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Fundador e CEO do Clube de Autores

As queixas de um mercado do livro que insiste em não se modernizar

3 jun 2024, 12:47

Segundo a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), o livro em inglês vale, atualmente, entre 5 e 8% do valor total do mercado português. Estes são números que estão a preocupar os profissionais do setor, já que as editoras nacionais consideram que chegam a “desvalorizar a língua portuguesa como um todo”. Conservadores, muitos desses editores e livreiros clamam por medidas de proteção vindas do governo. 

Tolices. É, aliás, espantoso constatar como é que o setor responsável pelo principal recurso do conhecimento - o livro - insiste em fechar os olhos às mudanças que ocorrem diariamente à sua volta e prefere ancorar-se ao passado e reclamar do presente em vez de compreender que precisa de mudar para ter um futuro. 

Não considero que haja desvalorização alguma da língua portuguesa. Abrangendo 280 milhões de pessoas, o nosso idioma é o quinto mais falado no mundo, um número que, de acordo com as projeções demográficas das Nações Unidas, deve chegar a 487 milhões antes do final do século. Além de vasta, a língua portuguesa tem o principal ingrediente que a faz crescer: a diversidade. Transitam pelas suas complexas vias gramaticais, por exemplo, as realidades fantásticas de Saramago, as magias linguísticas de Mia Couto e Valter Hugo Mãe, as vagas de beleza de Ondjaki e a coragem árida de Guimarães Rosa.

São histórias que percorrem o mundo com encantamento, despertam curiosidade e encontram leitores em absolutamente todos os cantos do planeta. Leitores que, se não falam português, veem-se instigados a aprender, como atestam as 20 milhões de pessoas que nos têm como segunda ou terceira língua. E são histórias que têm sido produzidas numa escala inédita: fora do mercado tradicional, o da autopublicação comemora os cerca de 150 novos títulos em português publicados por dia. Cada um com a sua própria audiência, a sua base de leitores, a sua procura feita por cidadãos do mundo interessados em beber histórias produzidas na língua de Camões. 

Por isso, como podemos falar de crise num mercado que produz milhares de novos livros por ano e que cresce de maneira tão poderosa? Como podemos falar em medidas de proteção contra uma suposta invasão de literatura estrangeira? Não seria toda esta crise, ao contrário, apenas o queixume ficcional de um setor que evita reinventar-se e adaptar-se aos novos tempos? Por que, em vez de reclamar, os editores e livreiros não viram a página e procuram modernizar-se?  

Os leitores, afinal, não compram idiomas, compram histórias. E se um número tão representativo deles - 5 a 8% - tem preferido histórias noutros idiomas, certamente é porque não se interessou pelas que encontrou na sua própria língua. Por que não começar por aí, ampliando a oferta de títulos em livrarias (de rua ou online), que hoje concentram-se quase que exclusivamente nos poucos best-sellers que recebem das grandes editoras? Por que, em vez de lutar contra best-sellers escritos noutros idiomas, os editores não caçam novos sucessos a partir dos tantos livros autopublicados, procurando novos candidatos a best-sellers que nascem diariamente dentro das nossas próprias fronteiras? Por que, em vez de se queixarem, os editores não aproveitam melhor a capacidade que o mercado tem de imprimir sob procura e distribuir em livrarias online, sem a necessidade de stock e lançam os seus títulos simultaneamente em todo o mundo, ganhando leitores em países cujo idioma oficial não é o português? Por que, em vez de praguejar contra a inteligência artificial, os editores não experimentam a tecnologia para traduzir os seus títulos de maneira mais ágil - e sem perder a qualidade - aumentando as suas vendas em qualquer idioma, dentro e fora das suas fronteiras? 

A nossa língua não é maravilhosa por causa da sua gramática. A sua beleza vem do uso que lhe é dado pelos artífices da imaginação, os escritores que, a partir de todos os continentes, esculpem histórias absolutamente únicas. E estes números, factos e dados, estão longe de indicarem qualquer forma de desvalorização. Apontam, sim, para uma poderosa revolução: a da abundância de histórias vindas de todo o mundo, talhadas para todos os gostos e vendidas em todos os formatos. 

Resta ao mercado parar de se queixar e aprender a aproveitar. Para o bem de todos nós, leitores - e da nossa língua portuguesa.

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