O Telegram tornou-se uma arma de guerra. E os franceses acreditam que é também uma arma de crime. O fundador da app nasceu na Rússia, também é francês e teve de pagar cinco milhões para ficar numa espécie de liberdade. Enquanto isso, quem está na frente da guerra pelo lado russo - e quem não está na frente mas é favor dela - está preocupado. Muito preocupado
É raro por estes dias ter dissidentes russos e propagandistas do Kremlin alinhados sobre o que quer que seja. Mas foi precisamente isso que aconteceu quando Pavel Durov, o fundador e CEO do Telegram, foi detido pela polícia francesa sob mandado judicial no sábado à noite, no aeroporto Paris-Le Bourget, ao regressar de uma viagem ao Azerbaijão.
No rescaldo da detenção do bilionário russo, críticos e apoiantes do regime de Vladimir Putin alinharam-se momentaneamente num coro de condenações, ecoando um sentimento generalizado de uma ponta à outra do espectro político e social – e não apenas no país.
Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, disse que Moscovo está em prontidão “para garantir toda a assistência e apoio necessário” ao seu cidadão, ainda que tenha admitido que se trata de uma situação delicada dado que Durov também tem nacionalidade francesa.
Opositores como Ilyia Yashin também saíram em sua defesa. “Não considero que Pavel Durov seja um criminoso e espero que seja capaz de provar a sua inocência em tribunal.”
O comentário de Yashin foi publicado na rede social X, cujo fundador, Elon Musk, também veio criticar a detenção do empresário, recorrendo à hashtag #FreePavel. “A detenção de Durov é um ataque aos mais básicos direitos humanos de expressão e associação”, acrescentou Edward Snowden na mesma rede. “Estou surpreendido e profundamente entristecido que Macron tenha descido ao nível de fazer reféns como meio de ganhar acesso a comunicações privadas. É de baixo nível não apenas para a França, mas para o mundo.”
“A ação do governo francês é uma ação ad hoc, provavelmente com motivações de proteção da sociedade, até porque os franceses têm assistido a ações terroristas brutais”, diz à CNN o especialista em cibersegurança José Tribolet, fundador e ex-presidente do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores do Instituto Superior Técnico (INESC-IST).
“O direito à privacidade e a podermos ter comunicações devidamente encriptadas e protegidas é um direito importantíssimo que é preciso preservar”, adianta Tribolet. “Mas, por outro lado, o direito da sociedade a perceber e travar atividades criminosas que podem trazer grandes prejuízos também existe.”
Foi esse o argumento apresentado por Emmanuel Macron dias depois da detenção de Durov, quando perante o amontoar de críticas veio garantir (novamente no X) que a ação das autoridades não teve qualquer motivação política. “Nas redes sociais, como na vida real, as liberdades são exercidas dentro dos limites da lei”, disse o presidente francês na terça-feira à noite, depois de o Ministério Público ter adiantado que Durov tinha sido detido no âmbito de uma investigação a alegados crimes relacionados com abuso sexual de crianças, transações ilícitas por grupos de crime organizado, fraude e pela não colaboração com as autoridades nas investigações a esses crimes.
Presente a um tribunal de Paris na quarta-feira, Pavel Durov pagou cinco milhões de euros para sair em liberdade enquanto aguarda julgamento por ter “permitido atividades criminais” na aplicação que fundou e dirige. Até lá, não está autorizado a sair de França e tem de se apresentar na esquadra duas vezes por semana. É a primeira vez que o CEO de uma grande tecnológica enfrenta acusações criminais.
Os media russos falam em “hipocrisia” de um Ocidente que se diz defensor da liberdade de expressão e têm teorias como a de que as autoridades francesas orquestraram a operação com outras secretas ocidentais para, em conjunto, acederem às “chaves” do Telegram - ou seja, a conversas privadas e a dados de milhões de cidadãos russos.
“Todos os que estão habituados a usar a plataforma para conversas sensíveis devem apagá-las de imediato e não mais voltar a tê-las. Durov foi levado para eles obterem as chaves – e ele vai entregá-las”, escreveu Margarita Simonyan, diretora do canal russo RT, no próprio Telegram.
Fontes citadas pelo Baza, outro canal no Telegram com ligações ao aparelho securitário russo, garantem que o Ministério da Defesa, empresários proeminentes e funcionários de várias agências estatais foram instruídos a apagar todas as mensagens relacionadas com trabalho assim que Durov foi detido.
“É muito difícil traçar um limite entre o direito à privacidade e o direito à segurança”, destaca José Tribolet, “mas quem tem responsabilidades de proteger a sociedade – e estou a admitir boa-fé das entidades francesas – tem de tomar medidas”.
Depois de as autoridades russas terem tentado encerrar a aplicação entre 2018 e 2020, foi no contexto da invasão em larga escala da Ucrânia há dois anos que a app se transformou numa das maiores armas de guerra e de propaganda russa – como referia a Time em 2022, “o campo de batalha digital” por excelência da guerra em curso.
