A involuntária alegria de ir a exame

11 fev 2022, 07:00
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) estará esta sexta-feira “cheia de polícia”, dizem eles. Eles, os alunos. Antes cheia de polícia que esvaziada pela morte, que estava marcada na agenda de um colega. A PJ desprogramou-a. Mas eles, os alunos, têm medo, estão nervosos, improvisam piadas. Na faculdade, hoje não há juízo final, há exame de recurso. É uma involuntária alegria. Reportagem na FCUL

Os corredores estão vazios. Há um silêncio enorme, espacial, chumbado pelo peso de saber-se nesta véspera de exame que o dia seguinte traria, mas já não trará, lâminas amoladas por planos de matar. Planos de um colega, estudante como eles, estes três que, aqui no Bloco C1, param de estudar para ver as notícias no telemóvel. É quinta-feira à noite na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e os três colegas daquele que foi flagrado em delito já sabem que não sabiam estar numa contagem decrescente de facas-relógio: um colega – um colega? - preparava-se para tirar-lhes a vida esta sexta. A Judiciária travou a tempo o ataque terrorista. Já não há juízo final. Só um exame normal.

Sim, eles são mesmo colegas do suspeito - um suspeito sem nome nas notícias que informam que é do primeiro ano de Engenharia Informática na FCUL. Caloiro como eles.

Não há aulas. É por causa do exame de sexta-feira que estão aqui ao início da noite: Introdução à Programação, às 13:00. “Ele é português?”, perguntam estes amigos vindos de Moçambique. O que querem saber, na verdade, é se o suspeito é branco - estão habituados a que a sua cor da pele, negra, seja mencionada na hora de falar de crimes. Não é a única dúvida: “Quem é?”. No grupo de Whatsapp do primeiro ano do curso, que tem mais de cem pessoas, ainda ninguém sabe o nome do colega a esta hora. E porque faria alguém algo como isto? “Depende do estado emocional da pessoa, prefiro acreditar nisso”, diz o mais falador dos três.

O segurança passa, perto das 20:30, a avisar que vai fechar algumas das portas. Eles, como estão a estudar, podem ficar. O exame é de recurso, vão os que chumbaram ou estavam com covid-19 na primeira fase. “Fazem brincadeiras, piadas com a notícia do ataque mas estão todos mas é com medo disto. A minha curiosidade é como é que o FBI chegou lá”, continua o rapaz. Ele que, tal como o suspeito, está a aprender os meandros dos computadores.

Corredores mais vazios porque é altura de exames

No Minicampus brinda-se à amizade com uma cerveja. Ao longe ouve-se um grupo de praxe a gritar. Neste canto são quatro. Três rapazes, uma rapariga, de cursos diferentes. A notícia já chegou, claro, rápida como um clarão. Descobrem neste preciso momento que, afinal, foi numa faculdade a poucos metros de onde estão.

As piadas saem em catadupa, é uma reação ao nervosismo. Riem-se para tentar aligeirar a gravidade, mesmo quando vão recebendo mensagens a dizer “vou passar menos tempo na faculdade”. É que o azar espreita num canto desprevenido. Um deles, de barba e cabelo longo, lembra um colega que morreu esfaqueado na sequência de um assalto após sair do Caleidoscópio, onde tinha estado a estudar. “Era uma rotina exatamente igual à minha.” Ele só não estava no sítio errado à hora errada.

Mas isto é diferente, é um ataque terrorista, ou seria, diz-lhe a amiga. “‘School shooting’ é uma coisa que só acontece na América, ninguém espera que isto vá acontecer aqui.” É que lá há “acesso a armas” por dá-cá-aquela-palha, não é como aqui. Bom, prossegue a jovem sem interrupções, mas as armas que o suspeito iria usar em Lisboa também se “arranjam bem”. Facas, botijas de gás, garrafas com gasolinas, isqueiros.

Procuram-se explicações, encontram-se especulações. O que poderá ter estado na origem de um plano assim, delineado ao pormenor? Neste grupo de amigos, há duas palavras que se repetem: saúde mental. Porque há preconceito a falar no tema que engloba em si tantos problemas. E porque a pandemia, dizem, deixou muitos caloiros a fritar, sem possibilidade de começar uma nova vida, sem novos amigos à entrada na faculdade. O isolamento tornou-se parte da sebenta.

Servidores 'decoram' um dos corredores onde os alunos de Engenharia Informática têm aulas

Desconstruir perfis

Inteligente, com boas notas, vindo de uma família humilde, com problemas de socialização. Era este o retrato possível àquela hora do jovem que preparou um ataque terrorista sem precedentes em Portugal. Tratando-se de um estudante de informática, vem à cabeça o lugar-comum do “cromo” isolado do mundo, que o transforma no seu computador.

Chegam os cinco em grupo, quase em clima de festa, à entrada do Bloco C1. Nenhum concorda com essa imagem. “Olhe para nós, essa ideia não faz sentido.” São todos alunos de Engenharia Informática, mas do segundo ano, o que faz - neste caso - toda a diferença. Há um certo alívio em dizê-lo, como se os afastasse do suspeito. Todos com a mesma surpresa, à procura de um nome. Fazem-se piadas. Muitas. “Esta sexta estou cá, estou mais preocupado com passar ou não”, diz um deles. E o outro completa: “Até porque isto vai estar cheio de polícia!”

Agora vão estudar mais um bocado. Já se faz tarde na noite. E esta sexta-feira há um exame para passar. Mal eles sabiam da involuntária alegria que é afinal poder fazê-lo. E de poder acabá-lo, mesmo sem certezas sobre a nota. “Ad Lucem”, diz o lema da Universidade de Lisboa. Para a luz. Não para as trevas.

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