Marta Martins e Valquíria Porto Rosa perceberam que as suas preocupações eram comuns à maioria das mulheres e decidiram que estava na altura de passar da conversa à ação: a Mana Amiga é uma projeto que junta a teoria à prática e quer ser o "fermento" para outros projetos feministas
Começou tudo pelas conversas entre amigas. "Percebemos que partilhávamos situações muitos comuns, fosse em casa, na escola, no trabalho ou no dia a dia, fossem situações mais pequenas ou mais evidentes, mas percebemos que havia situações de efetiva desigualdade no tratamento ou no acesso a oportunidades entre homens e mulheres", conta Marta Martins. Cada uma à sua maneira, cada uma com a sua história, mas todas com um traço comum: a desigualdade. "Por sermos mulheres temos mais dificuldades. São histórias que todas nós partilhamos. Por exemplo, somos quase sempre nós que tratamos das tarefas domésticas e dos filhos, que vamos às reuniões da escola, que sentimos que temos uma situação de desequilíbrio com os companheiros ou ex-companheiros. No trabalho, somos menos ouvidas, mesmo que estejamos em maioria, as nossas opiniões são menos valorizadas."
Perceberam, ainda, que estas histórias aconteciam com quase todas, independentemente do emprego que tinham, do grau de escolaridade, do contexto social. É uma realidade transversal. E, no entanto, é uma realidade nem sempre assumida. "Incomodava-nos quando uma amiga próxima com um grau de instrução elevado nos dizia: não entendo porque é que é preciso feminismo, não está já tudo resolvido?", conta Valquíria Porto da Rosa. Como se a luta feminista tivesse ficado concluída no momento em que as mulheres conseguiram o direito ao voto. Como se o feminismo fosse um movimento desatualizado, fora de moda, uma "mania" de um grupo de extremistas que insistem que a igualdade não se pode limitar ao que está escrito no papel e tem de ser, de facto, uma realidade quotidiana. "Há uma realidade que parece que as pessoas não veem, vivem noutro planeta."
Não, não está tudo resolvido. Pelo contrário, diz Valquíria. "À medida que vamos estudando estes temas, vamos conhecendo coisas que não sabíamos antes e isso foi mudando a nossa percepção da realidade. O feminismo não se reduz só à luta pela igualdade entre homens e mulheres, tem muitas outras texturas e camadas. É preciso falar de género, de raça, de classe, de educação. Uma mulher negra tem vários problemas que uma mulher branca não tem. Há vários detalhes: o que é opressão?, porque é que a desigualdade é sistémica?, a igualdade está na lei mas ela acontece de facto? Isto não é uma questão de entendimento muito óbvio."
No entanto, Marta e Valquíria constataram que, apesar de universais, estes temas estão praticamente ausentes da escola - têm apenas lugar (e um lugar reduzido) nas aulas de cidadania. "As crianças já estão despertas, abertas a este debate. Vêm o género de uma maneira mais aberta do que nós víamos há vinte anos. Mas ainda há muita coisa que é preciso mudar. Ainda há muito azul para meninos e cor-de-rosa para meninas", explica Marta. Ainda há muitos preconceitos entranhados na narrativa e muito pouco abrir de olhos para a realidade. "A educação é essencial para despertar consciências. Sabemos como é a taxa de violência doméstica, o número de feminicídios. Isto são coisas que acontecem. E a desigualdade e a discriminação não acontecem só aos outros - sermos desvalorizadas em reuniões, a relação com os companheiros, são coisas que acontecem com quase todas. Temos de saber como é que podemos usar esse nosso poder feminista no dia a dia, como é que podemos, com esta consciencialização de que existe esta situação de opressão, mostrar a urgência e o poder para transformar o nosso dia a dia."
Foi para isso que surgiu a Mana Amiga, que é um "projeto de educação feminista, que interrelaciona escola, cultura e comunidade". "Estes três eixos pretendem ativar a consciência feminista através do conhecimento e da prática", explica Valquíria. A ideia é "aliar o conhecimento da teoria feminista, dos movimentos e das lutas feministas, do que é que compõe a luta feminista, que não é apenas uma luta pela igualdade de género, é bastante mais global, e percebermos como é que podemos colocar isto em prática."
