França enfrenta situação "inédita no século XXI": extrema-direita e esquerda têm 24 horas para fazer cair o governo

2 dez 2024, 22:00

Bloco das esquerdas e extrema-direita juntaram-se para fazer cair aquele que será o governo francês mais curto da história da Quinta República. Emmanuel Macron não tem grandes alternativas: para o ano, tudo indica que haverá novas eleições em França

Michel Barnier tomou posse nem há três meses e já está em risco de ver o seu governo colapsar. Nada que já não se tivesse previsto, tendo em conta a polarização do parlamento, resultante das eleições legislativas deste verão. O que não se previa era que os mercados, confrontados com o défice francês em crescendo, atribuíssem um risco à dívida francesa igual à dívida grega. Ainda assim, os analistas entendem que é improvável que entre em incumprimento dos limites orçamentais exigidos pela União Europeia.

O primeiro-ministro quis apertar as rédeas no orçamento para o próximo ano, visando diminuir a dívida pública, mas foi confrontado com a resistência da oposição no parlamento. Assim, decidiu recorrer ao artigo 49.3 da Constituição - uma cláusula que, segundo o Le Monde,  já foi acionada 113 vezes desde 1958, incluindo 23 vezes pela ex-primeira-ministra Elisabeth Borne - que permite contornar o voto na Assembleia Nacional e forçar a aprovação do orçamento - decisão que expõe o Governo a uma moção de censura. 

Na verdade, a duas moções de censura, já que, depois de a coligação da esquerda, a Nova Frente Popular, ter ameaçado que o faria caso Barnier recorresse a esse mesmo artigo, a extrema-direita de Marine Le Pen anunciou esta segunda-feira que também vai apresentar uma moção de censura ao executivo, descrevendo o orçamento em causa como “profundamente injusto para os franceses”.

“O povo francês está farto. Está farto de ser maltratado. Está farto de ser desrespeitado. Alguns talvez tenham pensado que com Michel Barnier as coisas iriam melhorar, mas pioraram ainda mais”, criticou Marine Le Pen, do União Nacional, que adiantou que vai votar favoravelmente à moção apresentada pela coligação da esquerda.

Tanto a Nova Frente Popular como a União Nacional têm 24 horas para apresentar uma moção de censura a partir do momento em que o primeiro-ministro aciona o respetivo artigo. Uma vez aprovadas, “o primeiro-ministro deve submeter ao presidente da república a demissão do governo”, pode ler-se na Constituição francesa.

A confirmar-se, esta seria uma situação “inédita no século XXI”, descreve Jorge Botelho Moniz, diretor de Estudos Europeus da Universidade Lusófona, lembrando que é a primeira vez em 62 anos que um governo francês cai por força de uma moção de censura desde a queda do governo de Georges Pompidou, na década de 60. O governo de Barnier tornar-se-ia assim o mais curto da história da Quinta República.

Michel Barnier recorreu a uma cláusula na Constituição francesa para contornar o voto no Parlamento. Agora, enfrenta duas moções de censura e corre o risco de ver o seu Governo colapsar, menos de três meses depois de assumir funções
(EPA/Mohammed Badra via LUSA)

Michel Barnier ainda tentou ceder nalgumas das linhas vermelhas estabelecidas pela extrema-direita para aprovar o orçamento, que nos últimos dias tem vindo a pressionar o Governo com ultimatos, exigindo, entre outros, que não avance com aumentos de impostos na eletricidade, atualizações nas pensões e cortes no acesso de cuidados de saúde a imigrantes sem documentos. O primeiro-ministro começou por ceder, recuando nos seus planos para aumentar impostos na eletricidade e também tentou apelar à extrema-direita com outras promessas, como limitar o acesso de cuidados de saúde a indivíduos sem documentos.

Barnier garante que estas aproximações à extrema-direita não tiveram como objetivo convencer Le Pen, mas sim a tentar chegar a um consenso com todos os partidos da oposição. “Mas toda a gente sabia que o governo estava na mão da Marine Le Pen”, argumenta o professor Victor Pereira, investigador da Universidade Nova de Lisboa e doutorado em História Contemporânea pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris. Para o professor, o governo esteve até agora num “jogo com a União Nacional de Marine Le Pen”, acreditando que o partido de extrema-direita iria, no mínimo, abster-se na votação do orçamento caso o executivo fizesse “algumas concessões”.

Só que nem Marine Le Pen nem Jean-Luc Mélenchon, líder da coligação da esquerda francesa, a Nova Frente Popular, estão interessados em consensos, segundo o embaixador Francisco Seixas da Costa, que acredita que o objetivo dos líderes da oposição é fazer com que Emmanuel Macron apresente a demissão. “Eles querem que Macron se demita e que haja eleições antecipadas, cada um deles convencido de que as ganhar”, assume. 

Mas o embaixador está convicto de que isso não vai acontecer: “Não acredito que Macron se vai demitir.” O professor Victor Pereira afirma que, apesar da situação política “bastante complexa”, Macron não irá demitir-se, até porque isso seria o reconhecimento de “um falhanço” na sua gestão política, depois de, no ano passado, ter convocado eleições antecipadas na sequência dos resultados do seu partido, o Renascimento, nas eleições europeias, que resultaram num parlamento completamente fragmentado.

Um governo de "mãos atadas" e um presidente "teimoso"

Na verdade, Macron não tem agora grandes hipóteses. Não pode dissolver o parlamento até julho do próximo ano, uma vez que a Constituição francesa estabelece um prazo de 12 meses até novas eleições. Ou seja, a confirmar-se a queda deste governo, Macron pode ser “teimoso” - como descreve o professor Victor Pereira - e renomear Michel Barnier como primeiro-ministro - “o que não é impossível com ele”, graceja o investigador - ou terá de encontrar outra figura minimamente consensual para estar à frente do Governo. Ora, tendo em conta que o presidente francês demorou dois meses a nomear Michel Barnier, esta tarefa poderá revelar-se difícil de concretizar.

De qualquer modo, o embaixador Francisco Seixas da Costa antecipa “meses de indecisão” no seio da política francesa. “Macron vai viver com um governo de transição até convocar novamente eleições”, acredita. Mesmo assim, assume, “não é suposto que as eleições deem uma grande mudança relativamente ao quadro atual”. Até lá, o governo interino fica “de mãos atadas” para implementar um orçamento em duodécimos, trabalhando grosso modo com o orçamento do ano anterior, sem que haja alterações dos impostos e outras receitas e despesas.

Esta crise política que os especialistas descrevem como “dramática” tem impacto também a nível internacional. Com a Casa Branca a mudar novamente de roupagem e as guerras no Médio Oriente e na Ucrânia sem fim à vista, França fica exposta como um país “sem poder” e com “falta de solidez política no plano europeu”, problematiza o embaixador Francisco Seixas da Costa. A somar-se a isso, a crise política na Alemanha não ajuda na estabilidade europeia. “Os dois eixos essenciais da política europeia, a França e a Alemanha, estão neste momento em crise e isso tem impacto na Europa”, afirma o embaixador, antevendo desafios para a relação transatlântica.

Relacionados

Europa

Mais Europa
IOL Footer MIN