O sorrisinho e o brilho nos olhos de Nuno Melo não enganam: parece uma criança numa loja de brinquedos. Terá milhões para gastar “num instantinho” em equipamentos militares. Se tiver… Para já, é só a fingir
Nuno Melo, o ministro da Defesa que nos calhou em sorte (ou que deus nosso senhor nos enviou, dependendo do ponto de vista) tem muitas ideias sobre a cornucópia de euros que o Governo se comprometeu a derramar sobre a defesa e segurança externa do país. O sorrisinho e o brilho nos olhos não enganam: parece uma criança numa loja de brinquedos. Ao pé disto, os dois submarinos de Paulo Portas são uma brincadeira.
O enquadramento desta história é conhecido: um dia Donald Trump estava na sua casa de banho dourada a limpar a cera dos ouvidos, e tirou de lá um número: 5%. Podia ter sido 3%, ou 3,5%, ou 4%, ou 10%, podia ser qualquer número, que seria igualmente pristino, claro e obrigatório, uma vez limpa a cera que o envolvia. E assim os aliados da NATO, depois de terem sido obrigados por Trump a subir para 2% a despesa com equipamentos militares, voltaram a ver essa fasquia subir em mais de 100%, quando ainda nem tinham cumprido os 2% do PIB.
Abana a cauda quem gosta
Não manda quem quer, manda quem pode, e abana a cauda quem gosta ou quem não tem outras habilidades. Mark Rutte, ex-primeiro-ministro holandês, em tempos conhecido como um “frugal” que criticava o excesso de gastos da Europa do Sul, virou o maior abanador de cauda ao Sr. Trump, bajulando-o Trump como nunca antes um secretário-geral da NATO, frugal ou não, havia feito. “Donald, conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para a América, Europa e mundo. Conseguirás o que NENHUM outro presidente pôde fazer em décadas. A Europa vai pagar-lhe em GRANDE, como deve, e essa será a sua vitória" – este foi o conteúdo do sms enviado por Rutte a Trump, e que este tratou logo de por nas redes sociais. Rutte não se limitou a abanar a cauda: rodopiou sobre si próprio, lambeu as mãos pequeninas e papudas do dono, tendo talvez soltado um pinguinho de felicidade.
A regra imposta por Donald Trump é que todos os aliados gastem, até 2035, 5% da riqueza nacional (um valor que nem os EUA cumprem, e que, pelo andar da economia, só poderão cumprir com recurso a mais dívida). Esse 5% dividem-se em duas componentes: 3,5% em material estritamente de defesa e 1,5% em investimento em infraestruturas ou produção de materiais de uso duplo, civil e militar.
Porque sim não é resposta
A cimeira da NATO da semana passada registou o triunfo de Trump, perante a genuflexão de quase todos os membros da organização, e os latidos de alegria do ex-frugal Rutte. Só Pedro Sanchéz, o perigosíssimo-esquerdista-golpista-manipulador-sobrevivente-contra-tudo-e-contra-todos, o diabo-personificado-em-gente, na visão de muita direita, foi capaz de enfrentar o ditador-bébé americano, dizendo meia dúzia de verdades básicas, gerais e inconvenientes: os 2% de gastos em defesa que a generalidade dos membros da NATO já cumprem ou estão à beira de cumprir são um valor “suficiente e realista”, para além de ser o valor “compatível” com os compromissos do Estado Social, uma excentricidade que temos cá na Europa. No fundo, Sanchez lembrou que, antes dos novos compromissos da NATO, havia os compromissos assumidos previamente pelos governos de cada país com as suas populações. Por Espanha, falou o PM espanhol. Pelos restantes membros, calaram-se todos.
Curiosamente, o primeiro-ministro do Japão, um importante aliado dos EUA e da NATO, mas que não pertence à organização, também se rebelou contra as fasquias inventadas por Trump, que quer Tóquio a gastar 3% em Defesa, e Camberra a gastar 3,5%. Porquê, quando o Japão acabou de duplicar de 1% para 2% o seu orçamento em material militar? Porque sim, diz Washington. Porque sim não é resposta, retorquiu o PM japonês, que foi convidado para assistir à cimeira da NATO, mas se recusou a lá pôr os pés.
O bom aluno voltou
E Portugal? Segundo os relatos, foi o joker da cimeira, embora nunca reconhecido como tal: “O papel da diplomacia portuguesa para desbloquear a declaração final ajudou os 32 membros a estender o prazo para atingir a meta de 3,5% de 2032 para 2035. Portugal conseguiu agregar os países que estavam comprometidos com o cumprimento da meta, mas que tinham preocupações em relação aos prazos devido a restrições orçamentais”, escreveu o enviado especial da CNN Portugal a Haia.
