"O que há a temer neste momento é agitação nas ruas": há oito semanas no limbo, "só uma coisa" pode desbloquear o impasse político em França

27 ago, 22:00
Emmanuel Macron (EPA/Lusa)

Após rejeitar a candidata a primeira-ministra apresentada pela Nova Frente Popular, que venceu as últimas eleições sem maioria, Emmanuel Macron deu início a uma nova ronda de consultas com os líderes dos partidos franceses. "Mas o objetivo de ter um governo de coligação com maioria parlamentar continua altamente improvável neste momento"

Um mês e meio depois das legislativas antecipadas por Emmanuel Macron e a uma semana de a Assembleia Nacional voltar ao trabalho depois das férias de verão, França continua sem governo. Na segunda-feira, num adensar do impasse político no país, o presidente francês rejeitou a candidata a primeira-ministra proposta pela Nova Frente Popular (NFP), a coligação de esquerda entre o França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon (LFI), o Partido Socialista, os Verdes e os Comunistas, que venceu as eleições sem maioria.

Nomear Lucie Castets, economista de 37 anos e atual diretora dos serviços financeiros da autarquia parisiense, seria condenar imediatamente à morte o governo de esquerda, defendeu Macron no anúncio. “Tal governo iria imediatamente ter uma maioria de mais de 350 deputados contra ele, efetivamente impedindo-o de governar. À luz das opiniões dos líderes políticos consultados, a estabilidade institucional do nosso país significa que esta opção não deve ser seguida.”

“O argumento que Macron apresentou é válido, quando diz que tal governo não aguentaria um único dia no parlamento porque seria imediatamente censurado por uma enorme maioria, incluindo pela extrema-direita” de Jordan Bardella e Marine Le Pen, refere à CNN Victor Warhem, representante do Centre for European Policy em França. “Mas não há uma alternativa à vista, pelo menos para já.”

No comunicado divulgado na segunda-feira à noite pelo Eliseu, foi feita referência a “conversas justas, sinceras e úteis” entre o presidente e os líderes dos diferentes partidos com assento parlamentar nos últimos dias, às quais se segue uma nova ronda de consultas iniciada esta terça-feira. “Neste momento sem precedentes na V República, quando as expectativas do povo francês estão em alta, o chefe de Estado pede a todos os líderes políticos que estejam à altura da ocasião e demonstrem espírito de responsabilidade.” 

Nas palavras de Macron, é sua “responsabilidade garantir que o país não fica bloqueado nem enfraquecido”, mas pouco se espera das novas consultas. “O objetivo de ter um governo de coligação com mais de 289 deputados continua altamente improvável neste momento”, aponta Warhem – acima de tudo “porque a coligação de Macron ainda não foi capaz de convencer os partidos da NFP que não o LFI [França Insubmissa] a negociar outro governo de coligação, claro, são partidos que fizeram campanha com o LFI e querem implementar o seu programa eleitoral”.

Marine Le Pen promete opor-se a qualquer governo que inclua a esquerda, "com ou sem" o França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon (à direita). O líder da extrema-esquerda já prometeu levar a votos uma moção para destituir Emmanuel Macron e está a pedir aos apoiantes que manifestem o seu descontentamento nas ruas

(Ir)responsabilidades

As críticas à decisão de Macron não tardaram e não se limitaram aos partidos da Nova Frente Popular. Num editorial intitulado “A situação política perigosa e sem precedentes de França”, o jornal Le Monde acusava esta manhã o presidente francês de estar “a insistir teimosamente em manter o controlo da situação apesar da ameaça de impasse a poucos dias do início do ano escolar [...] e a poucas semanas da apresentação do projeto de Orçamento do Estado para 2025”.

“A incapacidade de Macron em reconhecer claramente as consequências da sua derrota nas eleições legislativas, pelas quais é o único responsável, é o fator-chave do atual impasse”, refere o editorial do Le Monde. “Na ausência de qualquer outra possibilidade óbvia, teria sido do interesse da democracia que o presidente permitisse que a experiência [de ter Castets como primeira-ministra] se desenrolasse em vez de tentar impor o seu controlo a todo o custo, na esperança de preservar a sua política durante o máximo de tempo possível, mesmo depois de ter sido derrotado nas urnas. É prejudicial arrastar um governo cessante, que atua como se não tivesse havido qualquer mudança nas urnas.”

