Terry Gilliam: “A humanidade é absurda. É preciso rir disso, se não morremos”

16 fev 2022, 23:25
Terry Gilliam (AP)

Aos 81 anos, um dos seis Monty Python mostra em Portugal o seu amaldiçoado “O Homem Que Matou D. Quixote”, que levou mais de vinte anos a finalizar. Está farto do politicamente correto e anda preocupado com o humor

“Somos velhos, eles que se lixem”. Eles, na batalha cultural em que todos andamos, é quem está do lado da barricada de que nem tudo se pode dizer. Ora na televisão, ora nos filmes, ora na vida em geral. É o chamado “politicamente correto”, e aqui o velho é Terry Gilliam, um dos icónicos rostos de Monty Python - um pequeno grande grupo de comédia britânica dos anos 60, já deve ter ouvido falar. Ele, é realizador, criador, mente liberta e libertina, infant terrible de Hollywood, que finalmente conseguiu colocar o seu “Homem que Matou Dom Quixote” em cena. Tem dito tudo o que lhe apetece e acaba nas manchetes. Gosta de fazer barulho, mas, na verdade, é apaixonado por um cinema para muitos à frente do seu tempo (lançar um “Brasil”. comédia distópica, nos anos 80 não era para todos), e apaixonado por dizer aquilo que lhe apetece.

Ao longo de 25 anos, aconteceu quase tudo a este filme: inundações, orçamentos a disparar, problemas com seguradoras, doença, morte. Agora estreia em Portugal esta quinta-feira - tendo já sido lançado para o mundo em 2018. Mas um azar nunca vem só. Traz no elenco nomes como Adam Driver, Jonathan Price e uma “Young Penelope” Joana Ribeiro (disse a própria, em entrevista à revista Vogue). 

Foi com aquela frase que o realizador britânico (renunciou à cidadania norte-americana) terminou a conversa com a CNN. Em pouco mais de dez minutos, falou-se de tudo: politicamente correto, comédia, trabalhos que se perdem por se ser polémico, da internet e de “neocalvinistas”. O que é isso? Já lá vamos. Terry Gilliam, uma criança autêntica aos 81 anos que viu o seu brinquedo cinematográfico ganhar vida, é uma metralhadora divertida. Um homem de outro tempo que não quer nada com este novo tempo. Acaba-se a conversa, em plena embaixada do Reino Unido em Lisboa, o Python que criou aquelas animações inesquecíveis, foi tocar piano. Tudo a filmar, mas que se lixe, o importante é uma boa gargalhada. E dar chicotadas em todos nós. A música há-de vir. “Irrita-me o humor estar ameaçado. Quando os comediantes têm medo de dizer coisas absurdas porque alguém se pode ofender. Não se pode viver assim. A humanidade é absurda. É preciso rir-nos disso, se não morremos”, conta.

Terry Gilliam fala da sua péssima relação com o mundo atual. Prova disso foi uma conferência de imprensa que deu na Alemanha, em 2018, a propósito deste novo filme. O novo diretor do departamento de comédia da BBC disse que não daria um tostão para um projeto parecido com os Monty Python. 6 homens brancos? Nunca mais. Porque agora o canal — e o planeta Terra, a bem da verdade – está apostado na diversidade. O realizador não fez a coisa por menos. Disse: “como homem branco estou farto de ser culpado de tudo o que está errado no mundo. Agora chamem-me Loureta, uma mulher lésbica em transição”. Caiu o Carmo e a Trindade nos jornais. Terry Gilliam diz à CNN que só queria – e sempre quis – ser engraçado. “Na altura dos Monty Python era divertido ofender porque era difícil, agora não. Logo, deixou de ser divertido”, conta.

Vamos ao filme, que levou tantas voltas desde 1989, quando o realizador pegou na obra de Miguel Cervantes pela primeira vez e achou que ali estava algo que valia a pena ser filmado. Temos a personagem principal, Toby, diretor de publicidade, que vai parar a um filme antigo seu sobre D. Quixote. Toby volta à terra onde filmou e dá de caras com o sapateiro Javier (Jonathan Pryce), que julga ser o cavaleiro louco. Toby acaba por ser o seu Sancho, e os dois embarcam numa viagem mirabolante pela ruralidade espanhola. Ainda temos Angelica (Joana Ribeiro), a mais contida (e real) das personagens, jovem empregada que segue, iludida, a carreira de atriz mas acaba nas mãos de um russo cruel. 

Mas na verdade, este homem que se sente cavaleiro apaixonado por Dulcinea numa aventura pela honra, é Terry Gilliam. Os seus moinhos de vento contra quem combate são os ativistas, os patrões de Hollywood e quem já não se gosta de rir como antigamente. “Temos de nos sentir uns D. Quixotes. Ele foi uma vítima dos livros, corromperam-lhe a visão do mundo. É derrubado mas volta a levantar-se. Há muitas formas de percepcionar o mundo, de saber receber a ofensa. Não é tudo sempre sobre nós. E eu também sou um D.Quixote, luto pelo absurdo”, argumenta.

Quem pensa assim, garante, arranja problemas. E muitos. Porque o que se diz no passado agora tem mais peso “e deixa de ter graça”. Ainda recentemente aconteceu no Reino Unido. Terry Gilliam diz que é tudo obra de um “sentido de humor que está mais restrito” e não se consegue transformar em soldado nesta guerra cultural. “São os neo calvinistas. Os ativistas sentem que são os únicos que estão certos, toda a gente tem de concordar ou morrer. Esse é o meu problema com as revoluções. São sempre interessantes, mas quando acontece, os criativos envolvem-se e são os primeiros a morrer. Só gosto de revoluções com sentido de humor”.

Mas nesta conversa, nem tudo foi polémico. Com tamanha bagagem, seria redutor só se falar do mundo. Uma piada falhada, vamos em frente. O autor de “12 Macacos” ou de “Delírio em Las Vegas” (um filme tão importante que chegou a ser mostrado em aulas de Filosofia em Portugal, garantia de quem escreve) gosta de filmar o que “o deixa obcecado”. Não há um método fechado para as suas personagens loucas. E não é só ser contracorrente que faz com que o sangue continue a ferver-lhe nas veias. Atrás das câmaras é onde quer continuar a estar. Durante muito tempo não escreveu, só agora é que o voltou a fazer. É fascinado com animação, mas não trocava a humanidade dos seus atores que fazem com que os filmes ganhem uma nova vida.

Nas várias entrevistas que deu por cá, declarou-se fascinado por Portugal. Andou a filmar em Tomar - e teve um problema grave e judicial com o produtor Paulo Branco entretanto. Mais um, da maldição não se livra. Mas o melhor, foi mesmo ter sido mais barato filmar na cauda da Europa. E continuar a deixar as ideias lhe entrem na cabeça. “Isso deixa-me excitado, fico a achar que percebo melhor o mundo. Mas depois acabo de rodar e chego à conclusão de que estou errado”, termina. E ri-se. Muito. Agora sim, novamente o piano, teclado por Terry Gilliam, criança adulta que não quer crescer. É que o absurdo tem de continuar a procissão.

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