França não quer ser a Grécia, mas mercados começam a duvidar. E queda do Governo já é uma possibilidade

2 dez 2024, 07:00
Michel Barnier, novo primeiro-ministro francês (Stephane de Sakutin/Lusa)

As taxas de juro da dívida francesa ultrapassaram as da Grécia na semana passada e atingiram o valor mais elevado face à Alemanha desde a crise da Zona Euro. França já é vista como uma nova e séria ameaça à moeda única e tudo indica que Michel Barnier vai recorrer a um mecanismo constitucional para conseguir aprovar o Orçamento do Estado sem o aval da Assembleia Nacional, o que abrirá a porta a moções de censura. Extrema-direita de Marine Le Pen ameaça fazer colapsar o Governo. O próximo capítulo da saga, dizem os analistas, deverá ser inaugurado na semana antes do Natal

É um novo “momento muito sério” em França e os dados estão lançados. Foram meses de turbulência política após a pesada derrota do Renascimento de Emmanuel Macron nas europeias de junho, que levaram o Presidente a antecipar as eleições legislativas.  E após essa ida às urnas, na qual o seu partido voltou a ser castigado e em que nenhum outro conquistou maioria absoluta, o país ficou entregue a um governo “periclitante” com Michel Barnier ao leme. E esse mesmo Governo, que sobreviveu a uma primeira moção de censura em outubro, volta agora a enfrentar a guilhotina. 

A nova crise está ligada à sustentabilidade da dívida pública de França. Na quarta-feira, os juros da dívida de Paris em relação aos da Alemanha atingiram o nível mais elevado desde a crise financeira da Zona Euro, em 2012, levando a uma queda recorde das ações francesas. No dia seguinte, a dívida do país chegou a ter uma taxa de juro superior à da Grécia, mantendo-se depois disso com valores próximos dos gregos. Por outras palavras, os mercados obrigacionistas chegaram a considerar que a atual dívida francesa acarretava mais riscos do que a da Grécia, o país que há 15 anos ameaçou colapsar toda a Zona Euro pelo que muitos consideraram ser a irresponsabilidade e extravagância fiscal de Atenas.

“Os mercados financeiros não avaliam a força da economia em si, antes a sustentabilidade da dívida de um país a médio prazo, e o atual nível da dívida francesa é muito elevado, quer em comparação com a Europa, quer em comparação com países anteriormente em crise, como a Grécia e Portugal”, explica à CNN Andreas Eisl, investigador de políticas económicas do Instituto Jacques Delors.

Os ministros do Governo Barnier têm tentado afastar a analogia, com Antoine Armand, atual ministro das Finanças, a sublinhar há alguns dias que “França não é a Grécia” e que tem “um poder económico e demográfico muito superior”. Mas as comparações são incontornáveis – numa altura em que, como aponta Eisl, Grécia e Portugal registam um saldo primário (saldo orçamental sem juros) “fortemente positivo” contra um “fortemente negativo” de França. 

“Enquanto Grécia e Portugal estão atualmente em forte desendividamento – a Grécia está a reduzir o seu nível de dívida de 153,1% em 2024 para 142,7% em 2026, Portugal está a reduzir o seu nível de dívida de 95,7% para 90,5% no mesmo período – prevê-se que os níveis da dívida francesa aumentem de 112,7% para 117,1%, mesmo que o atual Governo consiga pôr em prática os seus planos orçamentais”, explica o analista. “E esta situação orçamental é exacerbada por uma crise grave no sistema político francês.”

Le Pen com a faca e o queijo na mão

Sem maioria parlamentar, e quando a carga fiscal em França já representa cerca de 45% do PIB, Barnier está a tentar aprovar um Orçamento do Estado para 2025 que prevê 40 mil milhões de euros em cortes na despesa e 20 mil milhões de euros em aumentos de impostos, na tentativa de reduzir um défice crescente que deverá situar-se nos 6,1% do PIB este ano, mais do dobro do limite de 3% imposto por Bruxelas.

