Femicídios, violência de género. As mulheres são assassinadas pelos homens, mas "se não lhe dermos nome, não existe"

CNN , Laura Smith-Spark, Niamh Kennedy e Joseph Ataman
12 jan 2022, 22:00
Mulheres participam numa marcha de protesto contra a violência sexual e o patriarcado, organizada pelo coletivo feminista Nous Toutes, na cidade de Toulouse, no sudoeste de França, em novembro de 2021.

Três mulheres brutalmente assassinadas num só dia em França, num começo de ano “insuportável”

No dia 1 de janeiro, três mulheres foram mortas em França, alegadamente, por um companheiro ou ex-companheiro, no que as ativistas feministas descreveram como um começo "insuportável" de mais um ano de violência.

França é apenas um dos muitos países que se debatem com aquilo a que as Nações Unidas chamaram de pandemia-sombra global de violência contra as mulheres, exacerbada pelos confinamentos provocados pela covid-19, que obrigaram as mulheres a ficarem confinadas em casa com os seus agressores, aumentaram as pressões financeiras para muitos e limitaram o acesso a apoios.

No ano passado, muitos saíram à rua em protesto contra as mortes brutais de mulheres e, em alguns casos, dos seus filhos, às mãos dos seus atuais ou ex-companheiros.

Os assassinatos do Dia de Ano Novo em França chocaram muitos e levaram a um novo apelo a uma ação mais dura contra aqueles que cometem violência contra mulheres e raparigas. Em conversa com a CNN, Marylie Breuil, porta-voz da Nous Toutes, um grupo de campanha feminista francês, disse que, embora as mortes tenham sido "chocantes", infelizmente, as ativistas no país não ficaram "surpreendidas" com o desenvolvimento dos acontecimentos. "A violência não para com o Ano Novo", disse ela.

De acordo com a polícia, uma mulher de 56 anos foi encontrada morta com uma faca no peito em Labry, no nordeste do país, depois de os agentes terem sido chamados por relatos de violência doméstica, a 1 de janeiro. Um homem foi posto sob investigação formal pelo crime de "assassinato de um parceiro".

No segundo caso, uma recruta militar feminina, de 28 anos, foi esfaqueada até à morte perto de Saumur, França ocidental, segundo o procurador da cidade. Um homem de 21 anos, soldado, foi detido por poder estar envolvido na sua morte. Os investigadores suspeitam de um possível homicídio.

Encontrou-se também o corpo de uma mulher de 45 anos no porta-bagagens de um carro, em Nice. De acordo com Maud Marty, procuradora-adjunta na cidade do Sul, esta última terá sido estrangulada. Os procuradores iniciaram investigações formais por homicídio involuntário e homicídio intencional contra o seu ex-marido, de 60 anos.

Os casos de violência contra mulheres em toda a Europa estão a aumentar a revolta. Na Grécia, onde foram registados 17 femicídios em 2021, segundo a emissora pública ERT, o governo foi criticado por rejeitar uma emenda da oposição que teria estabelecido o reconhecimento institucional do termo femicídio. Em novembro, depois de uma mulher de 48 anos ter sido esfaqueada 23 vezes pelo seu marido, em Salónica, o líder da oposição Alexis Tsipras publicou no Facebook: "Não deve haver disputas políticas quando vivemos os efeitos dramáticos da violência de género diariamente".

No Reino Unido, após o rapto e assassinato de Sarah Everard, de 33 anos de idade, por um agente da polícia em serviço, e uma forte repressão policial sobre uma vigília em sua memória, os ativistas criticaram o que dizem ser uma cultura de misoginia dentro das forças policiais.

Entretanto, nos comentários transmitidos em dezembro, o Papa Francisco disse que os homens que cometem violência contra as mulheres se envolvem em algo "quase satânico". Os dados divulgados pela polícia italiana, em novembro, mostraram que havia cerca de 90 episódios de violência contra mulheres no país todos os dias e que 62% eram casos de violência doméstica.

