Uma volta pelo cinema do passeante Jorge Silva Melo

Por Maria João Madeira
15 mar 2022, 12:21
Jorge Silva Melo. "E Não Se Pode Exterminá-lo?" – Cenas de Karl Valentin, co/r: Solveig Nordlund, 1979 (156’) [a partir do espectáculo com o mesmo nome do Teatro da Cornucópia; em cinco episódios]. Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Mais conhecido nos últimos anos pelo teatro, foi também um homem do cinema - e de tantos saberes e fazeres na cultura. Jorge Silva Melo morreu esta segunda feira, 14 de março. Aqui publicamos um texto de Maria João Madeira, programadora da Cinemateca Portuguesa (que irá retomar a retrospectiva interrompida pela pandemia), originalmente publicado na revista Bica em abril de 2020, à volta da sua vida e do seu cinema. Ou da vida e do cinema.

Um flâneur, dizia-se aprofundando o sentido errante, é um pintor da realidade no movimento fugidio de cada instante, um espírito artístico independente e apaixonado, alguém dotado de uma imaginação enérgica. Um passeante pela vida, escreveu Jorge Silva Melo há pouco mais de um par de anos quando foi buscar a palavra para si a propósito de um filme-espécie-de-auto-retrato. Já antes exprimira a ideia, num texto em que fala de gatos. Ainda Não Acabámos, como se fosse uma carta, chama-se esse filme, composto como uma missiva endereçada em Julho de 2015 a um jovem actor para que Silva Melo continuasse a mostrar o que via. Interessou-o sempre, mostrar o que via, movido pelo sentido que cedo encontrou numa frase de Cézanne citada por Merleau-Ponty, que se ouve no primeiro diálogo da sua terceira longa-metragem em 1988, Agosto: “Há um minuto do mundo que passa. Há que o pintar na sua realidade.”

O cinema de Jorge Silva Melo, nos últimos anos mais conhecido como homem de teatro, ele que é um homem de tantos saberes e fazeres na cultura das últimas décadas em Portugal, tão singular no multíplice modo de vida intelectual, persiste em ser um território reservado. Circunstâncias variantes a cada filme, que em alguns casos chegaram a não ter estreia comercial, determinaram que fossem circulando pouco e assim atingindo pouco a visibilidade que merecem na exacta proporção do direito do que é de todos. A condição rara da obra irradia uma outra vertente, não contraditória e essencial: a da importância intrínseca da sua existência. Única e forte como, nos verdadeiros casos, o sabe ser o cinema que é frágil nos termos da sua possibilidade, nos modos de produção e recepção, tantas vezes ruins no cinema português das décadas de 1980 e 90.

"Ninguém duas vezes", 1983 (106’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

De uma obra que não se conta em números, e que carrega a marca  reversa do que não chegou a existir, o inventário favorece o panorama. A filmografia principia colectiva, com a longa-metragem co-realizada com Solveig Nordlund em 1979 a partir do espectáculo com o mesmo nome do Teatro da Cornucópia, que a co-produziu com a cooperativa Grupo Zero – E Não Se Pode Exterminá-lo? Cenas de Karl Valentin. 1980 e 2000 balizam temporalmente as cinco longas-metragens de ficção até hoje realizadas por Silva Melo: Passagem ou a Meio Caminho, Ninguém Duas Vezes, Agosto, Coitado do Jorge, António, um Rapaz de Lisboa constituem o núcleo da ficção, só prolongado no formato curto com a espécie de posfácio diferido de A Felicidade (2007). Mostram actores e personagens em situações de impasse ou transição em lugares e tempos que se cruzam, evocando outros tantos, reenviando para realidades individuais e políticas, os estados que foram sendo os das coisas e se atravessam nas almas humanas.

