Folhetim de voto | Arrumou Passos, toma a IL, invadirá o Chega: Montenegro no governo dos luíses

6 jun, 08:08
Luís Montenegro e André Ventura (José Sena Goulão/Lusa)

Os sessenta ministros e secretários de Estado são os luíses que o país deixou trabalhar. Ainda não há programa de governo, mas já há lanças apontadas

Finalmente, um discurso programático. Luís Montenegro tomou posse e mostrou ao que vem: depois de voltar a enterrar Passos Coelho com a vitória eleitoral, vai invadir o terreno da IL e desapossar o Chega do discurso.

1. Subsidiados: vão trabalhar

Descubra as diferenças entre isto…

“Queremos uma sociedade onde valha mais a pena trabalhar do que não trabalhar. E onde aqueles que não queremos deixar para trás e precisam da nossa solidariedade devem também corresponder, no mesmo sentido, com a sua solidariedade para com todos nós”. Luís Montenegro, 5 de junho de 2025

… e isto.

“Há outros que acumulam tantos subsídios e prestações que chegam a ter mais rendimento do que muitos portugueses que vivem do seu trabalho, do seu esforço e do seu emprego. (…) Aqueles que recebem a solidariedade da sociedade, em algum momento importante devem retribuir com solidariedade para aqueles que mais precisam.” Pedro Passos Coelho, 16 de março de 2010

Não se trata de revivalismo, mas de mostrar duas coisas: que o Chega radicalizou as palavras mas não inventou nenhuma diatribe contra subsídios; e que Montenegro se tornou um intuitivo intérprete do ar dos tempos.

A declaração da tomada de posse não detalha, no entanto, as políticas concretas. Se significarem o mesmo que Passos então enumerou, então quem recebe apoios sociais terá de passar a desempenhar trabalho ocupacional em juntas de freguesia e os seus apoios deixam de ser renovados automaticamente.

(E isto também poupa dinheiro, já lá vamos.)

Ou então, isto:

“Quem trabalha e mata a fome não come o pão de ninguém, mas quem come e não trabalha sempre come o pão de alguém”. Gabriel o Pensador, da música “Supertrabalhador”, 2007

 

2. Imigrantes: se incumpres, vai para a tua terra

A imigração continuará a ser um tema político central, como se verá brevemente nas eleições autárquicas. Também aqui, Montenegro anunciou que “receberemos de braços abertos quem venha trabalhar” mas haverá “retorno” e “repatriamento” para quem não cumprir “as regras” e não respeitar a “nossa cultura” e os “nossos hábitos de convivência social”.  

A composição do governo reflete esta aposta. Por um lado, o secretário de Estado Rui Armindo Freitas alarga nominalmente a sua pasta à Imigração, reconhecendo e assumindo mais relevância. Por outro lado, ganhando essa pasta mais força, ela continua fora do Ministério da Administração Interna, onde entra uma nova ministra ligada à defesa dos direitos humanos. Quanto a imigrantes, os direitos ficam no MAI, os deveres na Presidência. Não é por acaso.

A nova ministra terá, no entanto a responsabilidade no reforço na segurança, área em que o discurso de Montenegro preconiza reforços de meios de policiamento de proximidade e talvez alterações legais de reforço de penas.

 

3. Trabalhadores: descer o IRS

Este ano, é garantido, o IRS vai voltar a descer. É a forma de o governo cumprir não só a promessa eleitoral como disputar o terreno à Iniciativa Liberal e ao Chega.

(Isto significa, no entanto, menos receita. Já lá vamos.)

 

4. Defesa: aumentar investimento

Ou muito nos enganamos ou a estratégia portuguesa é ser de novo o bom aluno da Europa para tentar capitalizar não só simpatia diplomática junto da UE, EUA e NATO mas também atrair investimentos. Enquanto por exemplo Espanha diz que 2% do PIB em gastos militares é mais do que suficiente, Montenegro antecipou esse objetivo para este ano, depois de o novo governo já ter apontado o objetivo de 3,5%.

