A baguete: segredos da iguaria francesa mais viciante

CNN , Vivian Song
24 nov 2021, 22:52
Baguete

O padeiro Christian Vabret aperta suavemente uma baguete para fazê-la “cantar”.

Ao pressionar, a côdea desaba sobre si mesmo, produzindo um som elétrico e crepitante.

“Distinguimos uma boa baguete pela forma como canta”, diz ele.

“Le pain qui chante”, ou pão que canta, é uma expressão utilizada entre os padeiros franceses, e é uma das características de uma baguete bem cozida, diz Vabret.

É completamente diferente da baguete de supermercado que tentou fazer chiar momentos antes. Em vez de um estalar crocante, o pálido pão permaneceu silencioso, impenetrável aos apertos e amassos.

Tal cenário desenrolou-se em Paris, no mês de abril, quando a cidade enfrentava o terceiro confinamento.

Vabret abriu o seu salão de chá Marie Antoinette, encerrado devido à Covid-19, junto à sua padaria Au petit Versailles du Marais, no 4th arrondissement, para demonstrar como distinguir baguetes boas de más (o salão de chá reabriu entretanto).

Para além do título de Meilleur Ouvrier de France, um prestigiado galardão que homenageia os melhores artesãos em França, Vabret também fundou o World Cup of Baking em 1992, uma competição internacional de padaria, que decorre em Paris de dois em dois anos e pode ser comparada aos Jogos Olímpicos da padaria.

Há poucas pessoas mais qualificadas que Vabret para dar lições sobre pão.

Porque, no que toca a baguetes francesas, um dos símbolos culinários mais emblemáticos de França, nem todas são criadas da mesma forma.

Vivian Song

As melhores das melhores

Antes de mais, as melhores baguetes são conhecidas por “traditions” e não por baguetes. São 20 a 30 cêntimos mais caras que as baguetes “clássicas” e têm de ser feitas seguindo um rígido conjunto de regras, estabelecidas em decreto pelo governo em 1993.

Para se chamar “tradition”, o pão só pode ser feito com quatro ingredientes: farinha, água, sal e levedura, sendo proibido o uso de qualquer tipo de aditivos, conservantes e espessantes. O pão tem de ser feito no local. Por outro lado, as baguetes comuns, são o parente pobre da “tradition”, repletas de aditivos e de confeção rápida, de qualidade e sabor inferiores.

Por outras palavras, como refere o padeiro Djibril Bodian, bicampeão de uma prestigiada competição de baguetes em Paris conhecida como Grand Prix de la Baguette, não há atalhos.

“Não dá para fazer batota com este pão. Cabe ao padeiro desenvolver o seu próprio método para criar uma belíssima ‘tradition’.”

É esse conhecimento que Dominique Anract, presidente da federação francesa de padeiros e pasteleiros, espera ver averbado na Lista de Património Cultural Imaterial da UNESCO de 2022. Em março, o Ministério da Cultura anunciou a baguete como o próximo requerimento à Unesco, em detrimento dos telhados de zinco de Paris e da vindima e festival de vinícola na vila de Arbois, que também haviam sido considerados.

O anúncio foi o culminar de uma campanha de quatro anos montada pela federação de padaria, que havia alertado para a redução do consumo global de pão em França e para os riscos que a indústria corria.

A ameaça ao pão tradicional e à cultura

Segundo o Observatoire du Pain, um grupo de investigação que analisa os hábitos de consumo de pão e tendências em França, a taxa de consumo médio diário de pão entre os adultos caiu dos 143 g/dia em 2003 para os 103 g/dia em 2016.

No geral, existem cerca de 33 mil padarias em França. Mas, anualmente, a proliferação de pequenas mercearias abertas pelas grandes cadeiras de supermercados (superettes), que vendem baguetes industrializadas, contribuem para o encerramento de mil padarias familiares, diz Anract.

“A nossa arte está a desaparecer lentamente. O nosso objetivo com este dossiê da UNESCO é deixar marcado o nosso conhecimento artesanal e a cultura do pão em França”, disse ele.

É que a baguete tem um papel crucial para o desenvolvimento dos franceses, novos e velhos.

Para os bebés, a ponta do pão, tão importante que tem o seu próprio nome, “le quignon”, costuma ser o primeiro alimento sólido que conhecem. Uma imagem clássica associada aos franceses, algo cliché até, é a do parisiense a trincar o “quignon” a caminho de casa, deixando o resto da baguete decapitada para o jantar.

Para as crianças em idade de escola, a baguete é outro marco na sua infância. Anract diz:

“Costuma ser a primeira coisa que uma criança compra. O pai dá uns trocos à criança e manda-a tratar do seu primeiro recado.”

