Uma paixão que marca a história do futebol português

23 set 2014, 11:00
Fernando Cabrita

Um nome marcante, que partiu aos 91 anos

Há várias formas de enquadrar o desaparecimento de Fernando Cabrita, consumado nesta segunda-feira, aos 91 anos. Mas há uma palavra comum a todos os depoimentos de quem o conheceu e com ele trabalhou: «paixão». É a âncora de um trajeto invulgar como jogador e técnico, que acompanhou cinco décadas do futebol português e participou em alguns momentos marcantes da sua afirmação internacional.

O maior de todos foi, obviamente, a fase final do Europeu de 1984, que marcou o regresso de Portugal às grandes competições, 18 anos depois do Mundial de Inglaterra. Uma chegada tardia, com Fernando Cabrita a liderar, aos 61 anos, uma comissão técnica que, com as presenças de Toni e António Morais traduzia o equilíbrio precário de um futebol português partido ao meio pelas influências de Benfica e FC Porto, com o sportinguista Jordão como fiel da balança. Mas a história futebolística deste algarvio de Lagos começa muito antes.

A final de 1957


Da carreira de Fernando Cabrita jogador, que decorreu entre 1942 e 1959, há poucos registos fotográficos e ainda menos em filme. Mesmo assim, é possível vê-lo em ação neste clipe de uma das duas finais de Taça que disputou – e perdeu. No Jamor, em 1957, já com 34 anos, o jogador começava a dar lugar ao aprendiz de técnico, mas não falhou a decisão com o Benfica, como médio experiente, ao serviço do Sp. Covilhã (1-3).

Doze anos antes, em 1945, estivera nas Salésias, ao serviço do Olhanense, numa final perdida para o Sporting, graças a um golo solitário de Jesus Correia, perto do fim. Era então um avançado promissor, acabado de estrear-se na seleção nacional, ao serviço da qual jogou sete vezes, marcando um golo. Uma proeza não tão pequena como isso, para quem nunca vestiu a camisola de um grande e teve um 4º lugar, em 1946, como melhor registo pessoal de sempre em campeonatos.

Após 80 golos em 170 jogos e nove temporadas pelo Olhanense, o antigo aprendiz de serralheiro dá um passo ousado para os padrões da época: vai jogar duas épocas para a segunda divisão francesa, no Angers, onde ganha experiência e uma visão de jogo que lhe permite adaptar-se ao recuo no terreno, quando começa a perder velocidade. Regressa, fixa-se na Covilhã onde joga mais seis anos. Pelo meio, volta à seleção, como médio, e tem como coroa de glória um 0-0 com a Áustria, no apuramento para o Mundial de 1954, em que marca um dos grandes craques europeus, Ockwirck, e não o deixa tocar na bola. Na primeira mão, sem Cabrita, Portugal tinha perdido por 9-1...

O cigarro de Manuel José

Em 1959 Cabrita pendura as botas, com 36 anos e vai treinar o Portimonense. É a segunda etapa na carreira, que ganha embalagem decisiva quando passa integrar os quadros do Benfica, no departamento de formação. Estamos em 1961, e num Benfica em plena glória europeia, entre a equipa de juniores e de reservas, Cabrita cruza-se com muitos nomes sonantes do futebol português.

Um deles é Manuel José, algarvio como ele, e recém-chegado à equipa de juniores do Benfica, em 1962, com 16 anos. «O senhor Cabrita foi o meu primeiro treinador enquanto profissional, de 1962 a 64. Depois, em 1968/69, no meu último ano no Benfica, voltei a trabalhar com ele, como adjunto de Otto Glória. Dele recordo um homem sério, íntegro, profissional exemplar, e um bom conselheiro», começa por contar ao
Maisfutebol.

A relação, que se prolonga até 1972, com mais três temporadas no União de Tomar, tem algo de paternal, como Manuel José reconhece: «Eu não era um jogador fácil e ele teve muita paciência comigo. Compliquei-lhe a vida algumas vezes, com episódios de rebeldia e excessos da juventude», diz, ilustrando a ideia com um episódio:

«Quando vim para Lisboa fiquei com mais dois jogadores numa casa particular, na Damaia. Eu já fumava com 16 anos, e numa noite estava a fumar um cigarro, deitado no quarto, quando um colega meu avisou: vem aí o senhor Cabrita!
. Não quis deitar o cigarro fora, por isso apaguei-o e escondi-o por debaixo do colchão, mas o senhor Cabrita sentiu o cheiro e não descansou enquanto não o encontrou. Uns dias depois, a entrar para o treino, recebi um papel, com multa de 200 escudos. Eu recebia 1200 por mês e ainda tinha de mandar dinheiro para o meu pai. Achei aquilo uma injustiça tão grande que rasguei o papel e atirei os bocados para o chão. Ele viu-os espalhados, foi ao gabinete e trouxe outro papel: 400 escudos de multa! Entregou-mo e disse: agora rasga-o outra vez!
. Já não tive coragem para isso, claro. E a verdade é que ficámos amigos».

No Benfica, Cabrita torna-se um dos homens da casa, pau para toda a obra, na linha de outra referência do clube, Fernando Caiado. Em 1967/68 assume a equipa principal, quando o chileno Fernando Riera é suspenso pela direção. Conduz o barco até à chegada de Otto Glória, ajudando à conquista do título de campeão e à presença na quinta final da Taça dos Campeões, perdida em Wembley para o Manchester United. É como adjunto do brasileiro que vê chegar à luz sangue novo, de que Humberto Coelho é um dos grandes exemplos: «Foi das melhores pessoas que conheci no futebol. Um apaixonado pela sua profissão, uma figura de grande qualidade. Ajudou-me imenso a subir a carreira, especialmente a vê-la pelo lado profissional. Mais do que um treinador era um professor», recordou nesta segunda-feira, no site da FPF.