"Coitado do Jorge", 1992 (101’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Outra frente, aberta em 1995 sem programa, propõe novo mapa de navegação em que conflui a dimensão cronista do espírito e da prática de Jorge Silva Melo na escrita: entre esse ano e 2017, uma série de retratos dão a ver os trajectos e as obras dos artistas plásticos António Palolo, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, Nikias Skapinakis, Bartolomeu Cid dos Santos, António Sena, Ângelo de Sousa, Ana Vieira, José Guimarães, Sofia Areal, Fernando Lemos. E ainda a experiência de grupo da cooperativa Gravura (criada em 1958), que é desse conjunto iminentemente geracional de retratos, o retrato de conjunto; e o da actriz Glicínia Quartin, e o de Jorge Silva Melo na primeira pessoa. Neste rol à data, o último par de filmes regista dois espectáculos teatrais de peças de Pau Miró e Lluïsa Cunillé encenadas pelos Artistas Unidos em 2015. Faz-se raccord com o título inicial “da Cornucópia”, protagonizado por Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra, “com quem tudo começou”, diz o narrador da encenação do seu próprio trajecto em Ainda Não Acabámos.

"Coitado do Jorge", 1992 (101’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Da cine-biografia

Como frequentemente sucede com quem tem um percurso cheio, Jorge Silva Melo apresenta-se parco nas notas biográficas. No programa do espectáculo em que andou em digressão em Março deste ano, seguindo as voltas clássicas da comédia sofisticada das Vidas Íntimas de Noël Coward, uma linha: “fundou em 1995 os Artistas Unidos de que é director artístico.” É um facto, e tem sido a partir desse centro que de então para cá se tem espraiado. A companhia de teatro, que teve uma primeira vida no espaço do Bairro Alto d’A Capital, cujo despejo deixou uma ferida por sarar, mora agora no Teatro da Politécnica, onde continua a alinhar, aos espectáculos, a produção de filmes, a organização de exposições, e ainda a promover a edição de uma preciosa série de “Livrinhos de Teatro”. É um colectivo formada sob o signo de Hollywood, a Hollywood dos longínquos tempos pioneiros de Griffith, Chaplin, Mary Pickford e Douglas Fairbanks, que em 1919 fundaram a United Artists em defesa do interesse artístico, pelo cinema.

O ganho das artes foi um dado de partida para Jorge Silva Melo, nascido em 1948, em Lisboa, para se fazer leitor, espectador, crítico, professor, autor, cronista, tradutor, actor, argumentista, realizador, dramaturgo, encenador, director artístico. Sinalizam-se os ofícios, porventura em falha, e com eles o que fica por discorrer, por exemplo, as passagens por Londres, Paris, Berlim ou Milão ou Roma, em que também viveu, estudou, estagiou, trabalhou, vagueou. Mas tem de lembrar-se que integrou o Grupo de Teatro de Letras entre finais dos anos 1960 e 1970 e que entre 1973 e 1979 fundou e dirigiu, com Luis Miguel Cintra, o Teatro da Cornucópia, revolucionando a cena teatral ainda sob o chumbo salazarista. Que os Artistas Unidos nasceram a partir do grupo que estreou, em 1995, uma das suas peças originais, o António, um Rapaz de Lisboa, que mais tarde variaria em filme. Que escreveu o libreto para uma ópera de 1992 – Le château des Carpathes (baseado em Júlio Verne), de Philippe Hersant. E que, além das peças, tem três livros publicados, em que fala na primeira pessoa das décadas vividas a pensar e a fazer, numa insistência feliz e teimosa, palavras dele: Deixar a Vida (2002), Século Passado (2007) e E A Mesa Está Posta (2019) formam o trio de colectâneas em que regressa a escritos e memórias, convoca pessoas e afinidades, ziguezagueando por lugares e com o tempo. 

"Conversas com Glicínia", 2004 (55’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

É nessas páginas escritas, e no seu parente filmado, Ainda Não Acabámos, que se encontra Jorge Silva Melo por Jorge Silva Melo. Aviso feito na epígrafe de Século Passado, que cita palavras de Simone Beauvoir: “A nossa vida real é, em mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção.”