As mulheres têm de ser ouvidas

Em França, após a notícia das duas primeiras mortes no dia 1 de janeiro, a Nous Toutes apelou ao presidente francês, Emmanuel Macron, para agir, tweetando: "Recomeçar esta contagem é insuportável".

As mortes são "indicativas do clima atual em França e da impunidade dos agressores", disse Breuil, salientando o facto de uma das três mulheres ter apresentado queixa à polícia sobre o seu alegado agressor. Estatísticas de um relatório do Ministério da Justiça francês, em 2019, mostraram que 65% das mulheres mortas entraram em contacto com a polícia antes do seu assassinato.

"Compreendemos que 65% destas mulheres poderiam ter sido salvas se as coisas tivessem sido tratadas de forma correta, se as suas queixas tivessem sido aceites, se tivéssemos ouvido estas mulheres", sublinhou Breuil.

O governo francês foi rápido a condenar as mortes de 1 de janeiro, com a Ministra da Igualdade, Elisabeth Moreno, a tweetar que lamentava as mortes violentas e que estava solidária para com as crianças das vítimas e outros familiares enlutados. A polícia, magistrados, serviços de saúde e outros organismos são "constantemente mobilizados" para lutar contra "este flagelo", disse ela. Os ativistas, no entanto, não se deixam impressionar com a resposta do governo às tragédias.

"Depois dos três femicídios que ocorreram em 24 horas, em França, a única ação tomada foi a ministra da igualdade reunir-se com as associações", disse Breuil.

Esta não é a primeira vez que o governo francês é alvo de críticas pela forma como lida com a violência doméstica.

Desde 2019, quando França assistiu a protestos generalizados sobre a violência contra mulheres, o governo anunciou uma série de reformas. Estas incluem mais fundos para habitações de emergência para pessoas afetadas e agentes especializados para tratar das queixas, bem como esforços para encorajar a nomeação de tribunais e procuradores especializados, para agilizar os processos judiciais.

Ao dirigir-se aos repórteres, em outubro, o Ministro do Interior, Gerald Darminin, salientou que o combate à violência doméstica "deve ser uma prioridade" para os órgãos de aplicação da lei.

No entanto, a Nous Toutes afirma que Macron e o seu governo estão "completamente dessincronizados com o que está a acontecer no território francês", segundo Breuil. “Para nós, Macron e o governo estão em silêncio e isso é vergonhoso”, acrescenta.

Em maio, o país ficou chocado com o caso de uma mulher de 31 anos, Chahinez Daoud, que, segundo agentes, foi baleada e queimada viva na rua, pelo marido de quem estava separada, em Mérignac, perto de Bordéus. A polícia prendeu o marido, identificado como Mounir B., pouco tempo depois do incidente. O procurador de Bordéus, Frédérique Porterie, disse aos jornalistas que, na altura, o homem já tinha sido condenado sete vezes, incluindo uma acusação de 2020, por violência doméstica na presença de um menor. Chahinez tinha apresentado queixa por agressão contra ele, apenas dois meses antes da sua morte.

Esta semana, cinco agentes foram punidos após o assassinato de Daoud, confirmou à CNN um porta-voz da direção da Polícia Nacional.

Breuil critica a polícia francesa, que diz “não estar devidamente treinada” para lidar com este tipo de casos.

Os agentes forenses chegam a casa de Chahinez Daoud, a 5 de maio de 2021, em Mérignac, Bordéus.

“A ponta do icebergue”

Daoud foi uma das 113 mulheres mortas em 2021, em França, pelos seus atuais ou ex-companheiros, segundo o grupo de defesa francesa Féminicides par compagnons ou ex (Femicídio por atuais ou ex-companheiros).

Isso representa um aumento em comparação a 2020, quando 102 mulheres foram mortas pelo atual ou ex-parceiro, segundo um organismo do Ministério do Interior ligado à Polícia Nacional francesa. Outras 146 mulheres foram mortas pelos seus atuais ou ex-companheiros, em 2019, e 121 mulheres, em 2018, segundo a mesma fonte. Os números do governo para 2021 ainda não foram divulgados.

