Desafio ou problema: como atletas podem lidar com a quarentena

26 mar 2020, 00:28
Pedro Assis (Pedro Assis)

O psicólogo do desporto Pedro Assis explicou como jogadores podem encarar o isolamento social devido à pandemia de covid-19. Debruçou-se ainda sobre o trabalho que é feito individualmente atletas e treinadores. «O lado mental será a versão 3.0 do atleta».

E agora?

Esta é, porventura, a primeira questão que cada um faz a si mesmo devido à pandemia de Covid-19. Como fica a vida profissional? Perderei o salário? E quando voltar, como será? As dúvidas assombram-nos quase diariamente, independentemente da atividade profissional.

E no caso dos jogadores de futebol, como é que estes lidam com o isolamento social e com a perda dos hábitos de treino? O Maisfutebol conversou com Pedro Assis, psicólogo do desporto com experiência no futebol.

«O atleta está socialmente isolado, o que não é normal em nenhum ser humano. A emoção principal que paira na cabeça do atleta é a dúvida. Que recursos mentais é que ele tem para lidar com esta questão? Quando entendermos estes recursos mentais, vamos perceber que existe um lado económico associado: receio, dúvida ou perda de rendimento. Isto irá influenciar o lado desportivo. Os objetivos atuais que poderão ou não ser atingidos e de que forma isso poderá afetar a próxima época. Vai ser dispensado? Vendido? E fisicamente, como estará? Tudo isto vai mexer emocionalmente com o atleta», começa por dizer o clínico de 40 anos.

«É nesta fase que vamos ver a real dimensão mental do atleta. Há duas formas de lidar com isto: como um desafio ou como um problema. Quem enfrentar como um problema, não vai lidar bem com a situação. Aquele que enfrentar isto e conseguir ver a solução do problema, como passar mais tempo com a família, ter oportunidade de trabalhar dificuldades que tem, sejam físicas, emocionais ou cognitivas como estudar, fazer cursos, ler, entre outras coisas. Podem aproveitar para investir neles próprios não só fisicamente e, por que não, construírem o seu futuro? Há tanta coisa que um atleta pode fazer para não se deixar cair nesta rotina de isolamento», acrescenta.

Alex Telles, por exemplo, tem aproveitado a quarentena para se dedicar à música.

Segundo o psicólogo, os jogadores têm de concentrar-se no trabalho diário. Esta é, aliás, umas das soluções encontradas por vários portugueses: pensar e viver um dia de cada vez.

«Neste momento  reconhecemos as nossas fragilidades e temos de perceber se precisamos de ajuda. Todos. Sou psicólogo e questiono-me se vamos voltar à normalidade. Temos de fazer estas perguntas para as quais não temos respostas e pedir ajuda, falar com pessoas que percebam. Não devemos ler fake news, porque só causam mais angústia. Um atleta não pode passar por este tipo de situações. Tem de se agarrar ao quotidiano. A vida de um atleta é todos os dias. ‘Não é de quatro em quatro anos, mas todos os dias’, é o lema da equipa olímpica dos Estados Unidos. Tem de ver isto como uma luta diária, proteger-se, protegerem os seus e trabalhar dentro das limitações. Um dia o clube vai dizer ‘malta, vamos treinar’. E tudo voltará à normalidade», sustentou.

Pedro Assis cumpriu todos os processos exigidos pela Ordem dos Psicólogos, entidade reguladora da profissão: licenciou-se em psicologia, obteve o grau de mestre para validar a especificidade, neste caso em psicologia clínica, tirou uma subespecialidade na área do desporto e exerce há 12 anos.

«Sempre pratiquei desporto desde que me lembro. Desde andar de bicicleta a jogar futebol no Candal. O talento para o futebol não era assim tanto pelo que optei por seguir os estudos como se as duas coisas fossem incompatíveis. Não são. Optei pelo lado académico e consegui chegar ao desporto de alto rendimento de outra forma», resume.

O clínico explica que a psicologia do desporto se divide em duas áreas: bem-estar, ou seja, funcionamento base de qualquer indivíduo, e o rendimento propriamente dito.

«Abordamos primeiro a pessoa. Assegurarmo-nos de que a pessoa é equilibrada emocionalmente e mentalmente em todos os aspetos da vida, sabendo que há oscilações. Todos as temos, e podem estar associadas a desilusões amorosas, à morte de um familiar, enfim, qualquer coisa associada à vida dos comuns mortais. Gerimos isto com a questão do rendimento, da alta performance e o desenvolvimento das capacidades mentais, emocionais e até sociais para promover comportamento de elite num atleta que se quer de elite», afirma.
 

Pedro Assis, psicólogo do Desporto há 12 anos, esteve à conversa com o Maisfutebol.

A psicologia só funciona quando é individual e especializada numa pessoa porque cada é diferente. Não é, portanto, uma fórmula exata.

