Dois especialistas explicam o que correu mal, não agora, mas muito antes, aproveitando para deixar alertas para o futuro
Carlos da Câmara é um dos maiores especialistas em Climatologia do país e, em 20 anos de carreira, nunca viu nada parecido com o que está a acontecer desde o fim de semana em Portugal, onde arderam, só desde domingo, cerca de 70 mil hectares.
Em declarações à CNN Portugal, o especialista explica que as condições como humidade e de vento estão integradas num “sistema de índices de perigo meteorológico de incêndio”, uma fórmula científica que tenta prever “o estado dos combustíveis finos”, o primeiro “alimento dos incêndios”.
“Como climatologistas, nós calculamos esses índices numa base diária em longos períodos de tempo. Os dados mostram que se eu olhar para distritos como Aveiro ou Viseu, e olhar para os últimos 24 anos, o que acontece é que Aveiro tinha um índice que estava em primeiro lugar”, afirma.
O mesmo é dizer que uma situação deste género não se verificava há 8.650 dias em Portugal. Ao lado, Viseu estava em segundo lugar, acrescenta o especialista, sublinhando que os outros distritos estão ainda nos primeiros lugares e, mesmo junto ao Tejo, onde a situação não levanta problema, os distritos ocupam posições dentro das primeiras 100 em mais de oito mil.
“Do ponto de vista climatológico esta é uma situação que não teve lugar e que explica porque é que, com condições meteorológicas destas, temos incêndios com esta magnitude”, reitera, garantindo que estes eram valores impossíveis de prever com este nível de detalhe.
Trata-se, para Carlos da Câmara, de um “cocktail explosivo”, sendo que a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) e o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) já tinham dado o aviso ao Governo a 12 de setembro, acionando-se dias depois uma situação de alerta vermelho.
António Bento Gonçalves concorda com esta visão. O professor do Departamento de Geografia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho assume à CNN Portugal um tom sarcástico: “Se isto fosse um filme poderíamos apelidá-lo de ‘Uma Crónica de Uma Catástrofe Anunciada’”.
O especialista alerta que existe demasiado combustível no país, nomeadamente num ano de muita chuva na primavera e de tempo seco depois. É o chamado “piro-ambiente”, em que “no inverno chove e a vegetação cresce, e no verão o tempo quente coincide com o tempo seco”.
“Cresce no inverno para queimar no verão. Por omissão, por ação, durante décadas fomos, na prática, transformando o nosso país num palheiro”, afirma, assinalando que essa “palha” arde em catadupa quando existem estas condições excecionais.
O que acontece, diz António Bento Gonçalves, é que a dimensão do combustível no terreno deixa a situação impossível de ser combatida por parte dos bombeiros.
Assim, e numa reflexão para o futuro, é preciso “coragem política” para uma aposta no “depois”, nomeadamente pelo fim das “manchas de monoculturas”, sob pena de ficar impossível de apagar, até porque “a manta é curta”.