A medida está inscrita no programa do Governo, discutido esta semana na Assembleia da República. O novo Executivo de Luís Montenegro aposta numa “maior flexibilidade dos regimes laborais” e prevê uma “maior flexibilidade no gozo de férias”, “com a possibilidade de aquisição de dias de férias”
A CGTP-IN (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses — Intersindical Nacional) tem um pé atrás em relação à medida. A CIP (Confederação Empresarial de Portugal) encara-a com bons olhos. Há quem a veja como uma medida “virtuosa” e quem olhe para ela como “uma medida criativa, para não usar outra expressão”. Em causa a possibilidade que o Governo de Luís Montenegro inscreveu no seu programa de os trabalhadores comprarem dias de férias.
O Governo enquadra a medida na necessidade de “uma maior flexibilidade dos regimes laborais, designadamente em matéria de tempo de trabalho, direito a férias”. De acordo com o programa do Governo, a ideia é proporcionar uma “maior flexibilidade no gozo de férias por iniciativa do trabalhador, com a possibilidade de aquisição de dias de férias, com um limite a definir contratualmente entre as partes”. Para isso, o Governo quer “proceder à revisão da legislação laboral, desejavelmente no contexto da Concertação Social, clarificando, desburocratizando e simplificando os regimes legais”.
A CGTP tem dúvidas sobre a implementação da medida. “Ainda temos de perceber como é que a querem materializar. Pode abrir uma janela muito perigosa, que é os próprios trabalhadores abdicarem, muitos deles, de férias para suprir necessidades que têm do seu dia-a-dia. Portanto, partimos sempre com um pé atrás relativamente a estas matérias”, diz Tiago Oliveira, secretário-geral da CGTP.
“Medida Criativa”
Carla Naia, advogada do Direito do Trabalho, também tem reservas em relação à medida, que apela de “criativa, para não usar outra expressão”. “Desenquadra-se do sistema jurídico-laboral instituído no nosso ornamento jurídico”, considera a jurista.
“A implementação desta possibilidade de compra de férias pelo trabalhador à empresa é uma alteração de paradigma, até porque há proibição expressa de aquisição de bens por trabalhador ao empregador. Aqui, o que se pretende, diria, seria o trabalhador ter direito a mais descanso daquele que a lei lhe confere. O que também me choca juridicamente, porque o regime de férias é um regime sujeito a bastantes regras absolutas, imperativas. E, portanto, é uma absoluta novidade”, acrescenta Carla Naia.
A advogada considera imperativo uma revisão profunda da legislação laboral em Portugal, para que medidas como a possibilidade de aquisição de férias por parte do trabalhador possa ser implementada. “A começar pelo artigo 129º do Código de Trabalho, que proíbe o empregador de impor ao trabalhador a aquisição de bens da empresa. No fundo, aqui o bem em causa é o tempo do trabalhador. O trabalhador está a vender o seu tempo de vida a uma empresa, mediante o pagamento de um preço que se chama remuneração de salário. E, portanto, o sistema está construído no sentido de que o empregador compra o tempo de trabalho e não o contrário”, defende Carla Naia.
“Não podemos viver como noutros tempos”
Para já, os patrões não se opõem à medida. Armindo Monteiro, presidente da CIP, diz à CNN Portugal que a medida vem responder a uma vontade cada vez mais crescente “de trabalhadores e empregadores conciliarem melhor o tempo de trabalho e o tempo de laser”
“Não podemos viver como noutros tempos, de viver para trabalhar. Mas também temos de ter consciência de que é preciso trabalhar para viver. Ter mais dias de férias tem como objetivo conciliar o trabalho com a vida pessoal e com o descanso. A CIP não é contra. Claro que, para que ela seja possível, exige um acordo. Ela tem de ser voluntaria e depender de um acordo de parte a parte”, sublinha Armindo Monteiro.
O presidente da CIP salienta que “o trabalho não é todo possível de ser feito nem à distância, nem sazonalmente”, pelo que entende “que o equilíbrio tem de ser procurado” e “tem de haver confiança entre as partes”. O representante dos patrões garante que irá com mente aberta para estas negociações de concertação social, previstas no Programa do Governo: “Ir com um pé atrás nunca conseguiremos acordos com ambição”.