Numa entrevista à emissora francesa TF1, Barnier pediu na semana passada aos partidos da oposição que aprovem o Orçamento, sob o argumento de que há “uma grande tempestade e uma turbulência muito grave nos mercados financeiros” a perfilar-se no horizonte. “Este é um momento muito sério”, disse o primeiro-ministro, e se o OE não for aprovado, "haverá não apenas uma crise política mas uma crise financeira". Em resposta, a líder da extrema-direita, Marine Le Pen, disse que a proposta orçamental é “má, injusta e violenta” e voltou a ameaçar derrubar o Governo.

Barnier já cedeu a uma exigência de Le Pen quanto ao aumento dos preços da eletricidade, na esperança de manter o apoio dos 124 deputados do Reagrupamento Nacional (extrema-direita), mas todas as opções continuam em cima da mesa Foto: Thibault Camus/AP

“Vários partidos mais populistas à esquerda e à direita do espectro político não consideraram a consolidação orçamental uma prioridade nas eleições legislativas de 2024”, refere o analista do Jacques Delors, “e as lutas em torno do Orçamento têm sido caracterizadas por estratégias políticas que visam maximizar as suas hipóteses nas próximas eleições – provavelmente eleições legislativas em 2025 e presidenciais em 2027 – em vez de alcançar um consenso e compromissos políticos viáveis para resolver a situação orçamental de França”. 

O resultado é uma “grande incerteza política sobre a futura política orçamental francesa”, que “tem um forte efeito negativo na confiança dos mercados e também prejudica as perspetivas de crescimento [económico], uma vez que as empresas e os indivíduos estão a poupar em vez de investir”.

Para aprovar o Orçamento, é cada vez mais provável que Barnier tenha de recorrer a um mecanismo constitucional que lhe permite aprovar leis sem o aval do Parlamento, uma espécie de porta dos fundos prevista na Constituição que, uma vez aberta, sujeita o Governo a moções de censura no Parlamento – e uma possibilidade que o próprio primeiro-ministro assumiu numa entrevista ao diário regional Ouest France.

“Quando vejo o que aconteceu na Assembleia [Nacional], parece difícil fazer outra coisa no final do debate, mas repare que optámos por deixar o debate acontecer”, disse Barnier, referindo-se ao recurso ao artigo 49.3 da Constituição da República francesa. O impasse pode atingir um pico crítico já esta segunda-feira, na votação das despesas com o Estado social. Em alternativa, a moção de censura ao Executivo poderá chegar dias antes do Natal.

“Existem riscos diferentes de uma reação negativa dos mercados financeiros se o Governo Barnier se desmoronar”, algo que “provavelmente levaria o spread dos juros das obrigações a aumentar ainda mais”, aponta Eisl quando questionado sobre os riscos que a atual situação acarreta. “Muito dependerá das propostas de qualquer Governo subsequente, mas se houver impasse prolongado e não for encontrado um compromisso para o Orçamento para 2025 antes do próximo verão, antecipo que essas taxas de juro possam afastar-se ainda mais do resto dos países da Zona Euro – até porque o simples prolongamento do Orçamento deste ano para o próximo será um sinal negativo no que toca à sustentabilidade da dívida do país.”

Para Victor Warhem, analista do Centre for European Policy, no plano político “tudo vai depender de Le Pen, que pode votar para pôr fim ao Governo”. O seu Reagrupamento Nacional (RN) ainda não confirmou se seguirá essa via ou não, com pesos-pesados da extrema-direita como Sébastien Chenu e Jean-Philippe Tanguy a darem a entender que sim, mas com Le Pen para já em silêncio quanto à rota que vai seguir, numa altura em que ela própria está envolvida num julgamento por alegado desvio de fundos do Parlamento Europeu, que pode impedi-la de se candidatar a cargos públicos nos próximos cinco anos.

Numa tentativa de evitar o pior, “Barnier acabou de oferecer a Le Pen o que ela queria em termos de aumentos limitados dos preços da eletricidade”, adianta Warhem, o que poderá injetar alguma estabilidade no panorama francês. Por ora, o especialista acredita que o RN vai manter o seu apoio ao executivo. "Mas devemos ficar alerta, notícias inesperadas no Parlamento podem alterar a opinião [da líder da extrema-direita] e está tudo a mudar muito depressa", adianta. "A maioria dos desentendimentos tem a ver com o Orçamento, não com despesas sociais, portanto diria que devemos estar atentos aos dias antes do Natal.”