Mesmo estando estes gastos fora dos limites do défice (mas não fora do défice) e sendo parte deles financiável por dívida europeia, esta opção possivelmente fará adiar outros investimentos públicos (como o novo aeroporto….) e obrigará a cobrar mais impostos ou prescindir de outras despesas.

(Pois, mais investimento e despesa do Estado, já lá vamos)

 

5. Reforma do Estado: mudar de vida

Depois de Gonçalo Matias ser a grande surpresa entre os novos ministros, Bernardo Correia é a grande surpresa entre os secretários de Estado. Está reunida uma grande equipa para pensar a digitalização do Estado, a simplificação, a utilização da Inteligência Artificial. Assim tenha poder.

Porque reformar o Estado é enfrentar grupos de interesse e põe em causa empregos e tachos, direções gerais, procedimentos, receitas, taxas, licenças. Não há outra forma de o fazer. Mas não há forma de o não fazer: para que a economia avance, as empresas invistam, os serviços públicos melhores, é preciso reformar o Estado. Como? Não fazemos sequer ideia se Montenegro faz sequer ideia. Sabemos que já tem equipa.

Há duas maneiras de um Estado funcionar na relação com os cidadãos e empresas: ou, como acontece hoje em Portugal, desconfia de todos e por isso a todos exige provas, documentos, licenças, verificações, paralisando qualquer decisão e estabelecendo labirintos de burocracia; ou, como acontece em países anglo-saxónicos, confia nos cidadãos e nas empresas, agiliza processos e, se alguém incumprir, é punido rápida e severamente por um sistema judicial eficaz. Para Portugal passar do primeiro para o segundo modelo, precisa também de um sistema judicial rápido e funcional. Não há economia melhor sem justiça – administrativa, comercial, de concorrência – eficaz.

E é aqui que entra o dinheiro, o aumento da despesa, a queda da receita que fomos falando acima. Porque a reforma do Estado irá com toda a certeza exigir mais investimento público e precisará de descer a despesa pública. Até porque as contas públicas o vão exigir.

Temos o maior número de funcionários públicos de sempre e, no governo anterior, Montenegro aumentou muito a despesa pública. A travagem da economia e a descida de impostos não permite continuar a distribuir. É também por isso que Montenegro precisa de uma reforma do Estado: para reduzir despesa. Ora, neste momento, tem contexto político para isso, porque a viragem à direita parece representar também um cansaço com subsídios (aos “outros”, claro) e com tanta despesa do Estado.

Epílogo: isto foi só o prólogo

Montenegro está mais forte e tem um governo que parece melhor do que o anterior (apesar da teimosia na Saúde e de falta de noção do ridículo na Cultura) – e, sobretudo, tem um programa de transformação.

Esse programa também representa uma estratégia política e um mapa de ocupação de espaço partidário: depois de matar o fantasma do regresso de Passos Coelho com a vitória nas eleições, Montenegro apropria-se do programa da Iniciativa Liberal (menos Estado, menos burocracia, menos impostos, menos apoios sociais). Para conseguir à direita o que Costa conseguiu à esquerda, falta-lhe invadir o território do Chega. É entre Ventura e Montenegro que haverá uma batalha campal nesta legislatura.

Resta a relação com o Presidente da República, que está em modo de saída e ontem começou a ditar o seu legado para que alguém o escreva. O fim do segundo mandato de Marcelo está a ser penoso, mas isso é tema para outro lado. Fica apenas uma nota, a ferroada de que Montenegro ganhou a validação ética e política nas eleições - mas não a jurídica. O procurador-geral da República, sentado na sala, ouviu em silêncio.

Montenegro acabou mal o governo anterior e começa bem este. Está de acordo com o ar dos tempos e a impor o debate político. Daqui a nada, voltará a dizer que está a adorar ser primeiro-ministro. Vê-se na cara dele.   

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