Irmão doze anos mais novo de Maria Adélia Silva Melo, que o apresentou em criança aos círculos de pensamento e acção cultural que frequentava, Jorge começou por aí. Na alegria de uma infância vivida a circular – de facto ou na sua imaginação – por cinemas, teatros, fachadas de cartazes coloridos, programas e páginas de jornais recheados de títulos de filmes. Mais tarde seriam também os cafés, as livrarias, as galerias, em que se encontravam escritores, cineastas, artistas. Espectador de cinema desde pequeno, cresceu com a cinefilia. Também é ele a dizê-lo no retrato filmado, que insiste na consciência política e na guerra colonial portuguesa, no teatro, na aventura dos Artistas Unidos, deixando fora de campo a sua vida como realizador de cinema. Mas não a cinefilia, trazida pela agilidade viril de Burt Lancaster e o júbilo do Technicolor do Pirata Vermelho de Siodmak, que aí rasgam o cinzentismo das imagens de actualidades da visita da Rainha Isabel II a Portugal em 1957.

“O cinema, escola do paraíso onde se aprendia a valentia”, ouvimo-lo dizer sobre os planos das Caraíbas da Warner Bros. E a humilhação e a redenção pela amizade, que aprendeu no Rio Bravo de Hawks, conta ele voltando ao seu filme dos filmes. Num texto recente para uma “Carta branca sem receita”: “Sim, à medida que envelheço mais sei que este filme me fez, teria eu doze anos e vi-o com o meu pai um domingo à tarde. A gota de sangue no copo de cerveja, geometria perfeita e alucinada.” 

António Sena: "A mão esquiva", 2009 (60’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Os westerns e Hawks, tem dito e redito. Mas também o fizeram as lições da dignidade, da justiça, da honra do Sergeant Rutledge de Ford, e as da guerra e da morte, e da morte por amor, do erotismo, as dos “filmes antigos” vistos em cópias muitas vezes riscadas entre os assobios dos espectadores das plateias de reprise de quando o cinema era energicamente popular, mesmo se os cowboys de Gary Cooper e John Wayne já estavam feridos e já precisavam de óculos. Ou Kim Novak bailava com William Holden na dança nocturna do Picnic de Logan, iluminada à beira-rio por oscilantes balões de papel de que Jorge Silva Melo gosta tanto “que quis imitar este plano”, como diz, falando do seu baile de Agosto, numa das pontas que ficam soltas em Ainda Não Acabámos.

Os seus textos sobre cinema, muitos deles coligidos em Século Passado, são escritos de amador (um amador de coisas amadas), quase sempre implicando a primeira pessoa, tal como os seus “filmes cronistas”, sem que o lastro pessoal dispense uma rara e aguda lucidez observadora. Mais, reflectem a amplitude do gosto, que reconhece obras-primas, o fulgor do cinema americano e o do italiano, como reconhece obras menos apregoadas, filmes mais secretos, e mesmo os que, menos superlativos, têm gestos de fulgor, o esplendor dos actores, logo os actores, sempre os actores. Reflecte sobre eles num texto fulcral de 1987, “Actor/Actor” observando “a vida que nos filmes deixaram”. Como Anna Magnani, que viu no espanto do que recorda como o seu primeiro filme, L’Onorevole Angelina, de Luigi Zampa. Como Anna Karina, “a actriz que nos interpretou quando fomos felizes”, sobre quem recentemente escreveu in memoriam numa crónica de jornal para o Público.

Ângelo de Sousa: "Tudo o que sou capaz", 2010 (60’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

A escrita foi a sua primeira frente no cinema, quando começou a fazer crítica por volta dos quinze anos no suplemento juvenil do Diário de Lisboa, depois n’O Tempo e o Modo, levado por João Bénard da Costa, ou mais tarde na revista Crítica, ao lado de Eduarda Dionísio. Essa sua veia teria outras vias, a última das quais como colunista do (ex)suplemento Mil Folhas do Público. Cultivado na cinefilia, sobretudo francesa, nas salas e cineclubes de Lisboa, Jorge Silva Melo estudou cinema depois da Faculdade de Letras, como bolseiro da Gulbenkian na London School of Film Technique, que na altura parecia prometer mais do que Paris, a cidade que conhecia de cor do mapa que tinha pregado na parede do quarto lisboeta. Londres cumpriu no teatro (visto à noite), mas não no cinema (das aulas diurnas). 