Agora que nos atravessámos de tal maneira na viabilização dos planos de Trump, teremos de ser os bons alunos que dão o exemplo ao resto da turma. É aqui que entra Nuno Melo. Por um lado, acha que gastar milhões em defesa é “um instantinho”. Vai uma pessoa às compras, mete meia dúzia de básicos no carrilho, e a conta fica pra lá de um dinheirão – quem nunca? Ou, nas palavras do próprio ministro: “Na Defesa, normalmente a unidade de medida não é o euro, é o milhão, portanto para chegar aos mil milhões, infelizmente, é um instantinho”. Pelos vistos, ao contrário dos milhões do PRR, que vão ficar por executar.
Para já, “Portugal vai cumprir a meta do investimento de 2% do PIB em 2025, e com esta decisão, este Governo coloca um ponto final no adiamento de uma década”, salientou Melo, citado pela agência Lusa. E defendeu que “isso também reforça a credibilidade” do país junto dos aliados e garante que Portugal “não fica para trás” (lá está, continuamos condicionados pelo trauma do bom aluno).
Se assim for, "Vamos gastar dinheiro que não temos a comprar armas de que não precisamos para uma ameaça que não existe", como bem resumiu o Miguel Sousa Tavares na CNN.
Última hora: o dinheiro não cresce das árvores
Apesar de, pufffff, o dinheiro desaparecer “num instantinho”, o mesmo Nuno Melo diz que “dois por cento em defesa é um esforço muito grande”, por isso devemos “concentrar-nos nele”. Ou seja, é fácil, mas é difícil. Ou o contrário. Até porque, até ver, o propósito do atual Governo é fazer esse aumento apenas a fingir. O ministro das Finanças, Miranda Sarmento, começa a perceber que o dinheiro não nasce das árvores, nem é elástico, e que o superávit que herdou dos socialistas não é eterno. O aumento das despesas permanentes em que o Governo se meteu no ano passado, para agradar à função pública, vai pesar para sempre; os brindes aos pensionistas criam a expectativa de mais brindes este ano; a propalada redução do IRS emagrece a receita; contudo, a talhada que todos os portugueses sentiram no reembolso de IRS afetou a confiança dos consumidores – aliás, há aqui qualquer coisa que não bate certo, e haveremos de voltar a este assunto: como é possível a economia crescer menos, as despesas subirem, os impostos “baixarem”, e mesmo assim crescer o saldo orçamental? Alguém está a torturar os números... Para além de tudo isto, o investimento direto estrangeiro caiu pela primeira vez em muitos anos.
Os avisos sucedem-se: do Banco de Portugal, do Conselho de Finanças Públicas, das entidades europeias. Portugal vai crescer menos, o saldo orçamental vai deteriorar-se, a não ser que sejam cobrados mais impostos, e o Governo tem muitas promessas para cumprir na saúde, na educação, na justiça, na habitação, na segurança pública. Em cima disso, comportou-se em Haia como o cheerleader de Trump para gastar mais em Defesa.
Portugal gasta hoje 1,58% do seu PIB com a Defesa (4.481 milhões de euros), segundo dados reportados à NATO pelo Ministério da Defesa sobre a execução do ano passado. Passar em poucos meses para 2% significa gastar mais 1.500 milhões de euros de uma assentada.
A debilidade da economia não chega para tudo e o primeiro sinal de preocupação do Governo com a realidade veio escarrapachado na última manchete do Expresso. Cito só o título e a entrada da notícia: “Governo antecipa IRS para agosto para tentar reanimar a economia”. “PSD negociou votação-relâmpago na AR para incentivar consumo no verão, com medo da travagem do PIB. Bónus nas pensões continua em dúvida. Estímulos ao investimento na calha.
Uma demão de tinta cáqui
Por estas e por outras, talvez não esteja garantida a vanguarda portuguesa na corrida aos gastos em Defesa, como Nuno Melo a sonhou. Afinal, não basta que um homem sonhe. Miranda Sarmento já pôs água na fervura: “O país não será dos mais rápidos, mas não ficará para trás”. Ou seja, seremos o habitual chove e não molha. E boa parte será despesa para americano ver, pois o titular das Finanças já admitiu estar a “identificar se há algumas despesas que hoje já existem em outros ministérios […] e que neste momento não estejam a ser registadas”. “Há algumas despesas da GNR que já estão no conceito” sem serem contabilizadas e, por isso, “estamos a analisar se é possível alargar um conjunto adicional de despesas”. Ou seja, uma demão de tinta cáqui aqui, uma pinturinha de camuflado acolá, e já conta como despesa em Defesa em 2025. E sempre se ajudam as empresas nacionais de tintas, que as há, e boas, com toda uma paleta de verdes e castanhos à escolha.
