Com nomes experientes a ajudar, há um campo de treinos neste sábado e uma primeira competição em novembro. O processo é complicado, do ponto de vista desportivo mas também institucional. Sem poder ter ainda o nome de seleção nacional, chama-se Portugal Elite e está a fazer o seu caminho
O estádio do Marinhense vai viver neste sábado um dia dedicado a uma variante do outro futebol, o americano. É lá que vão juntar-se os jogadores na base de uma futura seleção portuguesa de flag football, que foi incluído no programa dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 2028. É complicado o caminho desportivo, numa modalidade com pouca representação por cá, e também institucional, ainda sem uma Federação nacional com o estatuto reconhecido. Como 2028 não está assim tão longe, quem se dedica ao flag decidiu pôr desde já mãos à obra.
«Estamos a fazer este processo para termos tudo preparado e já alguma competição, para que quando formos reconhecidos internacionalmente possamos participar num Europeu ou num Mundial e sonhar com os Jogos Olímpicos em 2028.» Francisco Pereira, que é jogador, manager e faz «um bocado de tudo» neste projeto, resume assim o processo, que já envolveu dois campos de treinos e começou com uma primeira lista de 50 jogadores, a qual está agora reduzida aos 30 convocados para o «camp» deste sábado na Marinha Grande.
Experiência norte-americana para ajudar
A lista será depois reduzida a 15 jogadores, que irão participar na sua primeira competição em novembro, em Barcelona. O trabalho passou também pela procura de patrocinadores e pela criação de um equipamento com as cores nacionais. Não pode é chamar-se seleção. O nome, para já, é Portugal Elite.
O projeto conta com o apoio de quem tem muita experiência neste desporto. Entre eles Leandro Veal, antigo jogador da NFL a viver em Portugal, e Vince Machi, também jogador, que já orientou a seleção da Grã Bretanha, trabalha com a Federação da Dinamarca e integra a direção da Liga norte-americana da modalidade.
Vince é o treinador principal. Como Leandro, também ele descobriu Portugal há uns anos e passou a dividir a sua vida entre o Minho, onde tem casa, e os Estados Unidos. «Passo o verão em Portugal, adoro o país e as pessoas», conta ao Maisfutebol. Adepto incondicional do flag football, começa por falar sobre o desporto que «simplifica» muitos dos conceitos do futebol americano tradicional, de contacto ou tackle, na terminologia que diferencia as duas versões. E que, diz, potencia o lado mais técnico do futebol americano.
Flag, o jogo onde «todos são playmakers»
«O flag é na mesma um desporto físico, embora não haja muitas concussões ou lesões graves. Mas é rápido, é entusiasmante e acho que reflete muito do que as pessoas gostam de ver na NFL», afirma. «É uma simulação real do que acontece nas posições do futebol americano que requerem mais perícia. Quando se é novo e se aprende a jogar futebol americano, toda a gente quer ser um receiver ou um quarterback, alguém que joga com a bola. E no flag todas as posições são assim, todos são playmakers.»
O flag joga-se num campo mais curto, requer apenas cinco jogadores e distingue-se por não ter contacto. É através das duas fitas que os jogadores usam à cintura – a flag na origem do nome –, que se faz a interceção: o jogador é parado se for removida a fita.
«Há sempre contacto, mas é o mesmo do futebol, a disputa de bola. Não há a placagem, o bloqueio, esse tipo de componentes do futebol americano. A base é a mesma, o objetivo é o mesmo, mas é simplificado», explica por sua vez Francisco Pereira.
O que tem o flag a ver com o «soccer»
É um desporto em crescimento, acrescenta. «Os Jogos Olímpicos vão dar muita visibilidade a esta vertente, que eu penso ter ainda mais margem de progressão a nível mundial do que o futebol americano», diz, falando no número potencial de praticantes. «Não só pelos custos associados. É muito mais simples criar uma seleção de flag, também pela dificuldade a nível logístico de mover um plantel de 50 jogadores, como é o do futebol americano. Há muita gente que fala do flag como a formação para o tackle. Mas eu costumo dizer que o flag é o princípio, o meio e o fim do futebol americano.»
Vince Machi reforça a ideia e para isso faz uma comparação com o «nosso» futebol. «Uma das razões por que o soccer é o desporto mais popular do mundo é porque só precisa de um pouco de espaço e de uma bola. No tackle é preciso muito espaço, muito equipamento. No flag só e preciso uma bola e algum espaço.»
