Uma França em suspenso à espera do governo Barnier, nas mãos de Le Pen e Bardella. "Ou cai imediatamente ou será um governo periclitante"

5 set, 22:00
Michel Barnier

Dois meses depois das eleições antecipadas, Emmanuel Macron decidiu nomear o ex-comissário europeu conservador para primeiro-ministro. Esquerda de Mélenchon fala em "roubo" e já convocou protestos para o próximo sábado. Extrema-direita diz que vai "esperar para ver" se apoia o governo e o seu programa político, dois anúncios que se esperam para breve. Analistas preveem "um clássico governo de direita" em matéria orçamental, "mas com mais medidas contra a imigração". E ninguém sabe para já quanto tempo irá durar

Foi, nas palavras do Financial Times, uma “reviravolta notável”. Um dia depois de os media franceses terem avançado que seria o ex-ministro Xavier Bertrand o nome proposto por Emmanuel Macron para primeiro-ministro, esta quinta-feira chegou o presidente francês anunciou oficialmente a nomeação de Michel Barnier, membro do partido Os Republicanos e ex-chefe das negociações da União Europeia para o Brexit. 

“Foi muito surpreendente para todos”, assume Victor Warhem, representante do Centre for European Policy (CEP) em França. “Parece que a principal razão para a escolha foi a extrema-direita não ser a favor de Xavier Bertrand, enquanto que com Barnier está a dar-lhe o benefício da dúvida, o que em primeiro lugar significa que o trabalho do governo nos próximos meses e talvez anos vai envolver os partidos centristas e a extrema-direita na Assembleia Nacional, a esquerda foi excluída.”

Como aponta Warhem, depois de outros nomes, como o do ex-ministro socialista Bernard Cazeneuve, terem sido discutidos e eventualmente abandonados, "Macron foi forçado a adotar uma postura totalmente diferente, apoiando-se mais na extrema-direita". E isso terá acontecido a conselho do ex-presidente Nicolás Sarkozy, do mesmo partido de Barnier.

“A minha opinião é que Macron deu ouvidos a Sarkozy, que na semana passada foi o único a dizer que uma das lições das últimas eleições foi que teria de haver um governo de direita, foi aliás assim que Sarkozy foi eleito, criando um muro contra o que à data era a Frente Nacional”, o atual Ressurgimento Nacional (RN) de Marine Le Pen e Jordan Bardella. “Isto significa que Barnier vai ter um governo mais à direita do que Macron e é por isso que Macron o apresentou falando de coabitação”, adianta o analista.

Macron deu ouvidos a Sarkozy na escolha de Barnier após ter sido "forçado a adotar uma postura totalmente diferente" Foto: AP

A nomeação do ex-comissário europeu surge mais de dois meses depois das eleições, nas quais a coligação de esquerda Nova Frente Popular (NFP) conquistou mais votos mas não uma maioria qualificada para formar governo, mergulhando França num longo processo de negociações de bastidores que está longe de estar concluído.

“Acho que, acima de tudo, esta nomeação representa de certa forma um falhanço da classe política francesa em chegar a compromissos”, aponta Ricardo Borges de Castro, analista de Assuntos Europeus e conselheiro do European Policy Center (EPC). “A cultura de compromisso e mesmo de coligações que está muito presente em muitos países europeus não é a cultura em França e, mais uma vez, demonstraram essa incapacidade de compromisso, de chegar a uma solução mais aceitável para um espectro político mais alargado.”

Nomeação "roubada"

Essa dificuldade em alcançar compromissos tem sido gritante. Depois de a NFP ter apresentado Lucie Castets para o lugar de primeira-ministra, e de Macron ter rejeitado a proposta por não obter suficiente consenso entre os deputados eleitos, o líder do França Insubmissa, o partido mais à esquerda da coligação, garantiu que não aceitaria qualquer outro nome. E com a nomeação de Barnier, Jean-Luc Mélenchon volta a falar de uma nomeação “roubada”, convocando os franceses a saírem à rua no próximo sábado em protesto contra a doutrina macronista.

“É a história a repetir-se e, de certa forma, a esquerda não está totalmente desagradada”, refere Victor Warhem. “Em França, quando um partido não está no governo está feliz, porque não tem de fazer o trabalho e porque sabe que vai ganhar mais votos nas próximas eleições”, adianta o analista do CEP. “Macron não queria Castets porque não queria que o governo abolisse a sua pensão das reformas nem desse outros passos contra as suas políticas. É certo que a esquerda vai tentar criar problemas nas ruas e talvez venhamos a assistir a grandes protestos, mas não tenho a certeza. Algumas partes da sociedade vão sair à rua, talvez tenhamos uns dois milhões nas ruas no sábado, mas temos de esperar para ver.”

No anúncio desta manhã, o gabinete presidencial indicou que Barnier foi encarregado de “formar um governo unido que sirva o país e o povo francês”, referindo em comunicado que a nomeação “surge após um ciclo sem precedentes de consultas durante as quais, de acordo com o seu dever constitucional, o presidente garantiu que o primeiro-ministro e o futuro governo satisfazem as condições para ser o mais estável possível e para lhes dar a hipótese de se unirem da forma mais ampla possível”.