Marcelo, o nosso rei do desenrasca, já comentou o assunto, bem à portuguesa. "Com aquilo que já está previsto e mais algumas decisões que serão anunciadas brevemente, de investimentos, e no quadro dos meios disponíveis e da flexibilidade do orçamento, penso que é cumprível", disse. E como a meta dos 5% é só para 2035, e haverá uma reavaliação em 2029, que não nos doa a barriga até lá. A reavaliação "é uma flexibilização útil" e o prazo de 2035 "dá uma amplitude enorme". Tudo para Marcelo é leveza e amplitude. Os deuses o conservem nesse nirvana.
Presidenciáveis de pé atrás
Apesar da leveza presidencial, Marques Mendes, candidato a Belém e melhor aluno do curso intensivo de marcelês, mostra-se cauteloso. "É preciso saber explicar e aplicar esta decisão. Para um nórdico ou um báltico, aumentar os gastos em Defesa é completamente óbvio: o inimigo está próximo e o reforço da Defesa é urgente. Para um cidadão do sul da Europa, tudo é diferente: o inimigo está distante e o risco é reduzido". Segundo Mendes, "se não houver explicação cabal desta decisão e garantia do estado social, corre-se um risco: o de os cidadãos descrerem da NATO, da União Europeia (UE) e da democracia. É combustível para os extremismos e radicalismos". Bendida cautela, que afasta uma velha e injusta suspeita de que Mendes seria só um boneco no colo do ventríloquo Marcelo.
António José Seguro, candidato que disputará o eleitorado do centro com Mendes, alinhou pelo mesmo tom. “Eu aconselhava prudência. Primeiro é necessário ver se nós, com o mesmo nível de despesa, conseguimos fazer aquilo que nos propomos no âmbito da NATO ou da União Europeia, e só depois passarmos para a situação seguinte, que é gastar mais”. Parece um princípio razoável. Mais: “O país não tem só necessidades nas áreas da defesa e da segurança. Também tem necessidades nas áreas da habitação, da saúde, da economia, tem de haver aqui um equilíbrio. Eu desconfio sempre muito quando se vai a correr de um momento para o outro para estas áreas da defesa e com um volume de recursos e de dinheiro muito elevado. Cinco por cento do nosso PIB é muito dinheiro”, frisou Seguro.
É mesmo muito dinheiro. Lá porque se gasta “num instantinho”, não significa que se deva fazê-lo. Até Gouveia e Melo, apesar de vir da tropa, se mostra reticente sobre este esbanjar de euros em defesa: "Acho que 5% é uma meta muito ambiciosa”. “A Defesa é uma prioridade, o que não significa que essa prioridade tenha de afetar outras prioridades.”
Quem quer um Miranda Sarmento?
Infelizmente, como a realidade já nos ensinou, a duras penas, não podemos gastar o mesmo euro duas vezes. Ou então podemos, mas a conta acaba sempre por pesar demasiado. E, desta vez, não temos um Mário Centeno nas Finanças. Temos um Miranda Sarmento, que, a julgar pelas últimas eleições, não vale uma missa.
Lembra-se quando Rui Rio disse numa campanha eleitoral que o PSD também tinha o seu Mário Centeno? Foi o momento em que o então ministro das Finanças alcançou a consagração política, ao mesmo tempo que Miranda Sarmento era exposto à humilhação de passar por “o Centeno de Rui Rio” – um produto de marca branca, com menos qualidade do que o original, mas que, para o que era, servia. Nas duas eleições que a AD venceu, nunca ninguém na oposição se vangloriou de ter o seu “Miranda Sarmento”. Porque não aquece nem arrefece.
É o que há. Cumprirá ordens, reclassificará despesa, aumentará os gastos em Despesa, em pensões ou em funcionários públicos, sem que se lhe conheça pensamento sobre nada. Gastará folga orçamental que ainda exista, enquanto existir, e dirá sempre sim a Montenegro.
Entre o brilhozinho nos olhos de Melo, já a pensar gastar milhões “num instantinho”, e o leve murmúrio de Miranda Sarmento sobre “não sermos dos mais rápidos mas não ficarmos para trás”, Montenegro vai gerindo a política e as suas percepções.