Toni é outro dos nomes de sucesso chegados à Luz nesse verão. «A minha primeira referência do senhor Cabrita é do meu tempo dos cromos, como jogador do Olhanense e do Sp. Covilhã, e por ser dos primeiros a jogar no estrangeiro. Para chegar à seleção naquelas circunstâncias é porque tinha qualidade acima da média», recorda ao
Maisfutebol, para valorizar uma «figura marcante» como jogador e técnico.

Cabrita emancipa-se depois da colaboração com Otto Glória. Vai treinar o U. Tomar, mas regressa ao Benfica em 1972, como adjunto de Jimmy Hagan. A história repete-se: volta a assumir a equipa em 1973, quando Hagan sai em litígio com a direção. Falha o tetracampeonato, apesar da célebre vitória encarnada por 5-3 em Alvalade, na última ovação a Marcelo Caetano antes da queda do regime. Depois, volta ao Jamor para comandar a equipa numa célebre final com o Sporting com público em redor do campo e um cheirinho a PREC. Toni conta em discurso direto:

«O general Spínola estava na bancada, havia pessoas na pista, a toda a volta, e a revolução estava muito fresca para todos. Estávamos a ganhar 1-0 ao intervalo, eu tinha participado no golo do Nené e sentia que estava a jogar bem. Mas o senhor Cabrita, que não me tratava por Toni, mas por sr. Oliveira, disse-me: vais sair, para entrar o Eusébio. Não reagi, não disse nada, mas fiquei desagradado. E a verdade é que as coisas não correram bem: o Sporting empatou mesmo no fim e acabou por ganhar no prolongamento. Mas a nossa relação não sofreu com esse episódio. Logo depois fizemos a digressão de fim de ano, por Angola e Moçambique, e tudo voltou ao normal»


A final de 1974


Cabrita volta a deixar a Luz em 1977, iniciando um périplo com passagens pelo Beira Mar, Rio Ave e Académico de Viseu. Em 1982 entra para os quadros da FPF, reeditando a dupla com Otto Glória, que volta ao cargo de selecionador. É como braço direito do técnico brasileiro que começa a participação na campanha para o Euro-84. Mas no verão de 83, depois de uma goleada por 5-0 em Moscovo e outra (0-4) com o Brasil, em Coimbra, Cabrita volta a ser o homem providencial, recolhendo a criança nos braços, a três jogos do fim do apuramento. Contra todas as expetativas, embala aí para o ponto mais alto da sua carreira, liderando uma estrutura técnica a três, com Toni, adjunto no Benfica, e António Morais, no FC Porto, refletindo a falta de pulso da FPF, liderada por Silva Resende. Mais uma vez Toni com a recordação:

«Atendendo à clivagem que havia entre jogadores de Benfica e FC Porto que não se falavam, pensou-se nos equilíbrios. Nós os dois íamos trabalhar à peça, como dizia o António Morais, ficávamos uns seis ou oito dias e regressávamos aos clubes. A indefinição da FPF fragiliziva a liderança do senhor Cabrita, e era um prenúncio do que aconteceu dois anos mais tarde, em Saltillo. José Torres, tal como Cabrita, foi arrastado por uma liderança fraca que não sustentava o seu treinador»

A seleção de 1984, com Cabrita ao centro, entre Toni e António Morais


Vivem-se tempos difíceis, com a tensão Benfica-FC Porto a refletir-se no mau ambiente interno. Apesar disso, a equipa, liderada por Cabrita, ganha três jogos consecutivos (Finlândia, Polónia e URSS) e, contra todas as expetativas, garante a presença na fase final do Europeu, onde José Augusto se junta à equipa técnica. O grupo é dificil (Alemanha, Espanha e Roménia) e as expetativas são baixas. Mas, mais uma vez, a seleção surpreende tudo e todos, só caindo no prolongamento das meias-finais, perante a França de Platini. Olhando para trás, Toni admite que há 30 anos Portugal protagonizou uma proeza, num clima pesado, de invejas e manobras políticas, com Fernando Cabrita no meio:

«Não se pode dizer que entre tantos problemas os maus da fita tenham sido os quatro treinadores e que os jogadores passaram ao lado. Os egos sempre existiram, e continuam a existir, como se vê nas dificuldades de relacionamento que grandes treinadores têm com as suas estrelas. Os jogadores pensam neles em primeiro lugar, e eu sei porque também fui um. Com os defeitos todos de um hidra de quatro cabeças, fizemos o trabalho possível, com o senhor Cabrita a evidenciar o seu lado humanista, solidário e amigo»


Pouco rotinado a falar em público, Fernando Cabrita não lida bem com a exposição mediática. Datam desse Europeu algumas frases pitorescas, de gramática acidentada, que o público adota por piada. Algo que ainda hoje entristece Toni: «A gramática do senhor Cabrita era a do futebol, sempre foi. E parece-me ingrato valorizar esse aspeto quando tudo o que ele fez era reflexo da paixão fortíssima que tinha pelo futebol. Acima de tudo, era um homem de valores e princípios e com uma paixão enorme pelo que fazia», resume.

Já fora da FPF, a paixão prosseguiu em clubes de menor expressão, até ao início da década de 90. Pelo meio, um título de campeão de Marrocos, aos serviço do Raja Casablanca, e passagens discretas, mas sempre apaixonadas por Penafiel e Estrela da Amadora. Depois, em 1992, Fernando Cabrita volta a casa, assumindo por breves momentos o comando do Esperança de Lagos, o seu último trabalho no futebol, a fechar um ciclo de 50 anos.

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