navalha entre os números das audiências e a ética que não se mede. E volto ao primeiro-ministro de passagem, ao homem que teve de amarrar o barco num mar que ainda não tinha âncora e que depois regressou à sua oficina preferida: o ofício de montar histórias, de escolher os verbos, de gerir silêncios.

Há biografias que nos pedem inventário — cargos, datas, condecorações — e há outras que pedem imagem. Fico com esta: uma sala de montagem onde se decide a ordem das peças, o país do lado de fora à chuva e o velho diretor que levanta um dedo quando alguém propõe um atalho. A palavra é “não” e o “não” é uma forma superior de liberdade. Noutras manhãs terá dito “sim” onde devia ter dito “talvez”; não há crónica póstuma sem as sombras do caráter. Mas não confundamos o homem com os quadros da parede: porque é sempre fácil fazer moral em dias de luto, difícil é manter a porta aberta quando a borrasca é nossa.

No fim de Citizen Kane, os repórteres nunca decifram “Rosebud”. Nós, sabendo o segredo, guardamos o pudor de não o revelar ao mundo. Com Balsemão, não vale a pena procurar brechas no sótão: o seu trenó esteve sempre à vista. Chamou-se Expresso, chamou-se SIC, chamou-se um certo modo de estar nas salas onde a política e a imprensa se tocam sem se devorarem. 

Talvez tenha sido também um barco no Tejo, um fim de tarde em Cascais, uma pilha de livros por sublinhar. Não precisamos de queimar nada para entender: basta olhar para as redações que hoje, entre erros e acertos, continuam a entrar pelas casas às sextas e a acender luzes às oito da noite.

Quando a vizinha me perguntou “ouviu?”, eu apenas acenei. Agora, manhã, desço as escadas, contorno a cidade até Queluz de Baixo — noutros tempos contornei até à Carnaxide da SIC, até à Laveiras do Expresso e depois também da SIC —, e juro que ainda escuto o rumor das rotativas que nunca ouvi. No chão, invisíveis, os cacos do globo de neve continuam a brilhar. Lá dentro, confunde-se a neve do cinema com a poeira do arquivo. 

A morte é isso: um plano-sequência que nos devolve à primeira cena. E a primeira cena, no caso dele, foi abrir uma porta. A palavra que ficou a pairar — a que persegue os vivos e acompanha os mortos — não é Rosebud. É outra, mais nossa, mais difícil e mais urgente. 

Liberdade.


A fotografia de Francisco Pinto Balsemão abaixo pertence à coleção "Retratos da República", do fotógrafo Ricardo Faria Paulino. 

Relacionados

País

Mais País