Para quem compra casa, aluga ou agentes imobiliários, uma padaria no bairro também valoriza imenso o imóvel. E, para os idosos, especialmente para os que moram sozinhos, a ida matinal à padaria é, muitas vezes, o único contacto social do dia.

“As viúvas vão para a padaria e ficam à conversa com a funcionária até á chegada do cliente seguinte. A padaria é um local de grande socialização.”

“Não reneguem as vossas raízes”

No seu livro de 2020, “Pour le pain” (“Para o pão”), o historiador americano, Steven Kaplan, também lamenta o que vê ser o lento declínio da valorização francesa pela sua rica cultura de padaria, e desafio os franceses a reclamar o seu património nacional.

“O livro pede aos franceses que não abandonem a sua identidade, porque está profundamente ligada ao pão. Não reneguem as vossas raízes”, diz ele.

Por exemplo, a baguete dos dias que correm é o produto das diferentes forças culturais e socioeconómicas do séc. XX, diz Kaplan. Em 1919, uma lei a proibir o trabalho noturno obrigou os padeiros a arranjar métodos mais rápidos e eficientes para fazer pão, em detrimento do trabalho moroso e desgastante que exigia a constante utilização de levedura-mãe.

A solução foi usar fermento de padeiro. A nova baguete também ganhou popularidade junto da burguesia urbana, que se habituou a ter pão fresco várias vezes ao dia. A procura por pão branco cresceu, começando a ser associado a pureza, sucesso e subida na vida, ao fim de anos a comer pão escuro feito a partir de resto de aveia, cevada e cereais integrais, durante e após a II Guerra Mundial.

Mas é aí que entra a ironia.

Porque os especialistas estão de acordo que as melhores baguetes não são brancas. A melhor baguete, a chamada “tradition”, é cozida o tempo suficiente para atingir o efeito Maillard, uma reação química entre açúcares e proteínas, que produz uma crosta castanha caramelizada, que crepita e estala quando apertada (o cantar da baguete), diz Vabret.

Da mesma forma, o miolo deve ser bege ou amarelo claro, nunca branco, pontuado com buracos irregulares a que chamam de “alvéolage”.

O aroma pode ser floral, ligeiramente acidificado ou fresco e frutado, desfazendo-o agradavelmente o miolo na boca.

Aperfeiçoar a arte

Entretanto, na padaria de Bodian, Le Grenier à Pain Abbesses, no bairro de Montmartre, é habitual ver filas longas, mas céleres, devido à fama do padeiro. Bodian, de 44 anos, é o único padeiro a ter vencido o Grand Prix de la Baguette duas vezes (2014 e 2015), uma competição às cegas onde 220 pães “tradition” competem por um prémio monetário de 4000 euros, pela honra de se tornar o padeiro oficial do presidente francês e do Palácio do Eliseu durante esse ano, e pelo respeito dos seus pares.

Vivian Song

Bodian, que imigrou do Senegal para França aos seis anos, disse que aprendeu o ofício ao crescer numa casa onde o pai, também ele padeiro, falava apaixonada e orgulhosamente da sua arte, durante toda a sua infância.

“Todos os dias, o meu pai chegava a casa cansado, mas feliz, dizendo que tinha o melhor trabalho do mundo. Nunca se queixava, nunca falou mal da sua profissão.”

Ele disse que, apesar das vitórias, procura constantemente aperfeiçoar a sua arte. Isso significa que teve de excluir o fabrico de baguetes comuns, debruçando-se apenas sobre “traditions”.

“Em vez de fazer pão medíocre, quero concentrar-me em fazer bem apenas ‘traditions’. “

10 das melhores padarias de Paris

Na próxima visita a Paris, estas foram as 10 melhores padarias da edição de 2020 do Grand Prix de la Baguette, que coroa a melhor “tradition” da cidade:

- Les saveurs de Pierre Demours, 13, rue Pierre Demours 17e arrondissement

- L'essentiel Mouffetard, 2, rue Mouffetard 5e arrondissement

- Boulangerie Martyrs, 10, rue des Martyrs 9e arrondissement

- Au 140, 140, rue de Belleville 20e arrondissement

- Aux délices du Palais, 60, Boulevard Brune 14e arrondissement

- Aux délices de Glacière, 90, Bd Auguste Blanqui 13e arrondissement

- Boulangerie Lorette, 2, rue de la Butte aux Cailles 13e arrondissement

- Boulangerie Guyot, 28, rue Monge 5e arrondissement

- Giovanni boulangerie contemporaine, 49, rue Chardon Lagache 16e arrondissement

- Maison Leparq, 6, rue de Lourmel 15e arrondissement

 

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