Num comunicado divulgado logo após o anúncio de Macron, Jean-Luc Mélenchon já tecia críticas semelhantes, acusando o presidente de criar uma “situação excepcionalmente séria” e anunciando que os deputados do LFI vão apresentar uma moção para destituir o chefe de Estado assim que regressarem ao trabalho, sob a garantia de que qualquer outro candidato que não Castets será alvo de uma moção de censura do partido de extrema-esquerda.

A secretária-geral d’Os Verdes, Marine Tondelier, afinou pelo mesmo diapasão, dizendo que as ações do presidente são “uma desgraça” e uma “irresponsabilidade democrática perigosa”.

Mais do que as críticas, o que saltou à vista no comunicado do líder do França Insubmissa foi o pedido que dirigiu aos apoiantes da NFP, para que deem uma “resposta popular e política rápida e firme” a Macron e lhe exijam que “respeite a democracia”.

“O que há a temer neste momento, que na minha opinião é muito provável, é enfrentarmos agitação nas ruas”, diz Victor Warhem. “Ao ouvir o pedido [de Melénchon] aos eleitores para que saiam à rua na próxima semana e demonstrem a sua fúria e frustração com a decisão de Macron, diria que essa é a grande incógnita neste momento – Macron vai enfrentar pressão sobretudo nas ruas durante as próximas semanas ou meses, mas isso não significa que o problema se vá resolver.”

Christine Lagarde, atual presidente do BCE e filiada ao partido Os Republicanos, que se coligou com o Renascimento de Macron para as eleições antecipadas de julho, poderá ser uma opção avançada pelo presidente se o centro-esquerda decidir negociar com o centro-direita (AP)

"Com Macron nunca se sabe"

No imediato, a grande questão é se haverá algum tipo de acordo para desbloquear a situação antes de outubro, quando o parlamento terá de aprovar o OE para o próximo ano. Se isso não acontecer, explica o analista do CEP, “pega-se no orçamento de 2024 e transpõe-se para 2025, o que basicamente significa que nada mudará – o que não é propriamente uma coisa má para Macron”.

Isso poderá explicar a sua tentativa de forçar um outro tipo de coligação com maioria parlamentar para governar, que inclua a coligação de centro-direita do seu partido, o Renascimento, com Os Republicanos, e os partidos de centro-esquerda da NFP. “O que poderia pôr fim a este impasse era algumas figuras destes partidos decidirem começar finalmente a negociar com o centro, mas a probabilidade de isso acontecer é baixa, ainda que possa aumentar nas próximas semanas”, aponta Warhem.

Se o impasse perdurar, no horizonte estão novas eleições legislativas que só podem ser convocadas um ano após as últimas, deixando o país com um governo de gestão até ao próximo verão. “Não estou nas cabeças deles, mas podem achar que ainda podem deixar as coisas apodrecer mais para impedir novas eleições. Há o risco de Macron contar com isso para motivar o centro-esquerda e o centro-direita a começarem a negociar um governo de coligação – até porque me parece improvável que, com novas eleições, fossem ganhar mais assentos.”

É com isso que Macron conta. O comunicado divulgado pelo Eliseu, no qual pede “espírito de responsabilidade” aos partidos, prova-o e as consultas que retomou esta terça-feira também – até porque, segundo vários media, envolvem não apenas os líderes dos partidos políticos, mas também “veteranos da política”.

“Há uma discussão neste momento sobre o perfil que o próximo primeiro-ministro deve ter, e Macron poderá apresentar como ponto de partida para as negociações [com o centro-esquerda] uma figura que, claro, consiga reunir uma maioria no parlamento, mas uma pessoa com experiência, que seja respeitada, por exemplo antigos presidentes, ou Christine Lagarde, ou até figuras fora da vida política”, observa Victor Wahrem.

Questionado sobre potenciais nomes a circular em Paris, o analista do CEP responde a rir: “Com Macron nunca se sabe, não diz a ninguém o que vai na sua cabeça”. Ainda assim, adianta, "acaba sempre por proceder da mesma forma: fala com toda a gente, sem pistas sobre o que vai fazer, e depois faz um anúncio. Provavelmente saberemos [de um potencial candidato] um dia antes de o anunciar, até lá será um apagão total em termos dos perfis para primeiro-ministro e de potenciais cenários de futuro.”

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