Três eixos para ativar a consciência feminista
Cultura. "Este é um debate que tem acontecido cada vez mais entre artistas e profissionais da cultura", diz Marta. "Apesar de as mulheres estarem em maioria no setor cultural, a verdade é que, se olharmos com atenção, este é um meio dominado por homens, são os homens que estão à frente das instituiçoes culturais, são os homens que escrevem os textos que são encenados, são os homens que dirigem esses textos, é um mundo maioritariamente masculino. As mulheres estão na produçao, na gestão, nos recursos humanos, as mulheres tratam da casa e tratam das pessoas, que é o que fazem geralmente em casa e no trabalho."
Para contrariar isso, a Mana Amiga começou a partilhar no seu site e no Instagram várias propostas culturais com o objetivo dar visibilidade a trabalhos artísticos desenvolvidos por mulheres e pessoas não binárias ou que se debrucem sobre os tópicos da luta feminista - que sejam anticapitalistas, antirracistas, que tratem as questões do género, a ecologia.
Escola. A escola Mana Amiga vai ser lançada no próximo dia 19 e tem já alguns cursos agendados. O primeiro, em maio, é o "Curso Feminismo Em Comum", da responsabilidade da investigadora brasileira Márcia Tiburi, doutorada em filosofia, escritora e artista visual. Haverá depois cursos sobre cisgeneridade e transfeminismo, feminismo negro, empoderamento, não binariedade e outros assuntos. Uns cursos serão online, outros presenciais. Não são cursos só para mulheres, são para todas as pessoas.
"Nestes cursos há uma linha orientadora que é o feminismo, mas há uma grande amplitude", explica Valquíria. O feminismo é "um movimento contra a opressão, isso é o essencial. É um movimento interseccional, porque o feminismo percebeu que não adianta olhar só para a questão da mulher, sem olhar para a negritude ou para a classe. E é um movimento propositivo - porque pode intervir em todas as áreas da nossa vida, o feminismo está sempre a olhar em volta e a questionar tudo". Por exemplo, o feminismo na saúde, no direito, na gestão: há muitas áreas onde é necessária uma revisão dos conceitos e das práticas sob um olhar feminista.
Comunidade. A comunidade será criada, passo a passo. Primeiro, com as partilhas teóricas, de textos e de conhecimentos, com os cursos e a criação de uma "biblioteca". Depois, com as partilhas pessoais que se esperam que resultem destes encontros. Porque, inevitavelmente, "as pessoas acabam trazendo a sua luta pessoal. O encontro é um momento também de escuta e de ligação ao outro. Junta-se a teoria com a história de cada uma. Eu estou entre mulheres e posso falar neste lugar porque sei que vou ser entendida". E, por fim, com as partilhas de projetos.
"Há uma coisa muito boa no feminismo: é que uma puxa a mão da outra", explica Valquíria. Os cursos dão uma introdução teórica mas são também um incentivo à ação: a ideia é que as pessoas sintam vontade de fazer alguma coisa, "escrevam, falem com a vizinha, formem um grupo de bairro, o feminismo é teoria mas é praxis também. Começa num grupo de estudo, mas acaba num grupo de ação".
A Mana Amiga tem planos para, mais tarde, intervir na comunidade, sobretudo entre a população carenciada, promovento projetos com escolas, grupos comunitários, associações ou instituições. A ideia é ir conseguindo parcerias e outras fontes de financiamento para poder alargar as atividades.
"Queremos estar online para chegar a todas as pessoas e não excluir ninguém. Mas o presencial é importante para criar essa ligação entre as pessoas. Queremos ser movimento. No fundo, a comunidade é como um fermento que pode contribuir para a criação e o crescimento de outros projetos feministas." A mudança está nas nossas mãos. Como escrevem Marta e Valquíria no manifesto da Mana Amiga: “Somos feministas porque sentimos o nosso poder de reimaginar o futuro”.