Do hóquei em patins ao flag
Francisco Pereira tem o seu próprio exemplo para dar sobre a forma como o flag pode ser interessante mesmo para quem começa por ser atraído pelo futebol americano na versão tradicional. Ele, que até começou por jogar um desporto que «não tem nada a ver», hóquei em patins, converteu-se rapidamente. «Era guarda-redes de hóquei. Mas o meu pai morou muitos anos em França, lá é muito forte o râguebi e quando dava o Torneio das Cinco Nações e Mundiais víamos sempre na televisão. Também íamos acompanhando a NFL. Por causa da paixão pelos Estados Unidos, pelos filmes e essas coisas, foi um desporto que sempre me atraiu.»
Foi uma visita a uma feira de desporto no Porto que o levou a experimentar. «Estavam lá os Porto Renegades, a primeira equipa de futebol americano em Portugal, a fazer divulgação. Tinham capacetes, umas bolas, uns panfletos. E nós ficámos interessados.» Tinha 14 anos e foi logo encaminhado para o flag. Não era o que queria na altura. «Queria o contacto, vestir as ombreiras. É isso que os miúdos querem. Mas disseram-me que com aquela idade ainda não podia jogar contacto. Fiquei um bocado frustrado com as fitas na cintura e isso. Mas depois de experimentar o flag não quis outra coisa. Cheguei a praticar ao mesmo tempo flag e hóquei, mas acabei por deixar o hóquei, porque descobri a minha paixão.»
Uma Liga e duas centenas de praticantes em Portugal
Com o pai, decidiu criar em 2012 a sua própria equipa, «para ajudar o desporto a crescer». «Na altura só havia duas equipas de flag. Criámos uma equipa em Gondomar, os Hammers, que existe até hoje. Foi a única equipa de flag que não deixou de existir naquela altura da pandemia e tem vindo a crescer», diz. Os Hammers têm equipa masculina e também feminina, num desporto que se distingue também pelo facto de poder ter equipas mistas. «Na Liga nós temos uma vertente a que chamamos Open, em que qualquer pessoa de qualquer idade e qualquer género pode participar. É uma particularidade interessante do flag, que não existe noutros desportos.»
Em Portugal há um campeonato de flag com mais de uma década de existência, que teve um revés no tempo da pandemia e voltou agora. «Começámos com quatro equipas. Fomos crescendo, até que tentámos transitar a organização da Liga para a Federação. Na altura, com o aumento de burocracias e de custos de inscrições, seguros e tudo e mais alguma coisa, e ainda por cima com a pandemia a ajudar, muitas das equipas desaparecerem», conta Francisco Pereira. «Mas no ano passado voltámos a reerguer a Liga. Tivemos 12 equipas a nível nacional e este ano esperamos ter um aumento de equipas.»
«O jogo português está na infância», mas «há talento»
Em Portugal há, estima, 150 a 200 praticantes. Todos amadores, naturalmente. Francisco Pereira, por exemplo, é designer gráfico, e vai conciliando o trabalho com o flag, em campo e fora dele.
É uma base de recrutamento curta. Mas tem margem de progressão, na opinião do treinador Vince Machi. «O jogo português está na infância nesta altura, mas há muito entusiasmo e grandes atletas. O meu papel é trazer algum do meu conhecimento e potenciar estes jogadores para que possamos organizar-nos e maximizar o seu talento », resume. «Há seguramente talento, também na vertente do tackle e entre outros atletas. Já há atletas a jogar flag e temos de os educar sobre como o fazer. Acho que também há vários atletas que podem estar a jogar outros desportos e talvez possam passar para o flag e ter uma oportunidade de estar em 2028 nos Jogos Olímpicos a representar o seu país.»
Essa é a grande meta, mas Vince também admite que será muito complicado. «O primeiro objetivo seria estar no Europeu no próximo ano. Se estes jogadores tiverem a experiência de jogar torneios e de fazer as coisas que estamos a tentar fazer com este programa, há talento para ser um das melhores equipas na Europa. Dependerá de quão duro as pessoas quiserem trabalhar e de outros atletas quererem fazer essa transição. Penso que chegar aos Jogos Olímpicos é muito difícil, mas possível.»
Há também muitas incógnitas sobre qual será o caminho para os Jogos Olímpicos. «Nesta altura não sabemos quantas equipas serão convidadas», diz Vince. «De qualquer modo, nos Jogos Olímpicos não haverá a oportunidade de jogar tackle, mas sim flag. Só o facto de haver essa oportunidade devia ser suficiente para qualquer atleta que queira deixar a sua marca.»