«Não há uma fórmula que funcione com as mesmas pessoas. Mesmo uma fórmula que funcionou há uns tempos com um atleta, hoje possivelmente não vai funcionar. A pessoa é diferente, todos os dias. A pessoa cresce, às vezes para um lado, outras vezes para outro. Por vezes, pensamos que estamos a crescer e estamos a regredir. Estamos a aprender, a readaptarmo-nos, reeducar-nos no sentido de mudar comportamentos. No fundo, é isso que a psicologia se propõem fazer», refere.

O ponto de partida é o lado social. «Os grandes troncos que sustentam o funcionamento desportivo são lado emocional e mental. Partindo do princípio que as questões sociais estão solidificadas e que física, técnica e taticamente os atletas estão bem, partimos para o lado mental e emocional. Tentamos desenvolvê-lo e trabalhá-lo paralelamente com os outros troncos para termos atletas de excelência», elucida.

Como se trabalha a componente mental e comportamental?

«Dentro e fora do campo, direta e indiretamente. Fazemos sessões individuais, em grupo e indiretamente através das famílias, se estivermos a falar de jovens. Pode trabalhar-se através do treinador. Por exemplo, há um atleta que valoriza o feedback positivo ou de suporte, então sugerimos ao treinador que talvez essa seja a forma mais indicada para chegar a ele. O treinador tenta adequar a comunicação. Grosso modo, este tipo de intervenção que fazemos na crise. É muito mais em crise, especialmente o alto rendimento. Estão sempre situações a acontecer, umas desencadeiam outras e estamos sempre a atuar», diz.

É verdade que soa a cliché, mas falta tempo a jogadores e treinadores.

«O psicólogo do desporto é quem mais tempo tem. Os atletas não têm tempo para crescer no que refere ao processo cognitivo e de aprendizagem. Não desenvolvem técnicas de um dia para o outro. Podemos reunir duas horas todos os dias, isso não vai acelerar a aprendizagem. O tempo é necessário mesmo a nível de teorias do desenvolvimento, é necessário para aprender e aperfeiçoar. O treinador também não tem tempo, porque tem de ganhar no fim de semana. Lutamos contra a própria aprendizagem e solidificação de conceitos e entregamos os atletas ao jogo em situações nas quais não sabem o que estão a fazer. Depois surgem maus desempenhos, agressões e comportamentos desadequados», sublinha.

Além de trabalhar com jogadores, o psicólogo do desporto também lida com treinadores.

«Trabalhamos não só questões instrumentais como a comunicação, mas também emocionais como a frustração, os resultados e as expetativas. Fazemo-lo com todo o staff, mas muito mais com o treinador. É tão importante trabalhar com o treinador como com o atleta. Percebemos o que o treinador quer e procuramos promover as expetativas deste junto do atleta. É preciso haver uma clara relação de confiança, o que às vezes é problemático. Se o atleta percebe que o treinador tem uma relação forte com o psicólogo, pode ter receio em criticar o treinador. No entanto, há questão da confidencialidade e o atleta tem o direito de processar o psicólogo. É obrigatório explicarmos isso», salienta.

Pedro Assis defende que os psicólogos são «como mediadores de uma balança» dá um exemplo de um exercício criado pelo treinador e que pode ter dedo de um clínico. 

«A cognição é um aspeto mental e distingue-nos de outras espécies. Há pessoas mais inteligentes que outras. Qualquer atleta tem inteligência espacial e de compressão. Conjugar ambas é uma questão que a psicologia pode trabalhar e levantar para o jogo através de questões de complexidade cognitiva num exercício. Imagine, o treinador está a fazer um ‘meiinho’ que por si só, não tem grande dificuldade. Se colocarmos um colete no ‘meiinho’, os jogadores têm de estar atentos a dois estímulos. O jogador que está no meio tem de estar atento à bola e saber onde está o colete. Assim que recuperar a bola, tem de correr e recuperar o colete. É isto que a psicologia pode trazer ao treino e que ajuda os atletas a ficarem mais desenvolvidos cognitivamente.»
 

Sem treinos e com as competições suspensas, jogadores trabalharam individualmente para manter índices físicos.

Pedro Assis aponta que, no futuro, os atletas vão distinguir-se pelos aspetos mentais, como a cognição e a emoção. «Os clubes estão próximos a nível de infraestruturas, têm treinadores com níveis III e IV e os jogadores cada vez estão mais próximos a nível físico, técnico e tático. O que irá variar são os aspetos mentais. O lado mental será a versão 3.0 do atleta. Por isso é que o Ronaldo é excecional. Esteve sempre nesse patamar», conclui.

Pedro Assis antecipa que o regresso ao trabalho vai ser «maravilhoso». «A expetativa é que os atletas regressem cheios de vontade. Vão valorizar a liberdade que têm, como qualquer ser humano. As pessoas vão respeitar-se e perceber que há guerras que não fazem sentido. Vai ser quase uma lua de mel.»


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Fora do jogo é uma rubrica do Maisfutebol que dá voz a agentes desportivos sem participação direta no jogo. Relatos de quem vive por dentro o dia a dia dos clubes e faz o trabalho invisível longe do espaço mediático. Críticas e sugestões para smpires@mediacapital.pt ou vem.externo@medcap.pt.
 

Artigo original: 24-03; 23h50

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