Armindo Monteiro admite que a medida possa ter um impacto negativo na produtividade das empresas. “Menos tempo de trabalho implica sempre uma perda de produtividade. Mas é preciso encontrar medidas para atenuar essa eventual perda de produtividade e é preciso que os trabalhadores estejam mais satisfeitos. Pode, aliás, ser uma boa medida para atrair talento para as empresas”, considera.
É preciso assegurar a igualdade no trabalho
Carla Tavares, presidente da CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego) também olha com bons olhos para a medida: “Tudo o que se fizer tendo como objetivo a flexibilização dos tempos de trabalho é sempre positivo enquanto forma de melhorar a conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar, que continua a ser uma das principais dificuldades (e fator de stress), apontadas pelos trabalhadores”.
“Portugal tem, aliás, um vasto histórico nessa matéria, pois há muito tempo que contempla no Código do Trabalho a possibilidade de trabalhadoras e trabalhadoras prestarem trabalho a tempo parcial ou com horários flexíveis, bem como a possibilidade de trabalhar em regime de teletrabalho. Medida, aliás, reforçada em 2023, alargando as situações em que pode ser usada, sem necessidade de acordo da entidade empregadora”, elogia Carla Tavares.
Mas a presidente da CITE deixa um alerta: “é muito importante que sejam, igualmente, adotados mecanismos para que a adoção destas modalidades flexíveis de prestação de trabalho, não recaiam apenas, ou na esmagadora maioria, sobre as mulheres”. “Ou seja, tratando-se de trabalhadores ou trabalhadoras com filhos, importa acautelar que há um equilíbrio entre ambos os progenitores, e que não continuem a ser apenas, ou quase sempre, as mães a prescindir do seu rendimento do trabalho para fazer face às necessidades de apoio à família, por exemplo, durante o período de férias escolares”, exemplifica.
Os Millennials e a geração Z
Jaime Ferreira da Silva, psicólogo e Presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos Portugueses, considera a medida “virtuosa”. “Como psicólogo, especialista em psicologia das organizações, acho que é uma medida salutar, bem-vinda. Em Portugal continuamos a trabalhar mais do que a média dos países do OCDE. E, por outro lado, pela primeira vez na história recente da nossa espécie, há quatro gerações de trabalhadores que estão a conviver no local de trabalho com atitudes em relação ao trabalho diferentes, os Baby Boomers, a geração X, os Millennials e a geração Z. E enquanto para um Baby Boomer o trabalho tinha muita centralidade no seu dia-a-dia, para as gerações mais novas, nomeadamente Millennials e geração Z, o trabalho não tem tanto essa centralidade. É um meio, não é um fim a si próprio”, começa por justificar.
“Sou pai de um Millennial e de uma geração Z. Percebo que os meus filhos têm uma atitude em relação ao trabalho que me parece bastante mais saudável do que aquela que recebi como Baby Boomer que sou. As pessoas também precisam de tempo. Estas gerações mais novas estão muito mais conscientes da importância da saúde mental e de como o trabalho pode impactar a saúde física e a saúde mental e, portanto, não se querem pôr a jeito e, a meu ver, muito bem”, acrescenta o psicólogo.
Jaime Ferreira da Silva lembra que há países, “por exemplo a vizinha Espanha”, em que o número médio dos dias de férias “é superior ao que há em Portugal”. E que há empresas que aplicam férias superiores aos 30 dias e usam essa benesse como moeda de troca para atrair talento. “Este também é um fator de competição, nomeadamente entre trabalhadores do conhecimento, portanto, que poderão procurar outros mercados onde os seus direitos e a sua qualidade de vida está mais assegurada. Portanto, vejo como bastante positiva esta medida”, acrescenta o psicólogo.
O especialista sublinha que “as empresas que tiverem também isto no seu pacote de benefícios, têm aqui um argumento de força”. Contudo, acrescenta que “terá de ser visto caso a caso, função a função, empresa a empresa”. “Portanto, muito provavelmente não será de aplicação universal e instantânea, mas as coisas progredirem nesse sentido parece-me extremamente importante”, conclui.