Ana Vieira: "E o que não é visto", 2011 (56’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Entretanto, já se iniciara assistente de filmes alheios, com a intensidade da aventura das primeiras obras de João César Monteiro, Sophia de Mello Breyner Andresen e, sobretudo, Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço. Também na Pousada das Chagas, de Paulo Rocha, de quem ficaria muito próximo, voltando a colaborar com ele n’O Desejado, sendo por ele dirigido em A Ilha dos Amores, filmando-o num pequeno papel em Passagem ou a Meio Caminho. Regressa de Londres na fase final do apoio à produção do Centro Português de Cinema dos “anos Gulbenkian”, e trabalha com António-Pedro Vasconcelos e Alberto Seixas Santos nas suas primeiras longas-metragens – Perdido por Cem, Brandos Costumes. No seio do Grupo Zero, colabora com a também iniciante Solveig Nordlund em Música para Si e Viagem para a Felicidade.

Na sua vida de professor da Escola de Cinema, corriam os anos 1980, conviveu com vários dos realizadores da geração seguinte. Com Manuel Mozos, Edgar Pêra, João Pedro Rodrigues, João Guerra, Pedro Caldas viria a trabalhar, autor de argumentos dos filmes de uns, agregador deles e outros nas equipas dos seus próprios filmes, em que igualmente se encontram João Canijo ou Pedro Costa. Foi a propósito dessa vocação de interlocutor, que certa vez afirmou que o seu ideal seria provavelmente a oficina do pintor renascentista, com os seus aprendizes. 

"Ainda não acabámos, como se fosse uma carta", 2016 (78’). Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

O diálogo com os outros, mais novos e mais velhos, “os que vieram antes”, é uma condição da vida passeante de Jorge Silva Melo, que também os créditos dos seus filmes reflectem, reunindo nas mesmas fichas técnicas e artísticas veteranos e noviços, elencos de peso, elencos heterogéneos, elencos improváveis. Dois exemplos? A aparição de José Afonso como pescador de beira-rio no final de Ninguém Duas Vezes; a estreia no cinema de Pedro Hestnes, o rapaz fugidio de Agosto.

No cinema, aconteceu-lhe ser actor em pequenos papeis de filmes de César, Rocha, Seixas, João Botelho, Manoel de Oliveira, José Álvaro Morais, Vítor Gonçalves, José Nascimento ou Joaquim Pinto. Tirando a Ilha dos Amores, consta que não gosta particularmente de se ver nesses reflexos, e nos seus filmes, em que entra pela banda sonora ou na da imagem, tem por hábito não se creditar. De descobrir e sugerir actores sim, e muito, com todo o gosto. Fê-lo muitas vezes. Relata João Bénard da Costa, numa entrada de dicionário, que João César Monteiro pensou nele para a personagem de João de Deus, nascida para as Recordações da Casa Amarela, mas que foi Jorge Silva Melo a convencê-lo que João de Deus tinha de ser João César.

Em 1968, dia 21 de Fevereiro, foi preso pela PIDE na manifestação do Dia Internacional contra a Guerra do Vietname. Costuma contar a história lembrando que trazia no bolso dois bilhetes para ir ver a estreia de The Patsy de Jerry Lewis ao Éden, e que quando saiu da temporada na cadeia uma notícia do Diário de Notícias o levou de cabeça rapada a uma recepção à Embaixada de França, onde Jacques Tati era cerimoniosamente acolhido por ter vindo a Lisboa estrear Playtime. Passou com Tati os quatro dias de estadia lisboeta. Tempos modernos.

Agora é agora

Num momento especialmente forte de Ainda Não Acabámos, depois de citar a carta aberta ao governo português escrita por Medeiros Ferreira a propósito da guerra colonial, de percorrer estantes de livros, bancas de alfarrabista, capas de discos, Jorge Silva Melo protagoniza uma cena excepcional. É uma “one man scene” num “one shot”, um plano de cinema: em fundo, ouve-se a canção escrita por Boris Vian em 1954, Le Déserteur, que Jorge Silva Melo diz em português num longo plano-sequência fixo quase sempre a olhar frontalmente para a câmara. As palavras na respiração justa, a emoção à flor das palavras.

