Sarkozy fala em ‘caça às bruxas’, mas o verdadeiro feitiço é outro: o ódio contra os juízes que ousam ser livres
Há séculos, Montesquieu advertiu-nos de que a liberdade estaria perdida se o poder de julgar se confundisse com o de governar ou legislar. Era uma ideia simples, quase óbvia, mas revolucionária: só a separação dos poderes impede que a justiça se transforme em instrumento de vingança.
Hoje, ao ver os magistrados que condenaram Nicolas Sarkozy a serem ameaçados e insultados por cidadãos enfurecidos, é inevitável imaginar Montesquieu a dar voltas na tumba. Porque o que está em causa já não é apenas uma sentença, nem sequer um antigo presidente: é o próprio coração da República e o respeito pela lei.
À saída do tribunal, Sarkozy declarou-se vítima de “ódio” e de uma “caça às bruxas”. O paradoxo é gritante: um homem julgado por corrupção e tráfico de influências transforma-se, no discurso público, em mártir da justiça. Assim, a retórica da vitimização substitui a responsabilidade, e a emoção suplanta o direito.
Não pretendo, contudo, pronunciar-me sobre a bondade jurídica do acórdão — e sim, é um acórdão, proferido por um coletivo de juízes. Seria imprudente fazê-lo fora dos autos, até porque qualquer opinião isolada corre o risco de se tornar tendenciosa. Ainda assim, há um ponto que desperta a reflexão de qualquer jurista: de entre as quatro acusações formuladas — corrupção passiva, financiamento ilegal de campanha, desvio de fundos públicos e association de malfaiteurs (associação de malfeitores) —, as três primeiras caíram. Restou apenas esta última, que serviu de base à condenação. E quem trabalha diariamente na barra dos tribunais sabe: quando todos os outros fundamentos ruem, a “associação criminosa” tende a tornar-se o derradeiro refúgio da acusação.
No dia 25 de Setembro de 2025, o tribunal coletivo condenou Nicolas Sarkozy a cinco anos de prisão, com execução provisória e mandato de depósito diferido, no âmbito do chamado “caso líbio”, relativo ao alegado financiamento ilegal da sua campanha presidencial de 2007. O tribunal decidiu que a pena seria aplicada mesmo em caso de recurso.
Menos de um mês depois, a 21 de Outubro de 2025, o antigo chefe de Estado entregou-se na prisão de La Santé, em Paris, para começar a cumprir a pena. Está alojado numa ala especial, separado dos restantes reclusos, devido ao seu estatuto e às ameaças de que tem sido alvo.
Do meu ponto de vista — e seguramente do de muitos cidadãos franceses e não só —, é naturalmente chocante ver um antigo Presidente da República de França entrar num estabelecimento prisional. No entanto, é preciso sublinhar que esta decisão foi tomada não por um juiz isolado, mas por três juízes, ou seja, por um tribunal coletivo que o julgou e condenou de forma colegial. Importa também recordar que, do ponto de vista jurídico, mesmo tendo sido condenado e privado da liberdade, Sarkozy continua a beneficiar da presunção de inocência, uma vez que vai recorrer e a decisão ainda não transitou em julgado.
Não se podem confundir as duas coisas. Sarkozy diz que é “uma vergonha para a França”, mas o que seria verdadeiramente vergonhoso seria se a França deixasse de julgar um cidadão apenas porque ele foi Presidente da República. A justiça não julga cargos nem biografias: julga factos. Nicolas Sarkozy é, antes de mais, um cidadão como os outros — que por mera coincidência foi também Presidente da República.
Em França, existe a chamada exécution provisoire da condenação, determinada pelo mandat de dépôt, que permite o cumprimento imediato da pena mesmo antes do trânsito em julgado. Em Portugal, pelo contrário, o recurso com efeito suspensivo impede a execução da pena enquanto o processo estiver pendente. São dois modelos distintos, mas ambos legítimos dentro dos seus sistemas jurídicos.
Mas — e é aqui que reside o essencial — essa diferença técnica nunca pode justificar o ódio. A liberdade de julgar é tão sagrada quanto a liberdade de pensar. Um juiz que decide em consciência não deve temer a multidão. Porque se os magistrados forem silenciados pelo medo, a justiça deixa de ser poder e passa a ser refém.
Sarkozy fala de ódio, mas o verdadeiro ódio é o que se dirige àqueles que ousam aplicar a lei. É o ódio contra a ideia mesma de justiça independente — aquela que resiste às pressões, que não se ajoelha diante do carisma ou da popularidade. Essas ameaças não são apenas ataques pessoais: são feridas abertas no Estado de Direito. Se normalizadas, podem destruir as instituições democráticas e corroer o próprio alicerce da República.
A França, que tanto se orgulha de ser a pátria dos Lumières, deveria lembrar-se de que sem juízes livres não há luz alguma, apenas sombras. E quando os magistrados precisam de proteção policial para cumprir o seu dever, é sinal de que a República já treme.
Montesquieu não acreditaria no que vê. Mas talvez ainda sorrisse, com melancolia, ao perceber que o seu aviso permanece atual: o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente — e a justiça, quando é atacada, continua a ser o último reduto da liberdade.