Ainda não é certo que seja ele o primeiro-ministro que França aguarda há dois meses. Mas parece ser o favorito do presidente - eles que se conhecem de anteriores bate-bocas. Bertrand é conservador, um seguidista de Jacques Chirac e protegido de Nicolas Sarkozy. Orgulhosamente provinciano, tem anos de política na sapa e ambição para mais
A 8 de julho a França acordou dividida. A “barragem republicana” travaria uma vitória que muitos no Reagrupamento Nacional considerariam quase certa, sendo Jordan Bardella, delfim da extrema-direita, engolido pela coligação das esquerdas — que uniu os socialistas, os comunistas, os ecologistas e o França Insubmissa. No entanto, a Nova Frente Popular não conseguiu ter maioria. E foi o demissionário primeiro-ministro Gabriel Attal, outro derrotado (a par de Marine Le Pen) da noite em que se elegia o inquilino do Matignon, a prosseguir, temporariamente e em nome da “estabilidade” — mais a mais em tempo de olimpíadas em Paris —, em funções.
As esquerdas nunca pareceram unidas, nem antes da segunda volta, nem, menos ainda, após poderem indicar um nome seu para governar. Acabariam por avançar com Lucie Castets, uma jovem funcionária pública de pouca ou quase nenhuma andança política, tendo o nome sido rejeitado por Emmanuel Macron, justificando o presidente que Castets não poderia ter uma maioria do seu lado e que, desta forma, “o governo francês [da Nova Frente Popular] não conseguiria aprovar reformas e ver aprovado o seu Orçamento do Estado”.
Os meses foram passando, os Jogos Olímpicos de Paris passaram igualmente, e Emmanuel Macron continuava a ter uma bomba-relógio em mãos. Era preciso indicar um nome que fosse consensual, à esquerda e à direita. Do Palácio do Eliseu, Macron testou o pulso a dois putativos primeiros-ministros. Um deles menos politizado, antes um tecnocrata: Thierry Beaudet, presidente do Conselho Económico, Social e Ambiental. Não colheu. Como menos ainda colheria o de Bernard Cazeneuve, antigo primeiro-ministro socialista. Então, Macron, liberal, voltou-se para os Republicanos, os conservadores da direita francesa. E apontou o nome do experiente (de currículo) Xavier Bertrand, considerado por Macron alguém capaz de unir as direitas democráticas e alguma esquerda da social-democracia.
O barão (republicano, claro) Gérard Larcher, presidente do Senado, Bruno Retailleau, o presidente dos Republicanos no Senado, e Laurent Wauquiez, atual líder republicano na Assembleia Nacional, aprovaram Bertrand, considerado-o conciliador. Metade do caminho já estará, portanto, percorrido. Falta, e essa é uma exigência dos Republicanos, outro tanto andar: os partidos (ou pelo menos uma maioria) devem garantir que não farão cair o novo primeiro-ministro - se o for - à primeira instabilidade.
O problema é que os conservadores querem, lá diz o ditado, sol na eira e chuva no nabal: Xavier Bertrand governaria com uma espécie de carta branca, mas não poderia implementar políticas apelidadas de “esquerda”. O equilíbrio é improvável, mas Macron vai apelar (como o fez em eleições) ao melhor sentido “republicano” dos outros partidos. E prometerá de Bertrand um primeiro-ministro dialogante.
Um pequeno gaulista que sonha (grande) com o Eliseu
Mas quem é o putativo primeiro-ministro, quem é no fim de contas Xavier Bertrand? Um político feito a pulso, um governante de trabalhos duros, ambicioso, aguerrido, conservador dos sete costados.
De 59 anos, natural de Châlons-sur-Marne, cidade no nordeste francês, Bertrand teve um pai bancário, diz (e orgulha-se) que nunca frequentou “as melhores escolas”, nunca pertenceu às elites. Formando em direito público e especializado em administração local, chegaria ao topo pé ante pé, lentamente. Por anos foi agente de seguros na Swiss Life, aproximou-se (quando tinha somente 17 anos) do centro-direita gaulista do Reagrupamento para a República de Jacques Chirac e foi ele, Chirac, quem o quis fazer ministro — não sem antes ter sido assessor parlamentar e deputado à Assembleia Nacional, na viragem do século, sempre com algum beneplácito do histórico líder francês.
Primeiro foi ministro da Saúde, no governo de Dominique de Villepin, entre 2005 e 2007, função em que se lhe elogiou a maneira como lidaria com a epidemia de chikungunya em Reunião, igualmente como enfrentaria a gripe das aves e, talvez menos epidémica mas certamente mais polémica, como implementou a proibição de fumar em locais públicos. A capacidade de liderança sob pressão e sob discórdia despertou a atenção de Nicolas Sarkozy, que o escolheria para porta-voz da sua campanha presidencial em 2007.