Jean-Luc Mélenchon pede aos franceses que saiam às ruas no próximo sábado contra a nomeação de Macron Foto: AP

O ex-comissário europeu regressa à política nacional francesa dois anos depois de ter tentado (e falhado) a nomeação do seu partido para disputar as presidenciais francesas de 2022 – campanha durante a qual surpreendeu muitos em Bruxelas ao endurecer a sua postura contra a imigração, com propostas como a de uma moratória de entre três a cinco anos para todas as entradas de cidadãos extracomunitários em território francês face a uma situação “fora de controlo”, nas palavras do conservador.

“Barnier é um conservador que, de facto, exprimiu essas opiniões mais próximas do que o RN defende, mas não sei se será um governo de coabitação, porque de certa forma Barnier e Macron são ambos pró-europeus – de facto as declarações de Barnier sobre a imigração causaram consternação em Bruxelas, mas se lermos o segundo discurso de Macron na Sorbonne, quando fala da imigração e das fronteiras, é um discurso muito mais robusto do que o de um liberal típico, o peso que a direita radical tem faz com que partidos mais moderados se movam mais para a direita”, indica Borges de Castro. 

Ainda assim, adianta, “Barnier passou muitos anos em Bruxelas, no final da sua carreira política aqui teve o difícil dossier de negociar o Brexit, e mais recentemente criticou a [presidente da Comissão Europeia, Ursula] Von der Leyen por ir a um evento de campanha de Macron mas isso faz parte do jogo político. Não creio que vá ser uma coabitação de combate, como se chegou a falar, não como seria com o RN. Macron quando faz isto também sabe quem está a mandar para Bruxelas. Para Bruxelas, esta é uma boa notícia – e aquilo a que Bruxelas vai prestar mais atenção é ao Orçamento num contexto de défice excessivo, esse será o primeiro teste deste governo.”

"Um grande passo a ser escrutinado será o discurso de política geral"

Com o arranque dos debates orçamentais marcado para outubro, um tópico particularmente urgente face ao estado débil das finanças públicas em França, era urgente encontrar alguém que pudesse ficar ao leme de um governo que não falhe ao primeiro sinal de obstáculos na Assembleia Nacional. Mas isso continua por assegurar para já.

“É muito difícil nesta fase perceber o que vai acontecer, em primeiro lugar com a formação do governo”, defende Victor Warhem. “Podemos vir a ter uma coligação entre Os Republicanos e o partido de Macron, mas outra possibilidade é ter um governo essencialmente composto por ministros que não vêm da política, por personalidades da sociedade civil, diplomatas e outros não-políticos, mas não sabemos realmente. Uma terceira opção é ter uma mistura de ministros da política e fora dela. Vamos ver o que acontece nos próximos dias e semanas.”

Antes do Orçamento, aponta o analista do CEP, Barnier vai enfrentar um outro teste, na forma do discurso que fará perante a Assembleia Nacional para apresentar as suas prioridades e programa político. Foi aliás nisso que Le Pen e Bardella se focaram após o anúncio da nomeação, dizendo que os “11 milhões de eleitores” que votaram na extrema-direita “merecem respeito” e que vão “julgar o seu discurso de político geral, as suas decisões orçamentais e as suas ações com base nas provas”, delineando como pontos incontornáveis para o seu apoio parlamentar a segurança, a imigração e o custo de vida.

Marine Le Pen e Jordan Bardella, os rostos da extrema-direita francesa, dizem que vão esperar para conhecer o governo Barnier e o seu programa político para decidirem se o apoiam no Parlamento Foto: AP

“Um grande passo a ser escrutinado será o seu discurso de política geral e o RN já disse que está à espera desses discurso para decidir se o apoia, mas tudo aponta que vamos ter um verdadeiro governo de direita”, aponta Warhem – um que “vai promover políticas fiscais mais frugais – que vai defender não menos impostos, mas menos despesa para reduzir o défice – logo, um clássico governo de direita, mas com mais medidas contra a imigração, o que para mim é preocupante.”

Neste momento, acrescenta Borges de Castro, “não há uma objeção imediata” da extrema-direita, mas também não há garantias de que este governo sobreviva. “O RN diz que tem de esperar para ver, não apenas pela composição do governo mas pela composição do programa político do governo Barnier e, para todos os efeitos, ou é um governo que cai imediatamente ou será um governo periclitante, que vai estar a trabalhar um bocado a prazo, que não vai ter uma base sólida no parlamento.”

Ensanduichado entre uma esquerda apostada em capitalizar o descontentamento social e uma extrema-direita com a faca e o queijo na mão, o futuro da política francesa continua instável, quando faltam menos de dois anos para as eleições presidenciais – e menos de um para novas legislativas se o novo governo não singrar. 

“Há um problema de fundo de fragmentação, de discórdia entre a classe política francesa, e um desfasamento entre a classe política e a sua população”, adianta o analista português. “A inflação, o aumento do custo de vida, a habitação, isto são o tipo de coisas que as pessoas querem ver resolvidas e, mais uma vez, não se está a dar resposta a esse tipo de ansiedade. Mélenchon vai tentar aproveitar isso, mas a verdade é que a esquerda também não tem feito um esforço para encontrar uma solução, também levou à atual situação. Todos são responsáveis por este resultado. E agora é esperar para ver o que é que as próximas semanas trazem.”

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados