Folhetim de voto | A noite dos mortos-vivos

2 jun, 08:00
Rio Socrates Gouveia e Melo e Rui Rocha

Rui Rocha anunciou-se ex-líder do seu partido. Rui Rio, ex-líder do seu partido, anunciou-se (outra vez) contra ele e a favor de Gouveia e Melo, que não tem partido. E José Sócrates, ex-líder do seu ex-partido, deseja que ele volte a ser irradiante mesmo se quase o erradicou. A política não tem cemitério, tem sala de espera

Comecemos por quatro erres maiúsculos, RR e RR, Rui Rio e Rui Rocha, um talvez perto de trair o seu partido, o outro talvez sentindo-se traído por ele, dois homens que foram a eleições e sentiram o calor do poder a crepitar-lhes perto do peito, ambos estiveram quase quase a entrar num governo mas viram a esperança fugir-lhes entre os dedos, acabando afastados dos seus partidos. Na mesma noite, no sábado, com um par de horas de diferença, um desapareceu discretamente, o outro reapareceu a romper e de rompante. É assim a política, em que alguns vencedores perdem o poder e alguns inanimados animam a festa.

Rui Rio – de volta do cemitério político

Ainda as legislativas não esfriaram e já as presidenciais se alcandoram. É preciso reconhecer mérito a Gouveia e Melo: se o anúncio da sua candidatura na quinta-feira teve zero de surpresa, o anúncio do seu mandatário foi uma das surpresas do ano. Sábado, no Porto, Rui Rio entrou como mandatário-rock star no palco. 1-0 para Gouveia e Melo.

Não é, no entanto, surpresa ver Rui Rio virar-se contra o seu próprio partido. Já acontecera no longínquo ano de 2013, na campanha autárquica do Porto em que o candidato do PSD foi Luís Filipe Menezes. Acontece agora contra o candidato apoiado pelo PSD, Luís Marques Mendes. Em ambos os casos, as relações com Rio são como toucinho frito numa frigideira esquecida ao lume. E Rio, já se sabe, não é de perdoar. Ainda assim, os dois maiores ódios de Rui Rio não são Mendes e Menezes, também eles ex-líderes do PSD, são o Ministério Público e os jornalistas.  

Rui Rio perdeu copiosamente as eleições legislativas de 2022 para António Costa, que teve maioria absoluta e logo e clamorosamente a desperdiçou. No seu período como presidente do PSD, Rio também disse uma espécie de “não é não” (não integraria o Chega num governo seu) e, mais do que isso, desvalorizou o Chega, tratando o partido como uma organização amadora que mais tarde ou mais cedo entraria em extinção por falta de estrutura. Enganou-se. E afirma agora que não só Montenegro vai ter de negociar com o Chega, como não devia ter dito “não é não” há um ano.

Este exemplo de intervenção mostra o súbito “empowerment” de Rio, que cresce à custa de Gouveia e Melo, que por sua vez quer crescer à custa de Rio. Veremos como corre esta relação: se canta o candidato ou manda o mandatário. A política inativa também tem portas giratórias.

Rui Rocha – do cabaret para o convento

A Iniciativa Liberal é um partido jovem e ainda em convulsão. Fundado como partido em 2017, vai para o seu quinto líder em oito anos:

  • Miguel Ferreira da Silva: 2017-2018
  • Carlos Guimarães Pinto: 2018-2019
  • João Cotrim de Figueiredo: 2019-2022
  • Rui Rocha: 2022-2025
  • ? – 2025-…

Sem falsas modéstias: quando publicámos o Bestiário de Rui Rocha, antes das eleições, apontámos o erro da IL se descaracterizar para entrar num governo com a AD: “É provável que a IL tenha a sua maior votação nestas eleições, superando os oito deputados anteriores, o que fará de Rui Rocha um vencedor na noite eleitoral. Mas é também provável que, se não tivesse trocado o ferrão pelo mel para Luís Montenegro, crescesse ainda mais.” Além disso, escrevemos, “Rui Rocha lidera o partido sob a sombra de dois líderes: o anterior, Cotrim de Figueiredo, que no atual contexto Spinumviva teria feito uma campanha temível para Montenegro; e o provável futuro, Bernardo Blanco, que foi-ali-e-já-vem fazer um estágio para um dia regressar “das empresas”". 

