O dom de saber onde nasce o coração dos portistas
Há um instante, mais ou menos a vinte minutos do fim, que parecendo que não explica muito do que foi a vitória do FC Porto na final do Jamor: o instante em que o quarto árbitro levanta a placa com o número 29 e Toni Martínez percebe que vai ser ele o sacrificado para a entrada de Zaidu (Wendell tinha sido expulso pouco antes).
O espanhol deve ter ficado em choque, mas não mostrou nada.
Correu em direção à linha lateral, enquanto ia recebendo abraços dos companheiros, saiu de campo, recebeu um grande abraço de Sérgio Conceição, que tentou explicar-lhe porque o estava a tirar de campo vinte minutos depois de entrar.
Toni Martínez ouviu e acenou com a cabeça, percebendo-se mesmo a cem metros de distância que estava a dizer qualquer coisa como no pasa nada, hombre.
O que nos transmite duas coisas.
A primeira é que o espanhol é um tipo fenomenal, um gajo do caraças, perdoem o português, daqueles que fazem bem a qualquer equipa e a qualquer grupo. A segunda, e mais importante, é que Sérgio Conceição tem um dom.
O dom de saber onde nasce o coração dos portistas.
O treinador parece ter acesso a um mapa privilegiado que lhe permite chegar à fonte das paixões das pessoas do FC Porto, àquele lugar pequenino e singular, que é no fundo a origem de sentimentos como a amizade, a comunhão, a fraternidade e o amor.
É essa capacidade de tocar no ponto certo que permite à equipa reinventar-se a cada jogo, ir buscar forças onde elas parecem escassear, fazer de cada final uma prova de vida. Sempre, lá está, à boleia de uma alma tremenda. Este FC Porto é o que é - uma grande equipa em qualquer contexto - porque arde de entusiasmo na exata medida de Sérgio Conceição.
A forma como entrou nesta final, por exemplo, é um bom protótipo disso mesmo.
O FC Porto entrou com tudo, a asfixiar o Sp. Braga, a ganhar várias bolas em zona ofensiva e a criar sucessivas ocasiões de golo. Otávio foi nessa altura preponderante, como é tantas vezes, aliás. Ele que é o melhor exemplar do que é esta equipa.
A partir daí, dessa capacidade de ganhar bolas no ataque, para explorar sobretudo o espaço entre o central e o lateral, o FC Porto estabeleceu diferenças para o Sp. Braga e ligou o motor de uma bela exibição. Através da qual foi sempre, sempre superior.
Até porque se havia, eventualmente, dúvidas sobre em que ponto estava a confiança da equipa após perder o campeonato, elas ficaram logo dissipadas.
É verdade que o golo demorou mais de cinquenta minutos a chegar e veio arrastado por uma infelicidade de André Horta, mas a equipa já o justificava há muito. E nem quando ficou em inferioridade numérica deixou de merecer marcar outro, aliás.
O Sp. Braga nunca teve capacidade para discutir a partida, sobretudo porque nunca teve capacidade de explorar o peso dos anos na dupla de centrais portistas. Com avançados explosivos como Bruma, Ricardo Horta ou Abel Ruiz, esperava-se de facto outra qualidade na saída de trás, sobretudo para conseguir servir bem os avançados.
A ocupação de espaços perfeita do FC Porto, somada àquela faculdade de disputar cada bola como se fosse a última da vida, travou porém as intenções adversárias.
A partir daí, claro, mesmo quando estava a jogar com menos um e tinha por isso de recuar as linhas, o FC Porto não deixou de ser um bloco compacto, que soube sempre o que estava a fazer e acabou por criar as melhores ocasiões, até fazer o segundo golo.
No fim, não ganhou o título, é verdade, mas conquistou a Taça de Portugal, a Taça da Liga e a Supertaça. Três títulos, numa época apenas, e uma alma tremenda até ao fim.
Sérgio Conceição tem um dom, sim.