"Jogadores de pau Miró, co/r": Miguel Aguiar, 2017 (68’) [a partir do espectáculo criado pelos Artistas Unidos em 2015]. Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

O movimento revolucionário, como a ressaca da revolução portuguesa de 1974, reflectem-se em Passagem e Ninguém Duas Vezes. O primeiro, de surpreendente registo ensaístico-ficcional, constrói-se a partir da vida e obra do escritor alemão do século XIX Georg Büchner, autor de Woyseck, de A Morte de Danton, do manifesto político O Mensageiro de Hesse, na actualidade portuguesa da década de 1970, esgrimindo a possibilidade da representação. Num após dilacerado, o segundo encara a agonia de um grupo de amigos do período revolucionário português vivido em Lisboa. Em ambos prevalece a figura do artista atormentado que mais ou menos se eclipsa nas ficções seguintes, abertas ao romanesco de Cesare Pavese, em cujo imaginário se baseia Agosto (La Spiaggia), ambientado em meados dos anos 1960 no nortenho Minho rural e na soalheira Arrábida; e Paula Fox, que Coitado do Jorge adapta (Poor George), cercado por chamas de incêndios florestais, como seu “contraponto desolado”. Análise de Silva Melo, que propõe como chave da sua ficção o entendimento dos filmes aos pares. 

Pelo menos até ao coreográfico, vital, angustiado, António que fixa uma Lisboa vadia dos anos 1990. Largadas as visões a meio caminho, de seres confrontados com o desgosto de darem por si enredados no momento de vida que exige a definição contra a largueza das hipóteses múltiplas, António, um Rapaz de Lisboa é o filme tomado pela  juventude que já rondava, assaltante, nas personagens de Pedro Hestnes e Manuel Wiborg em Agosto e Coitado do Jorge

São cinco filmes de muitas personagens, actores, referências, enredos que se seguem ou se sinalizam. São filmes que vão encadeando ideias, deixas, gestos, presenças, movimentos, em que se circula (muitas vezes em trânsito) e que fazem circular (fazendo transitar de uns para outros). Uma imagem: as panorâmicas finais de João Pedro Mamede na cidade lembram os movimentos da câmara que acompanha a energia de Miguel Borges no lisboeta António e o seu eco com o mar azul ao fundo na marginal de Carcavelos em A Felicidade. Um motivo sonoro: o mozartino Exsultate Jubilate

Em Março deste ano, a Cinemateca apresentava a primeira retrospectiva integral da obra de Jorge Silva Melo, a mostrar em paralelo com vinte escolhas de uma carta branca que o próprio sugeriu “sem receita”. “Viver Amanhã como Hoje”, chamou-se à retrospectiva a partir de Shakespeare, versos do Conto de Inverno – “And be a boy eternal.” A retrospectiva foi suspensa quando a vida tal como a conhecíamos foi interrompida virando do avesso os planos. Há-de ser retomada. Este texto, que surgiu para um balanço, torna-se portanto um convite. “Agora é agora” ouve-se em Passagem. To be continued.

 

"Jogadores de pau Miró", co/r: Miguel Aguiar, 2017 (68’) [a partir do espectáculo criado pelos Artistas Unidos em 2015]. Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema



 

Filmografia 

Realização

E Não Se Pode Exterminá-lo? – Cenas de Karl Valentin, co/r: Solveig Nordlund, 1979 (a partir do espectáculo com o mesmo nome do Teatro da Cornucópia; em cinco episódios com a duração total de 156’)

Passagem ou a Meio Caminho, 1980 /  (85’)

Ninguém Duas Vezes, 1983 (106’)

Agosto, 1988 (98’)

Coitado do Jorge, 1992 (101’)

Palolo: Ver o Pensamento a Correr, 1995 (42’)