Passaria de Chirac para Sarkozy, de gaulista a neo-gaulista, manteve-se conservador, e trocou o Reagrupamento para a República pelos Republicanos - não sem antes ter sido secretário-geral do partido antecessor do Republicanos, o União por um Movimento Popular. Foi presidente da Câmara de Saint-Quentin em 2010, mas logo regressaria a um governo, e ainda em 2010 acabaria ministro do Trabalho de François Fillon - mas sendo, claro, um protegido do presidente: Sarkozy. No Ministério do Trabalho, das Relações Sociais e da Solidaridade, apresentou um conjunto de medidas (por muitos elogiadas, para muitos impopulares) para impulsionar empregos e combater a corrupção nos apoios sociais.
A vida política, em crescendo, trouxe-lhe ambição para mais. Era preciso um frente-a-frente. E teve-o. Em 2015 bateu de frente contra Marine Le Pen, herdeira da extrema-direita francesa, e derrotou-a (por muito) na votação para presidente do Conselho Regional de Hauts-de-France, uma região que se tornara um bastião dos nacionalistas franceses. “Nós esmagamos as mandíbulas da Frente Nacional , as suas palavras incendiárias, as suas propostas inúteis”, afirmaria, glorioso, Bertrand. Não lhe bastaria, ainda queria mais, e talvez quisesse liderar os Republicanos. Mas uma vitória e eleição esmagadora de Laurent Wauquiez (que hoje o apoia, curiosamente) como presidente do partido em 2017 resfriou-lhe ímpetos. Bateu com a porta. Ameaçou desfiliar-se: “Eu não reconheço mais a minha família política, então decidi deixá-la. Não gosto da sua política de agressividade e do uso de bodes expiatórios”.
Não seria uma saída da política, antes uma forma de correr a solo. Em 2020, Bertrand expressou publicamente pretensões em desafiar o atual presidente Emmanuel Macron nas eleições francesas de 2022. Seria o candidato de todo o centro-direita, augurava Xavier Bertrand. Até porque para ele Macron era só mais um "liberal anglo-saxónico”, um “banqueiro de negócios” — numa referência ao passado de Macron no Rothschild —, descrevendo-o ainda como um “líder fraco” nas questões da imigração e segurança. “Se Macron fosse de direita, teria feito da segurança uma prioridade. Não é. Eu é que sou o representante de uma direita social e popular”, concluiu Bertrand. Problema: no congresso do partido, em 2021, só ficou em quarto lugar, depois de Valérie Pécresse, Éric Ciotti e Michel Barnier. Não desafiou Macron nas urnas. Mas ganhou de alguma forma, pois quem desafiou (Valérie Pécresse) acabou por obter o pior resultado republicano num sufrágio à Presidência. Foi em 2022 — e Macron venceu.
Do povo, de família, dos sapatos com sola de borracha
Não regressa à polícia enquanto republicano, mas continua na política, lançando o movimento Nós França, saído da ala mais conservadora dos republicanos. Bertrand é abertamente anti-aborto, anti-imigração - defende “autoridade, territórios e classes médias [francesas]” - e anti-LGBT, nomeadamente quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção por casais homossexuais). Isto em 2021. Desde antes, das eleições regionais de 2015, é presidente do conselho regional de Hauts-de-France. Orgulha-se desse “regionalismo”, de ser do povo que não é da urbe. Diz que por não ser de famílias elitistas, por ser do nordeste, na política sempre o consideraram um “idiota provinciano” - como parlamentar fora apelidado de “floc floc”, por causa do som que os seus sapatos de sola de borracha faziam no chão de mármore da Assembleia Nacional.
É casado com uma também política, a vereadora de Saint-Amand-les-Eaux, Emmanuelle Gontie, com quem tem três filhos. Do anterior casamento, tem outros dois.
Xavier Bertrand transporta em si o que um político deve ter para vingar. É ambicioso mas leal aos seus, trabalha quando lhe devolvem lealdade, faz finca-pé daquilo em que acredita e, sobretudo, é um homem ferido (troçaram dele pela estatura baixa, pela origem nada parisiense, por não ser culto nem da cultura) a quem subestimaram a ambição e o trabalho e as crenças. Não, Xavier Bertrand não é um fura-vidas; é antes um corredor de fundo.
Ambicionou ser presidente. Ambicionou derrotar o liberalismo macroniano. Curiosamente, é o liberal Macron quem o fará, se puder, primeiro-ministro, respeitando uma máxima da política: mantém os teus amigos perto e os inimigos ainda mais.