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Comentador da CNN Portugal

França: virar a página sem saber para onde

7 out, 16:13

A Quinta República nasceu como uma democracia construída sobre a desconfiança da própria democracia. Durante décadas, funcionou. Hoje, o regime que Charles de Gaulle criou gera apenas legitimidades rivais e bloqueios permanentes

Ironias da história: a República que nasceu para enterrar o caos pode agora sucumbir às mesmas forças que a fizeram nascer. A França de 2025, atormentada por governos efémeros, orçamentos rejeitados e parlamentos ingovernáveis, recorda a França de 1958. O círculo parece fechar-se – o regime concebido por Charles de Gaulle para libertar o país da instabilidade da Quarta República corre o risco de morrer da cura que o justificou.

A Quarta República, saída das ruínas da guerra, quis reconciliar democracia e prosperidade. Construiu a segurança social, reconstruiu fábricas, reergueu cidades. Mas perdeu-se no labirinto das suas próprias virtudes: o pluralismo degenerou em impotência, o parlamentarismo em paralisia, a vontade popular numa fragmentação inconciliável. Governos sucediam-se como ministérios interinos, ministros governavam a prazo e as colónias ardiam. A Argélia, último reduto do Império, foi o golpe final que a República não aguentou. Quando os generais de Argel se revoltaram, a República desabou sobre si mesma. De Gaulle regressou como salvador da nação e presidente todo-poderoso.

A nova Constituição de 1958 quis ser vacina e antídoto. O presidente, tornado árbitro e encarnação do Estado, ganhava a autoridade que o parlamentarismo limitara, além de poderes de exceção. De Gaulle sonhava com uma monarquia republicana, com um chefe eleito, mas investido de uma legitimidade quase histórica. A Quinta República nascia assim: uma democracia sustentada sobre a desconfiança da própria democracia. Durante décadas, funcionou. A França estabilizou, cresceu, reformou-se e alternou entre gaullistas e socialistas sem que o regime tremesse. Mas a paz institucional foi construída sobre um pilar instável: a dependência de um líder forte, de uma figura que concentrasse confiança e encarnasse autoridade. Quando essa figura faltou – ou quando o país deixou de a reconhecer – o edifício começou a vacilar.

Desde 19 de junho de 2022, Macron governa sobre ruínas parlamentares, muito por culpa própria. Com o fim da sua maioria absoluta, a Assembleia Nacional converteu-se num campo de batalha onde cada orçamento é um cerco. Cinco primeiros-ministros em menos de dois anos  – o último deles Sébastien Lecornu: uma rotatividade digna da Quarta República. O poder executivo já não executa. O poder legislativo já não legisla. O paralelismo histórico é claro.

Ontem a Argélia, hoje a austeridade e paralisia. Ontem os generais de Argel, hoje os extremismos de Le Pen e Mélenchon – que, ainda que péssimas alternativas, não são a mesma coisa. Em ambos os casos, o poder central perdeu a confiança dos cidadãos, cansados de governos e eleições. Neste momento, o país oscila entre a nostalgia da autoridade e a exaustão da democracia.

A ironia final é que o próprio remédio constitucional de 1958 pode agora ser a causa da nova doença. O “hiperpresidencialismo”, que pretendia dar estabilidade, tornou-se um fardo num tempo de elevada polarização. Quando o chefe de Estado perde legitimidade política, o sistema inteiro perde oxigénio. As condições estabelecidas no Artigo 68º da Constituição para afastar Emmanuel Macron são praticamente inalcançáveis. A Constituição que salvou a França de si mesma não prevê como resgatá-la da sua própria rigidez.

De Gaulle acreditava que a autoridade era o cimento da nação. Mas o sistema que criou para garantir estabilidade significa hoje um presidente sem maioria, um parlamento fragmentado e um país incapaz de se governar, refém de atalhos legais. Talvez a França de hoje precise do contrário: de um sistema parlamentar que tolere a pluralidade. A Quinta República, nascida da memória da guerra e da disciplina, resiste mal à era da dispersão e da velocidade. A sua arquitetura vertical – talvez necessária no século XX – tornou-se anacrónica no século XXI, quando o poder se dispersa pelas redes, pelas ruas, pelos mercados.

A morte do regime já foi demasiadas vezes anunciada. E Emmanuel Macron demasiadas vezes enterrado. Mas a Quinta República, tal como a Quarta, pode morrer não de revolta, mas de saturação. Nesta deterioração lenta, entre moções de censura e votos de confiança, adivinha-se o mesmo cansaço que precedeu 1958: o desejo de virar a página sem saber para onde – com o risco de uma Presidência de Marine Le Pen ou Jordan Bardella no horizonte.

Se a história francesa nos ensinou alguma coisa, foi que os regimes não caem apenas por falência política, mas também por exaustão. Quando o imaginário de uma República se desfaz, costuma ser uma questão de tempo. E talvez seja esse o presságio mais inquietante: uma França que repete o velho drama da impotência republicana, esperando hoje por um novo De Gaulle que já foi parte da solução, mas que amanhã seria parte do problema.

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