Joaquim Bravo, Évora, 1935, Etc. Etc. Felicidades, 1999 (58’)

António, Um Rapaz de Lisboa, 2000 (114’)

Conversas com Glicínia, 2004 (55’)

As Conversas de Leça em Casa de Álvaro Lapa, 2006 (160’ / versão “expositiva”)

A Felicidade, 2007 (8’)

A Gravura: Esta Mútua Aprendizagem, 2007 (88’)

Nikias Skapinakis: O Teatro dos Outros, 2007 (60’)

Álvaro Lapa: a Literatura, 2008 (100’)

Bartolomeu Cid dos Santos: Por Terras Devastadas, 2009 (60’)

António Sena: A Mão Esquiva, 2009 (60’)

Ângelo de Sousa: Tudo o que sou capaz, 2010 (60’)

Ana Vieira: E O Que Não É Visto, 2011 (56’)

A África de José Guimarães, co/r: Miguel Aguiar, 2012 (57’)

Nikias Skapinakis (Continuando), 2012 (23’)

Ainda Não Acabámos, como se fosse uma carta, 2016 (78’)

Sofia Areal: Um Gabinete Anti-dor, 2016 (55’)

Fernando Lemos – Como, Não É Retrato?, 2017 (76’)

Jogadores de Pau Miró, co/r: Miguel Aguiar, 2017 (68’ / a partir do espectáculo criado pelos Artistas Unidos em 2015)

O Tempo de Lluïsa Cunillé, 2018 (67’ / a partir do espectáculo estreado no Teatro da Politécnica em 2015)

 

Actor (além dos filmes que realiza e em que participa, quase sempre não creditado)

Conversa Acabada, João Botelho, 1981 (105’)

Silvestre, João César Monteiro, 1981 (118’)

Gestos & Fragmentos, Alberto Seixas Santos, 1982 (87’) / uma voz

A Ilha dos Amores, Paulo Rocha, 1982 (169’)

No Speaking, Luís Fonseca Fernando, 1984 (22’?)

Le Soulier de Satin, Manoel de Oliveira, 1985 (426’)

Vertiges, Christine Laurent, 1985 (111’?)

Uma Rapariga no Verão, Vítor Gonçalves, 1986 (82’)

Repórter X, José Nascimento, 1986 (97’)

O Bobo, José Álvaro Morais, 1987 / uma voz (126’)

Swing Troubador, Bruno Bayen, 1991 (86’)

Das Tripas Coração, Joaquim Pinto, 1992 (67’)

 

Argumento | Colaboração

Sophia de Mello Breyner Andresen, João César Monteiro, 1969 / assistente realização

Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, João César Monteiro, 1970 / assistente, director de produção

Pousada das Chagas – Uma Representação sobre o Museu de Óbidos, Paulo Rocha, 1971 / assistente de realização

Perdido por Cem, António-Pedro Vasconcelos, 1972 / assistente de realização

Brandos Costumes, Alberto Seixas Santos, 1974 (72’) / assistente

Música para Si, Solveig Nordlund, 1978 (Grupo Zero, Teatro da Cornucópia) / colaboração

Viagem para a Felicidade, Solveig Nordlund, 1978 (Grupo Zero) / colaboração

O Desejado ou as Montanhas da Lua, Paulo Rocha, 1987 / adaptação, diálogos

Um Passo, Outro Passo e Depois…, Manuel Mozos, 1990 / argumento

Longe Daqui, João Guerra, 1993 / argumento

O Pedido de Emprego, Pedro Caldas, 1999 / argumento

Xavier, Manuel Mozos, 2001 / argumento

A Fábrica de Nada, Pedro Pinho, 2017 / a partir de uma ideia original de Jorge Silva Melo baseada na peça De Nietsfabriek de Judith Herzberg (1997, encenada por Jorge Silva Melo em 2005)

 

Maria João Madeira é programadora da Cinemateca Portuguesa. Este artigo foi publicado originalmente na revista BICA, número 11, em abril de 2020. A CNN Portugal agradece a autorização de publicação deste texto e imagens à autora, à revista Bica e ao Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema.

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