A aposta correu mal e a maior votação de sempre foi insuficiente. O partido volta a virar-se contra si próprio, sob o telecomando (ou desmando) de Cotrim de Figueiredo.

Gouveia e Melo: contra os canhões, nadar, nadar

O único político verdadeiramente independente com poder no país até hoje está no Porto, sim, mas não é Rui Rio, é Rui Moreira: 12 anos de liderança da Câmara e um legado que todos os seus possíveis sucessores querem herdar. Será Gouveia e Melo o próximo político verdadeiramente independente com poder? As sondagens sugerem que sim.

É o favorito. E vai na esteira do ataque aos partidos, que trata como falsos donos da democracia: "Se por um lado são arautos da democracia e apelam à resistência e ao dever cívico dos cidadãos para participarem ativamente na política e na vida da comunidade, por outro atacam ferozmente qualquer cidadão que tente imiscuir-se na definição política que eles próprios acham que criaram", disse no sábado.

Gouveia e Melo pode não ter feito um grande discurso de lançamento, mas tem uma estratégia clara. E hoje poderemos compreendê-la melhor – a ela e a ele - na sua primeira entrevista como candidato, na TVI e na CNN Portugal.

José Sócrates, o irradiante

Foi também na CNN Portugal que, este domingo, José Sócrates deu uma entrevista sobre a atualidade política e sobre o processo Marquês, que está prestes a iniciar julgamento.

“A extrema-direita nasceu e desenvolveu-se com o processo Marquês”, disse. "Quando eu fui detido e preso, o comentador de serviço na CMTV sobre o processo Marquês era o líder da extrema-direita, que agora tem [60] deputados no Parlamento. Em dez anos fizeram isso. Uma acusação de corrupção feita a um primeiro-ministro dá nisto”, acusou.

“Ao longo destes dez anos, não tenho feito outra coisa que não seja defender-me do Partido Socialista”, afirmou Sócrates sobre o partido de que saiu em 2018. E que criticou por falar de reflexão mas não refletir a não ser sobre… a necessidade de reflexão.

A entrevista, que pode ser vista aqui, teve uma espécie de índice onomástico, que aqui resumimos. Os políticos, segundo Sócrates:

José Sócrates por ele mesmo – “Estou já numa posição em que me permito falar de tudo com inteira liberdade. A única fidelidade que devo é a mim próprio.”

André Ventura – “O líder da extrema-direita foi a uma televisão dizer que o sonho dele era prender-me. Portanto, ele utiliza a prisão como arma política contra os seus adversários.”

António Vitorino – “Eu não votaria em nenhum desses três [António José Seguro, Gouveia e Melo ou Luís Marques Mendes], votaria isso sim no António Vitorino se ele fosse candidato.”

Henrique Gouveia e Melo – “Não, eu não votaria nele, não sou seu apoiante, não o conheço sequer, mas compreendo a motivação daquelas pessoas. Elas não querem seguir o que vocês [jornalistas] querem que elas façam, não. Elas querem escolher o seu próprio candidato e não aquele que é escolhido nos estúdios de televisão.”

António Costa 1 – “Não, não teria feito [a geringonça em 2015 se fosse secretário-geral do PS]. Na altura vigoravam regras não escritas que era bom que respeitássemos: que o partido que fica à frente governasse. (…) [António Costa] chegou lá pela porta dos fundos. Eu não tenho nada contra a geringonça, pelo contrário, achei até que foi uma negociação bem conseguida. A única coisa que eu tenho é a seguinte: é que o Partido Socialista não tinha ganho as eleições, não tinha ficado em primeiro, e com isso introduziu na vida política uma nova realidade. A partir de agora, mesmo que fique à frente, isso, meu caro amigo, ou a esquerda é a maioritária ou nunca voltará a governar."