O novo presidente e os problemas da Federação que ainda não o é
Há mais factores a complicar o processo em Portugal, desde logo do ponto de vista organizativo. A Federação Portuguesa de Futebol Americano não tem estatuto de utilidade pública nem tem ainda, por arrastamento, reconhecimento internacional. Não tem aliás muitas coisas.
A organização foi até há uns meses presidida por Rui Pedro Soares, também líder da B SAD, que se demitiu. Houve eleições na semana passada e Pedro Esteves foi o presidente eleito. Ao Maisfutebol, assume que a inclusão do flag football no programa olímpico, conhecida em outubro passado, tornou a questão da legitimidade da Federação mais premente. Mas há muitas questões para resolver na instituição, diz.
«O que nós temos é uma associação com o nome de Federação. Ainda tem de ser feita uma grande avaliação do que foi feito na associação. Não temos um relatório e contas aprovado há anos, por exemplo. Não temos um website», observa o dirigente, eleito por um mandato de quatro anos. «Mas fui eleito no sábado, é tudo muito recente. Temos de perceber qual é o estado financeiro da Federação. Há pessoas que me perguntam o que há a fazer primeiro e eu sinto que venho para uma associação que foi criada ontem. Até há pouco tempo não havia assembleias gerais. Era tudo através de mensagens de Whatsapp. A instituição tem sido gerida a um nível abaixo do amador, no meu entender. Tem havido uma grande instabilidade. Nos últimos 14 anos, já houve quase dez presidentes diferentes.»
«Uma corrida contra o tempo»
Pedro Esteves quer tentar apanhar o comboio da qualificação olímpica e vê o trabalho que está a ser feito como o ponto de partida. «Este campo é uma preparação do que poderá ser no futuro uma seleção nacional oficial. Queremos trabalhar rapidamente para podermos no mínimo tentar ir à qualificação para os Jogos Olímpicos, também como forma do reconhecimento do trabalho que tem sido feito no flag football em Portugal», afirma.
Para isso é preciso, como diz, «trabalhar para ter o estatuto de Federação de utilidade pública». «Estou confiante que pelo menos neste mandato isso será possível», estima, defendendo que tem uma «equipa coesa» e de «pessoas muito competentes» e que isso lhe dá confiança para o trabalho pela frente. Mas, no que diz respeito ao flag football, o tempo não joga a favor. «Estamos numa corrida contra o tempo para tentar, lá está, ter no mínimo ter uma seleção nacional preparada para tentar qualificar-se para os Jogos Olímpicos. Claro que estar nos Jogos Olímpicos vai ser complicado, porque o nível praticado em Portugal talvez seja um pouco abaixo dos restantes países. Mas queremos obviamente tentar formar uma seleção para ir à qualificação.»
Não falta assim tanto para 2028, como nota Francisco Pereira. «Vai ser complicado, não digo que seja impossível. Mas precisamos também que a Federação consiga fazer o seu trabalho. Sem isso, não vale a pena o que estamos a fazer, porque depois não podemos mostrar o trabalho nas competições internacionais.»
Não podendo chamar-se seleção, é Portugal Elite
Por agora, a equipa que está a ser formada não tem estatuto de seleção nacional. «Estamos a chamar-lhe Portugal Elite e iremos competir em Barcelona como se fossemos um clube», diz Francisco Pereira. Há outras seleções a fazer o mesmo, para procurarem ritmo competitivo, e é isso que os portugueses esperam ganhar com esta primeira experiência internacional: «Estamos a conseguir alguns patrocinadores que irão financiar a ida a Barcelona e aí iremos competir com equipas internacionais do México, Panamá, Estados Unidos e algumas da Europa. Vamos competir a nível mundial e já teremos um bocadinho de noção do que nos espera.»
O campo deste sábado é mais uma fase desse processo. Haverá mais até setembro, altura em que será fechada a lista de convocados. «Vão ficar só 12 a 15 jogadores que farão parte da lista final, que é um plantel de flag. Os outros ficam como reservas e iremos fazer uma espécie de equipa B. Até para termos mais gente em treino para situações de jogo e mesmo em caso de lesões», explica Francisco Pereira.
No grupo de responsáveis por este projeto há quem acumule a função de jogador e treinador. Francisco Pereira diz que não se envolve na seleção de jogadores, até para não ser juiz em causa própria. «É sempre um pouco complicada essa parte», ri-se, a dizer que tem esperança de ser convocado para a lista final. «Espero que sim. Pelo menos passei a esta segunda fase, vamos ver se chego à última fase.»