A desdiabolização, um presente envenenado, umas pinceladas de centro-esquerda, os salários vs. guerra, os moderados: o que pode decidir a escolha entre Macron e Le Pen

11 abr 2022, 07:00
Emmanuel Macron na noite eleitoral (AP Photo)

Era o confronto previsível para a segunda volta e confirmou-se. Agora é entre os dois, Macron e Le Pen, que França vai ter de escolher. E é uma escolha feita de muitos condicionamentos

Quem viveu e trabalhou em França vê os resultados eleitorais além das percentagens. E na noite deste domingo não foi diferente. “Macron esvaziou a política moderada, esvaziou politicamente o centro. Acabou por criar um deserto na esquerda e na direita moderada”, explica Luís Castro Mendes, antigo embaixador em França.

E a prova disso são os resultados (baixos) dos partidos que tendiam a alternar no poder em França: o Partido Socialista e Os Republicanos. “É o total apagamento. Estão praticamente reduzidos a cinzas”, classifica o professor de Relações Internacionais José Rebelo.

E o que significa esse movimento? Significa que as alianças que Macron (com quase 28%) tem de traçar são ainda mais duras porque são os extremos – à esquerda e à direita – que reforçam posições. E a transferência de voto para uma segunda volta deixa de ser tão linear.

“Temos a mesma dinâmica de 2017, ter de escolher entre Macron e a extrema-direita. Com um perigo maior de que Le Pen (com quase 25%) ganhe à segunda volta porque Macron perdeu muito do seu capital político”, explica Luísa Semedo, conselheira das comunidades portuguesas em França.

Reeleição de Emmanuel Macron é encarada como o cenário mais provável (AP Photo)

A imprevisível transferência do voto (mais ou menos) moderado

A repetição da vitória de Macron na próxima noite de 24 de abril é encarada como o cenário mais provável. Mas a transferência de votos dos restantes candidatos para Macron e Le Pen não é agora tão linear como se esperaria.

Jean-Luc Mélenchon (com 20%), o nome da extrema-esquerda, já apelou ao voto em Macron. O foco na melhoria das condições de vida, que o fizeram conquistar uma parte do seu eleitorado, é a principal bandeira de Le Pen. E, por isso, essa viragem da extrema-esquerda para a extrema-direita, ela pode de facto acontecer.

 “Há uma franja importante de eleitores de Mélenchon que vota por protesto. E frequentemente esse protesto não tem cor”, concretiza José Rebelo. E Luísa Semedo reforça: “O desafio de Macron é conseguir conquistar o eleitorado de Mélenchon. Le Pen já começou a fazer isso”.

Entre os restantes candidatos da esquerda, incluindo a socialista Anne Hidalgo ou o ecologista Yannick Jadot, o apelo também é de fazer seguir o voto para Macron. A prioridade, dizem, é retirar votos à extrema-direita de Le Pen.

“Valérie Pécresse não lidera Os Republicanos, o que não implica necessariamente que o seu apelo seja seguido. O próprio partido está dividido. Haverá uma ala mais radical que vai apoiar Marine Le Pen”, acrescenta José Rebelo.

Até à decisão final, muitas surpresas podem acontecer. Na campanha pode entrar, a qualquer minuto, como noutras circunstâncias, um escândalo que faz pender a escolha para um dos lados. E o próprio debate entre candidatos, se se repetir o cenário de 2017, pode devolver a Macron uma força que o atual presidente parecer ter perdido internamente.

Eleitorado de Jean-Luc Mélenchon é decisivo para Macron (AP Photo)

O discurso virado para os mais fragilizados, com "pinceladas de centro-esquerda"

“Apesar da mágoa, da reserva, de uma grande revolta contra as políticas, sobretudo por parte das pessoas mais desfavorecidas, isso não impedirá que a votação de Macron se reforce”, acredita Luís Castro Mendes.

Foi nessa franja da população que Le Pen centrou o seu discurso, procurando livrar-se de uma imagem de maior extremismo associada ao racismo e xenofobia – um papel entretanto capturado por Éric Zemmour – a que Luísa Semedo chama “via de desdiabolização”. Zemmour, o candidato ainda mais à direita, já apelou ao voto em Le Pen. “Mas esse apoio para ela é dispensável. Pode ser um presente envenenado, porque lembrará as origens”, argumenta José Rebelo.

Em França, diz o professor universitário, “os salários preocupam muito mais do que a guerra na Ucrânia”. E, para chegar àquela que é a “preocupação central” no país, Macron poderá ter de fazer ligeiros ajustes ao discurso. “Pode tentar fazer novas promessas de maior equilíbrio social, de maior apoio às classes mais desfavorecidas. Enfim, dar umas pinceladas de centro-esquerda.”

Marine Le Pen tem aligeirado o discurso, para se afastar da imagem de extremismo que a celebrizou (AP Photo)

Putin como arma de arremesso (e o desejo de estabilidade)

Um dos argumentos que a esquerda tentará colar a Le Pen e ao Rassemblement National (antiga Frente Nacional), para lhe tirar força nesta segunda etapa da corrida presidencial, é a sua ligação com Vladimir Putin, o responsável pela guerra na Ucrânia – cujos efeitos acabam por ser sentidos pelos próprios franceses.

“Pode haver um medo da mudança, num momento tão conturbado. Por enquanto, o povo francês ainda está sensibilizado e disposto a alguns sacrifícios em relação à guerra”, conta Luísa Semedo.

Mas Le Pen - que no discurso deste domingo apontou ainda mais ao eleitorado à esquerda, à população que se revê no movimento dos Coletes Amarelos – tem sabido dar a volta a essa associação negativa a Putin, traça José Rebelo: “Enquanto Macron insiste nas sanções à Rússia, Le Pen fala numa negociação sem sanções porque prejudicam os franceses. Esta posição acaba por ter apoio em França”.

E o conflito na Ucrânia acabou por deixar Macron ainda mais fragilizado internamente. Porque, numa primeira fase, o atual presidente procurou ser o ponto de contacto privilegiado da Europa com Vladimir Putin, mas sem frutos concretos desses esforços. “O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Aparece como o líder sem força”, caracteriza José Rebelo.

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