Pela primeira vez em mais de 60 anos, o parlamento francês derrubou um executivo. Com a Constituição a impedir novas legislativas antes de julho, e Barnier indisponível para ficar no cargo interinamente, o presidente tem de nomear uma nova figura para chefiar um governo de gestão que, no imediato, consiga fechar um orçamento para 2025. Macron diz que não se demite, mas até entre os centristas há já quem o exija - exatamente o que motivou as moções de censura dos partidos de Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, dizem os analistas
Era um frágil Governo aquele que Michel Barnier encabeçava em França após ter sido nomeado por Emmanuel Macron no rescaldo das eleições antecipadas de julho, nas quais nenhum partido conseguiu maioria para formar Governo. E esta quarta-feira, após semanas de tensões e mais de quatro horas de debate parlamentar, confirmou-se o seu colapso.
Antes da votação, o primeiro-ministro dirigiu-se aos deputados para repetir avisos que foi fazendo ao longo das últimas semanas de querelas políticas sobre o Orçamento do Estado para 2025. A realidade financeira de França, apontou, terá de ser confrontada por qualquer Governo, independentemente da sua cor política, e com o país a pagar agora 60 mil milhões de euros de juros sobre a sua dívida, "mais do que o orçamento da Defesa ou da Educação", é preciso um OE que aperte o cinto.
"A realidade não vai desaparecer como que por magia com uma moção de censura", sublinhou Barnier. "Aquilo de que estou certo, aquilo que vos digo com gravidade, é que esta moção vai tornar tudo mais sério e mais difícil."
É a primeira vez desde 1962, quando o Parlamento francês derrubou George Pompidou, que um Governo cai na esteira de uma moção de censura – e há uma primeira grande lição a tirar deste colapso, refere à CNN Julien Hoez, editor do The French Dispatch e especialista em geopolítica.
“A política interna de França está efetivamente à mercê da decisão que Macron tomou de convocar eleições antecipadas [na sequência das europeias de junho] e da carnificina resultante dessa decisão", diz o analista francês. "Mas a realidade é que a instabilidade política se deve ao comportamento de dois partidos extremistas – o França Insubmissa (LFI), liderado por Jean-Luc Mélenchon, na extrema-esquerda, e o Reagrupamento Nacional (RN), de Marine Le Pen, na extrema-direita.”
Na última noite, num discurso transmitido pela televisão estatal, o primeiro-ministro francês tinha referido que continuava aberto a debater a proposta de Orçamento com Le Pen e com a Nova Frente Popular (NFP, coligação de esquerda que integra o LFI) na tentativa de evitar o colapso governamental, dizendo-se seguro de que ia sobreviver à moção.
“Tudo depende dos deputados, cada um tem uma quota-parte de responsabilidade para com os franceses, para com os eleitores, e para com França também, que enfrenta um momento muito sério”, disse Michel Barnier. “Há muita tensão, muitos sentimentos de injustiça, muitos sentimentos de raiva. Temos de ter cuidado.”
Como apontava a Reuters esta manhã, há quem, até no centro-direita que Barnier representa, diga que está na hora de o Presidente Macron se demitir para desbloquear a situação de crise – uma posição que é sustentada pelos partidos mais à esquerda e mais à direita. Mas para o chefe do Governo esse não é o caminho, como disse ontem, “ele é um dos garantes da estabilidade do nosso país”.
Já Macron, que ao contrário do primeiro-ministro não pode ser deposto pela Assembleia Nacional, garantiu ontem que vai “honrar com toda a energia a confiança” que nele foi depositada “até ao último segundo” do seu segundo mandato – ou seja, até meados de 2027, para quando estão marcadas as próximas eleições presidenciais. A promessa foi feita a partir da Arábia Saudita, de onde voltou ao final do dia para lidar com a crise institucional do seu país, aterrando em Paris à hora em que os deputados votavam as moções de censura.
“Ambos os líderes políticos, Mélenchon e Le Pen, estão a tentar ativamente usar a atual instabilidade para promover a sua agenda política e esperam poder manipular os acontecimentos para derrubar o próprio Presidente e forçar eleições presidenciais enquanto ainda estão em posições de força”, refere Julien Hoez.
“Mélenchon teme que o Partido Socialista se torne mais poderoso e se sobreponha ao França Insubmissa, enquanto Marine Le Pen está a tentar evitar a potencial proibição de cinco anos da vida política que poderá resultar da investigação sobre o desvio de fundos pelo seu partido no Parlamento Europeu.”
Ainda assim, e em última instância, os grandes perdedores estão à vista, adianta o analista. “A instabilidade em curso pode ter impacto no apoio a todos os partidos envolvidos, há uma exasperação geral a começar a infiltrar-se mesmo entre os militantes políticos mais obstinados com quem falo regularmente”, refere Hoez, que considera que “alguns estrategas partidários estão a fazer os cálculos errados” quanto ao que poderá acontecer nas próximas legislativas antecipadas.
“Em última análise, contudo, o maior perdedor será Michel Barnier, que passará a ser conhecido como o primeiro-ministro com o mandato mais curto em França, seguido de Emmanuel Macron, que será responsabilizado por este resultado.”
Uma dupla urgência
Uma das raízes da atual crise política é a proposta de Orçamento apresentada por Barnier para fazer face a uma pericliante situação económico-financeira. Na semana passada, as taxas de juro da dívida francesa ultrapassaram as da Grécia e atingiram o valor mais elevado face à Alemanha desde a crise da Zona Euro há 12 anos, aumentando o nervosismo dos mercados – e do resto das economias europeias.