“A Rússia montou um esquema de desinformação que remonta ao tempo do Wagner, foi aliás Prighozin que a montou, chamavam a esse esquema quinta de trolls, em que milhares de indivíduos injetam permanentemente mensagens em todas as redes sociais na internet de acordo com os interesses russos”, explica o tenente-general Marco Serronha.
“O Telegram permitiu-lhes articularem-se para não serem sujeitos a filtros como os das redes sociais ocidentais, que, face a desinformação verificável, apagam comunicações”, adianta o especialista militar. “Há utilizadores que têm canais com 150 mil, 160 mil seguidores, e algumas mensagens saem do Telegram e passam para outras plataformas online. É uma capacidade de replicação imediata, através de uma plataforma relativamente segura, que não interrompe as mensagens que querem passar.”
E esse tem sido o caso com os estrategos militares e políticos russos mas também ocidentais, reforça Marco Serronha. “Muita da informação que vamos obtendo sobre a guerra é em canais russos do Telegram, distinguindo aquilo que é propaganda do que é informação verídica, o que às vezes não é fácil. Além de informação sobre atividades militares, também é muito usado pelos serviços de informação, quer russos quer ocidentais. As próprias agências e analistas ocidentais utilizam-na para tentarem perceber o que se está a passar, dá para ter uma ideia de como está o moral e, por assim dizer, o mood na Rússia.”
Mas tudo isto tem lugar num “enorme vazio”, destaca José Tribolet. “Com o Telegram, como com outras redes sociais, não temos ordenamento legal nem mental e, como em tudo, a aplicação pode ser bem usada ou mal usada, como aliás se vê quando forças ditatoriais fecham redes e canais de comunicação tal como fecham jornais e punem jornalistas”, refere o especialista em cibersegurança. “Ao nível do que existe no espaço virtual e das ações que lá se praticam, a capacidade de, enquanto sociedade, termos alguma autoridade e alguma governança ainda não existe.”
Com uma fortuna avaliada pela Forbes em cerca de 14 mil milhões de euros, muito graças à aplicação que lançou e que hoje conta com mais de 950 milhões de utilizadores, não foi há muito tempo que Durov surgiu nos media ocidentais a explicar a sua decisão de abandonar a Rússia há uma década.
No início do ano, numa conversa com o apresentador norte-americano Tucker Carlson (o mesmo que, em fevereiro, fez esta entrevista a Vladimir Putin), o CEO do Telegram disse que decidiu fugir do país-natal em 2014 face à pressão da secreta russa FSB para aceder a contas de ativistas pró-Ucrânia no VKontakte, à data a mais popular rede social da Rússia.
Descrito por alguns como um magnata solitário, Durov garante que se recusou a colaborar com as autoridades, tendo vendido as suas ações na VKontakte ao Estado russo antes de fugir para o Dubai, nos Emirados Árabes Unidos (EAU), onde vive até hoje, fazendo dele caso raro de um magnata do setor tecnológico que ousou desafiar as autoridades russas.
“Há mensagens díspares sobre isto. Diz-se que Pavel pode ter feito o jeito ao fechar alguns canais, mas sabemos que acabou mesmo por entrar em litígio com o Kremlin, altura em que saiu da Rússia”, explica o tenente-general Marco Serronha.
Díspares são também as informações sobre o exílio autoimposto de Durov no Dubai, a partir de onde, aos 28 anos, lançou o Telegram com o irmão Nikolai – também ele procurado pelas autoridades francesas. Durov diz que se tornou um pária na Rússia mas, dois dias depois de ter sido detido, surgiram informações de que visitou o país-natal mais de 60 vezes desde que se mudou para os EAU.
A notícia foi avançada pelo Kremlingram, um grupo ucraniano que faz campanha contra o uso do Telegram na Ucrânia, com base num documento que lhe foi enviado anonimamente em dezembro de 2023 com informações sobre as entradas e saídas de Durov entre 2015 e 2021.
O grupo diz que, “durante muito tempo, não foi possível confirmar a autenticidade dos dados”, até terem sido corroborados numa recente fuga de informação do FSB, divulgada pelo site independente russo Meduza.
Lançado por Durov sob o princípio da total privacidade dos seus utilizadores, o Telegram foi mais longe do que apps rivais, criando “canais” que permitem a qualquer pessoa ou organização fazer chegar todo o tipo de informação a um enorme número de seguidores. Mas as notícias de visitas do seu CEO ao país de onde alegadamente fugiu alimentam dúvidas sobre essas garantias de privacidade, sobretudo tendo em conta como tem sido usada pela Rússia no contexto da guerra na Ucrânia.
“O Telegram, que chegou a ser considerada a rede mais segura e indecifrável do mundo, não tem filtros de nenhuma natureza. Quem quer utilizar utiliza para o que quiser e isso aplica-se a redes de crime organizado e às campanhas de desinformação russas”, refere Marco Serronha. “Estando sediada em servidores russos, em alguns servidores na China e noutros sítios aos quais não é fácil aceder, os franceses até podem prender o seu dono, mas só o Kremlin pode eliminar a plataforma se assim o entender.”