Se a moção de censura for aprovada, Macron está constitucionalmente impedido de dissolver a Assembleia Nacional até julho, quando fará um ano das últimas eleições antecipadas. É provável que, nesse cenário, Barnier apresente a sua demissão ao Presidente, que poderá reconduzir o primeiro-ministro num governo de gestão ou nomear outra figura para chefiar o executivo até à próxima ida às urnas.

E a dívida?

Se o OE para 2025 não for aprovado nos moldes em que foi apresentado, o que espera a economia francesa? Andreas Eisl diz que, para já, não se antecipa uma crise de sustentabilidade da dívida, pelo menos a curto prazo – mas apenas “se este ou qualquer outro Governo subsequente implementar medidas orçamentais que ajudem a reduzir o défice primário comparativamente elevado”.

O economista aponta para o diferencial entre as taxas de juro das obrigações francesas e alemãs que aumentaram nos últimos meses, mas lembra que as taxas de juro da dívida francesa mantiveram-se estáveis em termos nominais, muito graças às reduções das taxas de juro decididas pelo Banco Central Europeu (BCE), que ajudaram a contrariar a evolução negativa.

“Se o atual Governo cair, e com ele os atuais planos orçamentais, muito dependerá do Orçamento que qualquer futuro Governo tenha a propor e a tentar implementar. A proposta de um Orçamento totalmente diferente poderá ser recebida nos mercados financeiros com uma reação semelhante à que teve lugar em 2022 face aos planos de miniorçamento do Governo de Liz Truss” no Reino Unido.

Liz Truss foi primeira-ministra do Reino Unido durante apenas 45 dias e viu o seu frágil executivo colapsar em circunstâncias semelhantes à do atual Governo francês Foto: AP

Embora o especialista em políticas económicas antecipe que a dívida pública francesa vá manter-se sustentável para já, sempre sob a condição de as taxas de juro das obrigações não aumentarem demasiado em termos nominais, uma forma de amainar as ondas de choque provocadas nos mercados no curto prazo seria ter uma “reação política em termos de consolidação orçamental” e “planos credíveis de redução do défice” para garantir que esses aumentos não têm lugar.

Já no longo prazo, e questionado sobre alternativas exequíveis aos grandes cortes na despesa que o atual Governo quer implementar, Andreas Eisl destaca que “um elemento fundamental para a sustentabilidade das finanças públicas é um crescimento económico robusto”, o que implica que a economia francesa melhore o seu potencial de crescimento.

“Este objetivo, no entanto, só pode ser alcançado de forma credível numa perspetiva de médio prazo e, dado que a economia francesa é muito orientada para o consumo e depende em parte das despesas do Estado, é importante não proceder a uma consolidação demasiado drástica, uma vez que isso prejudicaria as perspetivas de crescimento e, em última análise, também a sustentabilidade da dívida”, adianta o analista do Jacques Delors.

Voltamos à esfera política e ao que aguarda França nas próximas semanas face à ameaça de colapso governamental. “É uma escolha política pôr mais ênfase nos cortes de despesa ou no aumento de impostos, mas como a quota do Estado francês já é uma das mais elevadas do mundo, há limites para consolidar exclusivamente do lado da receita por via do OE. Para que a consolidação orçamental funcione, será fundamental cortar na despesa e aumentar os impostos de uma forma que minimize o impacto negativo no crescimento económico.”

Mesmo que Barnier consiga encontrar uma forma de aprovar o atual Orçamento na forma de "penso rápido", referia há alguns dias a revista Spectator, “subsiste um problema maior” – o facto de a despesa excessiva do Estado francês ser estrutural. Começar a reduzir o défice grego há mais de uma década foi possível, apesar de ter implicado uma contração de 30% do PIB. Mas França “é demasiado grande para ser salva”, aponta a publicação britânica.

“Ninguém queria resgatar a Grécia, mas fazê-lo, pelo menos, era relativamente acessível. França tem mais de dez vezes o tamanho da Grécia – e mesmo que quisesse, nem sequer a Alemanha se poderia dar ao luxo de a socorrer. França arrisca-se a tornar-se um teste bem mais sério à Zona Euro do que a Grécia algum dia foi. [E] a crise em Paris está só a começar.”

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