Como apontou então à CNN o economista francês Andreas Eisl, do Instituto Jacques Delors: “Enquanto Grécia e Portugal estão atualmente em forte desendividamento – a Grécia está a reduzir o nível de dívida para 142,7% em 2026 e Portugal para 90,5% o mesmo período – prevê-se que os níveis da dívida francesa aumentem de 112,7% para 117,1% nos próximos dois anos, mesmo que o atual Governo consiga pôr em prática os seus planos orçamentais – e esta situação orçamental é exacerbada pela crise grave no sistema político francês.”
Para fazer face a isto, Barnier apresentou uma proposta de Orçamento que prevê cortes na despesa de 40 mil milhões de euros e aumentos de impostos de 20 mil milhões, numa altura em que a carga fiscal em França já representa 45% do PIB e quando se prevê que o défice vá situar-se nos 6,1% do PIB este ano, mais do dobro do limite de 3% imposto por Bruxelas. E perante a intransigência das maiores bancadas parlamentares da oposição, fez algumas cedências na esperança de evitar o pior. Mas de nada lhe valeu.
Com a Constituição a impedir novas eleições durante um período de 12 meses, o Presidente francês enfrenta agora uma decisão – voltar a nomear Barnier para chefiar um governo interino até à próxima ida às urnas ou escolher outra figura para o efeito. E tudo indica que vai ser forçado a seguir a segunda opção. Questionado antes da votação de hoje sobre a sua disponibilidade para encabeçar um governo em funções, Barnier disse: “Se o governo cair, que sentido faz eu voltar para lá depois de amanhã, como se nada tivesse acontecido?”
“Macron tem de nomear um novo primeiro-ministro na próxima semana – não é obrigado a fazê-lo, mas existe uma dupla urgência para que o faça, até porque estamos prestes a entrar na época natalícia”, refere Eric Maurice. A emergência mais imediata é a aprovação de um orçamento para 2025 e aí há “várias possibilidades, incluindo votar apenas a parte da receita e deixar a parte da despesa para o início do próximo ano”, indica o analista do EPC.
A alternativa seria esperar pelo próximo ano para que um novo orçamento seja apresentado e, entretanto, governar em duodécimos. “Mas isso leva à segunda emergência – a potencial reação dos mercados financeiros, com um aumento acentuado das taxas de juro e do custo dos empréstimos, bem como o potencial impacto no resto da Zona Euro. Um novo Governo no imediato reduziria a incerteza, mas depois tudo dependerá do tipo de Governo que for posto em prática.”
Ainda antes da votação, Macron deu a entender que está pronto para nomear um novo primeiro-ministro interino no espaço de 24 horas, com os media franceses a indicarem nomes como o de Sébastien Lecornu, ministro da Defesa muito leal ao Presidente, e François Bayrou, ambos do centro-direita, ou eventualmente Bernard Cazeneuve, antigo primeiro-ministro do PS. “Haverá pressão para tentar separar os socialistas da esquerda mais radical, para formar um bloco governamental entre o centro-esquerda e o centro-direita, algo que falhou durante o verão”, explica Maurice. “Mas a esperança de vida desse governo também será reduzida.”
A incerteza é praticamente total. “Se um novo primeiro-ministro for nomeado rapidamente, o Orçamento atual ainda pode ser adotado antes do final do ano”, adianta Julien Hoez – mas isto apenas “se a mesma situação a que assistimos hoje, a cargo das alas mais extremas do Parlamento, não se repetir”.
UE ainda mais limitada
O colapso do Governo Barnier tem lugar a duas semanas de Alemanha enfrentar o mesmo cenário de colapso governamental, com a chancelaria de Olaf Scholz condenada a cair nessa votação e eleições antecipadas já previstas para o final de fevereiro. Mas as semelhanças com a maior economia europeia acabam aí.
Como refere Maurice, “na Alemanha existe a perspetiva de um vencedor claro em fevereiro de uma coligação governamental, em França essa perspetiva não existe e não sabemos como irá evoluir a crise política”.
Tudo isto vem aumentar a “incerteza sobre a economia europeia, bem como a crise de liderança” que o bloco atravessa, num dos momentos mais negros dos tempos modernos para o eixo franco-alemão. “O que fica claro é que tudo isto limita ainda mais a capacidade de a UE tomar as decisões necessárias face a Trump e, de um modo mais geral, a capacidade de enfrentar os atuais desafios, como a perda de competitividade e a crescente insegurança global.”
Dentro de mês e meio, Trump toma posse como Presidente dos Estados Unidos e com ele ressurge a ameaça de uma nova guerra comercial transatlântica, o que complica ainda mais as perspetivas europeias neste período de enorme instabilidade. “Com várias guerras ativas, Donald Trump no horizonte e a necessidade urgente de a UE encontrar a sua posição geopolítica, a fraqueza de dois dos seus principais Estados-Membros surge na pior altura possível e há receios genuínos de que uma catástrofe orçamental em França possa provocar ondas de choque na UE”, ressalta Julien Hoez.
Agora que a nova Comissão de Ursula Von der Leyen acaba de assumir funções, “podemos assistir a alguns realinhamentos nas instituições europeias caso alguns deputados europeus sejam puxados de volta para França como potenciais ministros”, adianta o analista do The French Dispatch. “Mas em última análise, o funcionamento das instituições não será afetado de forma grave”, já que França se faz representar no Conselho pelo Presidente Macron e nada indica que isso deixe de ser assim.
O mesmo se aplica à questão Trump, que por ora parece estar mais focado em “reforçar as suas posições em relação a vizinhos imediatos dos EUA, como o Canadá e o México, e a preparar-se para travar uma grande luta com a China de Xi Jinping. “A UE parece, por enquanto, um assunto secundário” para o futuro Presidente norte-americano. “Mas isso pode mudar quando a equipa de Trump estiver concluída e a sua agenda de trabalho for revelada.”