Pelas suas garantias de encriptação e privacidade, o Telegram ganhou popularidade também entre detratores e dissidentes russos, incluindo ativistas e jornalistas no exílio, sobretudo face ao adensar da repressão da sociedade civil desde 2022. Com o encerramento de meios de comunicação social e a proibição de redes sociais com sede no Ocidente, a aplicação transformou-se numa ferramenta essencial para contornar as mordaças do regime.
“O potencial colapso do Telegram, que no início de 2023 correspondia a até 80% do total de tráfego de mensagens na Rússia, pode ter um impacto profundo na sociedade russa”, escrevia quarta-feira o Guardian – inclusivamente nos esforços de guerra do Kremlin. “Um grupo particularmente preocupado com a detenção de Durov é o exército russo, a par de um conjunto de bloggers e de jornalistas pró-guerra que ganharam destaque com a cobertura do conflito no Telegram”, refere o mesmo jornal.
A popularidade do Telegram não se cinge às fronteiras russas. A app conta com adeptos na Ucrânia, ainda que muitos optem mais pelo rival Signal, outra aplicação de mensagens encriptadas, e de outras partes do mundo. E entre os fãs conta-se o próprio presidente francês.
Num artigo intitulado “Macron adora o Telegram. Os juízes franceses odeiam-no”, o Politico diz que o chefe de Estado é um “utilizador ávido” da aplicação desde os tempos da sua campanha presidencial, há quase uma década, e destaca que a plataforma é hoje usada em França “de forma abrangente quer por membros do Governo, quer por políticos de todos os escalões e de todos os partidos, particularmente nos círculos pró-Macron”.
Uma fonte judicial citada pelo jornal diz que os gestores da plataforma online estavam há muito a causar frustração às autoridades francesas pela sua recusa em cooperar com investigações a crimes como pornografia infantil e tráfico de droga – “eles irritaram-nas com a recusa do Telegram em dar respostas sobre ficheiros sujos”.
O artigo foi publicado horas antes de o Wall Street Journal noticiar em exclusivo que, num almoço em 2018, Macron tentou convencer Pavel Durov a mudar a sede do Telegram para Paris (segundo o francês Le Monde, apenas um de vários encontros entre o presidente e o empresário russo antes de 2021, quando lhe foi concedida a nacionalidade francesa).
Esse almoço ocorreu um ano depois de os serviços de informação franceses, numa operação conjunta com os Emirados Árabes Unidos, terem hackeado o telefone de Durov sob o argumento de que a app estaria a ser usada pelo autoproclamado Estado Islâmico para orquestrar atentados terroristas.
“É evidente que tudo isto toca em interesses legítimos normalmente conflituantes em determinados contextos – os interesses da liberdade de expressão e o direito à privacidade individual e das organizações, e o interesse da sociedade em proteger-se e defender-se, de proteger pessoas e instituições perante atividades criminosas”, refere o ex-presidente do INESC.
Este, diz José Tribolet, “é um problema tão velho como a humanidade” – só que atualmente a humanidade ainda não tem enquadramento para a vida no espaço virtual. “O que hoje não temos é uma autoridade, também ela vigiada e democraticamente controlada, que atue como se atua no espaço físico – que diga a uma organização com comunicações encriptadas que há uma circunstância especial e que, por isso, tem de se aceder a essas comunicações. Quando as forças de segurança fazem escutas ou revistam uma casa, esses processos são regulados pela lei – são ações que vão contra o direito à privacidade porque outro direito se impõe a esse.”
Segundo o Wall Street Journal, não há indicações de que o encontro de Durov com Macron em 2018 esteja relacionado com a detenção desta semana, que se baseia no mesmo argumento usado há um ano por um tribunal do Brasil para bloquear o Telegram no país – a app não forneceu informações suficientes às autoridades numa investigação a grupos neonazis.
Após a detenção do CEO em França, o Telegram disse que a sua moderação de conteúdos “está enquadrada nos padrões da indústria e constantemente a ser melhorada” e, numa referência velada ao Regulamento dos Serviços Digitais (RSD) aprovado pela União Europeia em 2022, garantiu que cumpre a legislação comunitária à risca.
“A ação penal não faz parte das potenciais sanções em caso de violação do RSD”, veio assegurar uma fonte da Comissão Europeia de imediato. “O RSD não define o que é ilegal nem estabelece qualquer infração penal, pelo que não pode ser invocado para detenções. Apenas as leis nacionais [ou internacionais] que definem uma infração penal podem ser invocadas.”
No mesmo comunicado, o Telegram disse ser “absurdo alegar que a plataforma ou o seu proprietário são responsáveis por abusos cometidos nessa plataforma”, assegurando aos seus quase mil milhões de utilizadores que pretende resolver a situação rapidamente.
“A questão sobre se o criador é ou não responsável é engraçada”, refere José Tribolet. “Uma pessoa faz uma ponte sobre um rio sem os devidos cálculos estruturais, sem os devidos avisos, e um dia passa por lá um camião mais pesado e a ponte cai e pessoas morrem. A pessoa que construiu a ponte é responsável ou não? A legislação hoje diz que é óbvio que é. Claro que isso não iliba os tipos que fazem mau uso da ponte, mas a pessoa que a criou daquela forma, sem mecanismos para proteger a sociedade, também tem responsabilidades.”