O femicídio, também conhecido por feminicídio, costuma ser definido por “homicídio intencional de mulheres por serem mulheres”. Contudo, não existe registo de dados globais, uniformizados ou consistentes sobre o femicídio.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), “a maioria dos casos de femicídio são cometidos por companheiros ou ex-companheiros e implica abusos contínuos dentro de casa, ameaças ou intimidação, violência sexual ou situações em que as mulheres têm menos poder ou menos recursos do que os seus companheiros.

O direito penal francês reconhece “morte por parceiro”, mas não distingue as vítimas masculinas das femininas. Ou seja, o termo “femicídio” ainda não é oficialmente utilizado.

Apesar de reconhecerem o valor das estatísticas, Nous Toutes insiste que estes números “são apenas a parte visível dos abusos entre casais”, segundo Breuil. “São apenas a ponta do icebergue”, diz, enfatizando que, antes de qualquer homicídio, costuma existir uma série de abusos, dos quais o público não tem consciência.

Contabilizar o verdadeiro custo do femicídio

Entretanto, no dia de Ano Novo, em Espanha, foi implementado um novo sistema, graças ao qual o governo afirma que será o primeiro país na Europa a contar oficialmente todos os femicídios, incluindo casos em que crianças são mortas por homens para magoarem as mulheres.

O número de mulheres mortas por violência de género, em Espanha, em 2021, chegou aos 43, a 27 de dezembro, de acordo com a delegação governamental para violência de género. Esta diz que, desde 2003, foram registadas as mortes de 1125 mulheres por violência de género, no país.

Espanha já registava como casos de violência de género a morte de qualquer mulher onde existissem provas de que esta tinha no momento, ou anteriormente, uma relação com o agressor.

Mas, desde o início deste ano, as estatísticas oficiais sobre violência de género serão alargadas, para incluir o homicídio de qualquer mulher ou criança, na qual se determine que o seu género foi um dos motivos.

As cinco categorias vão de homicídios de mulheres ligados a violência sexual, incluindo tráfico e prostituição, a homicídios cometidos por familiares da mulher, como nos conhecidos crimes de honra. Também foi incluído o “femicídio indireto”, definido como “homicídio de uma mulher ou menor, por um homem, para causar danos ou lesar outra mulher”.

Espanha ficou abalada pelos recentes casos que envolvem violência contra mulheres e os seus filhos.

Uma menina de três anos foi morta em Madrid, no final de dezembro, num suposto caso de violência de género, diz o governo. Foi uma das sete crianças a perder a vida desta forma, no ano passado.

Em junho, vimos pessoas revoltadas em cidades de todo o país, depois de um homem ter sido acusado de matar as suas duas filhas, Olivia, de seis anos, e Anna, de um ano, e de ter atirado os seus corpos ao mar, na ilha espanhola de Tenerife, divulgou a Reuters.

“O plano do acusado era magoar da pior forma possível a sua ex-companheira, criando deliberadamente incerteza sobre o destino que Olivia e Anna teriam sofrido nas suas mãos”, documentou um tribunal, segundo a agência de notícias.

A ministra da igualdade, Irene Montero, diz que o novo sistema significaria que todos os “homicídios sexistas de mulheres, apenas por serem mulheres” seriam contabilizados. “Reconhecer feminicídios é fazer justiça, o exercício mais básico de compensação para com todas as vítimas de violência sexista”, diz ela, num comunicado de imprensa do governo.

Desta forma, Montero diz: “estamos a fazer progressos para que todas as formas de violência de género sejam visíveis, para podermos criar as políticas públicas necessárias para a erradicar. Se não lhe dermos nome, não existe”.

Os militantes franceses apoiam este movimento e estão a tentar que uma estrutura semelhante seja adotada no país. Nous Toutes quer que os femicídios de jovens raparigas e mulheres fora de relacionamentos também “sejam contabilizados, para podermos mostrar a dimensão dos abusos contra mulheres, em França”, diz Breuil.

A sociedade francesa está “pronta para ver uma mudança”, porque “compreende que estes abusos não são inevitáveis” e podem ser prevenidos, conclui Breuil.

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