António Costa 2 – “De certa forma, o Partido Socialista fez uma aliança com o atual Presidente da República - e uma aliança de forma não explícita, uma aliança implícita: ‘Nós não apoiamos nenhum candidato e tu, como Presidente, apoias-me enquanto Primeiro-Ministro’. Essa foi a aliança que foi feita. Foi feia. Feia porque é manhosa, é escondida, não é aberta, não é? Podia ser à frente de toda a gente. O PSD já apoiou um candidato socialista, como quando Mário Soares se candidatou, mas foi à frente de toda a gente. Desta vez, o líder do PS achou que era melhor não apoiar ninguém para permitir que muitos socialistas votassem no Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. E isso correu muito mal” (…) Uma aliança entre o PS, o António Costa e o Presidente da República no Parlamento. Vocês não deram conta disso?”

Marcelo Rebelo de Sousa 1 – “Este Presidente revelou ser quem sempre foi, quem eu sempre achei que era, não é? E termina assim. Termina da forma como estamos a ver, não é? Um personagem sem consequência, como ele sempre foi. Nunca foi outra coisa senão aquilo.”

Marcelo Rebelo de Sousa 2 – “Nós queremos que um Presidente da República não seja como o anterior. Isto é, que não faça da intriga política a ação política. A ação política é para lá da intriga, nos jornais. E um Presidente da República não é um mero espectador que vai fazendo intriga nos jornais para agora valorizar este, amanhã desvalorizar o outro. Não é esse o papel do Presidente da República. E foi nisto que transformamos a Presidência da República nestes últimos dez anos. É triste, mas termina assim, como um personagem sem consequência."

Pedro Nuno Santos – "O Partido Socialista também erra muito e é confrangedor e é mesquinho querer atribuir a responsabilidade da derrota ao Pedro Nuno Santos. Isso é uma coisa que acho muito feio, porque é injusto para com o Pedro Nuno Santos. De quem é a responsabilidade? Bom, eu acho que se há responsabilidade, eles têm que procurar responsabilidade um pouco anterior. Porque, no fundo, Pedro Nuno Santos veio para disputar umas eleições imediatamente e depois disputou umas eleições um ano a seguir."

Lucília Gago – "O Partido Socialista perdeu as eleições em 2024 porque o Ministério Público abriu um inquérito ao anterior primeiro-ministro que ainda hoje ninguém sabe o que se passa com esse inquérito. O que é inacreditável. Um ano e tal depois."

Amadeu Guerra – "E o Partido Socialista perdeu estas eleições [de 2025] também por causa de uma golpada judicial. Uma terceira. Foi o facto do senhor procurador-geral da República, no meio da campanha, ter decidido abrir uma averiguação preventiva ao líder da oposição de forma absolutamente injusta e sem nenhum fundamento. Ou melhor, com fundamento num outro processo que já tinha sido arquivado. Isto é absolutamente vergonhoso. Ou melhor, talvez não seja assim tão vergonhoso, porque o mais vergonhoso é o Partido Socialista não dizer uma palavra sobre isto, porque parece que tem medo de dizer isso. O momento em que o procurador-geral abriu esse inquérito, foi um momento na campanha de xeque, de xeque ao rei. Não direi xeque-mate, mas xeque ao rei."

Luís Montenegro – "Eu acho que o Partido Socialista tinha toda a razão nas críticas que dirigiu ao primeiro-ministro, mas ele, nesta campanha, ganhou as suas esporas. Ele foi de uma resiliência, de uma combatividade que faz dele, digamos, um personagem político respeitável. Resta agora a questão do seu processo. Resta. Porque isso não está decidido."

José Luís Carneiro não recebeu nem uma só palavra, mas poderá ter ouvido mensagem: “O Partido Socialista deve recuperar uma agenda política de modernização para o país. Porque foi isso sempre que atraiu os diferentes sectores da sociedade portuguesa para o apoio ao Partido Socialista. O Partido Socialista é um grande partido popular, sempre foi um grande partido popular e sempre foi um partido irradiante.”

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