'Maria' perdeu a mãe poucos dias antes do Natal. 'Joana' divorciou-se. Nunca mais foram felizes nesta época. Como viver o luto quando só há festa à nossa volta

24 dez 2024, 22:00
Solidão no Natal (NÃO USAR)

O processo de luto pela morte de alguém ou pela perda de algo é mais duro de enfrentar em épocas festivas. ‘Maria’ perdeu a mãe poucos dias antes do Natal de 2021. ‘Joana’ vive agora o terceiro Natal depois do divórcio – mais uma ceia de Natal em que os filhos vão estar com o pai. A tristeza de ambas só se intensifica com o aproximar da data

‘Maria’ tem 47 anos e sentimentos ambivalentes em relação ao Natal. É uma época tradicionalmente associada à família e à alegria, mas há três anos que deixou de ser de festa para ‘Maria’. Perdeu a mãe, com quem tinha uma ligação muito forte, poucos dias antes do Natal. Desde então, a data deixou de ser um momento de celebração e passou a ser um período de grande tristeza e enorme dor.

“A partir do início de dezembro, quando as luzes acendem, começo a sentir-me mais irritada, fatigada e emocionalmente instável. Evito lojas decoradas e encontros sociais relacionados com estas festividades. Digo que não tenho tempo e que estou sobrecarregada. Reconheço que o isolamento também agrava o meu sofrimento, mas não consigo”, conta.

‘Maria’ é divorciada e vive com os dois filhos adolescentes. Depois da morte da mãe, sentiu que ficou "órfã de apoio emocional". Por se sentir responsável por manter a tradição natalícia por causa dos filhos, esforça-se para decorar a casa e organizar a ceia de Natal, mas admite que este esforço a esgota e que não sente “alegria genuína”.

“O Dia de Reis, quando, finalmente, desmonto a árvore e guardo os enfeites na arrecadação, é um alívio”, confessa.

Nas redes sociais, vê as publicações de famílias felizes e sente que não está "à altura", o que aumenta a sua sensação de fracasso. Apesar de se considerar funcional no dia-a-dia, confessa episódios frequentes de choro e um vazio que se intensifica no final do ano. Procurou ajuda profissional e a psicoterapia ajudou-a a compreender que o luto não tem um tempo certo para terminar e que os momentos especiais, como o Natal, podem reativar a dor, mas também podem adquirir novos significados.

O primeiro Natal após o divórcio

O luto não passa só pela perda física de alguém. Quando um projeto de vida chega ao fim, por exemplo, o processo de luto também é inevitável.

‘Joana’, de 42 anos e mãe de dois filhos, de 7 e 10 anos, divorciou-se há dois anos do homem com quem partilhou a vida por mais de uma década. O Natal, que antes era uma data de celebração familiar, tornou-se para Joana uma fonte de ansiedade e tristeza. Desde o divórcio que se sente sobrecarregada pela responsabilidade de manter o espírito natalício para os filhos, enquanto lida com a solidão e o peso emocional da separação.

O primeiro Natal após o divórcio foi muito duro. Os filhos passaram a véspera com o pai, e ‘Joana’ ficou sozinha pela primeira vez. “Senti-me abandonada e incapaz de desfrutar do que antes considerava uma época de união. Este ano, os meus filhos vão novamente dividir o tempo entre a minha casa e a casa do pai. Só de pensar, já sinto um aperto no peito”, confessa.

Antes do divórcio, para a ‘Joana’, o Natal era “um momento de cumplicidade e amor em família”. Embora as celebrações fossem simples, a presença do marido e dos filhos trazia-lhe conforto. Desde a separação, Joana sente que perdeu parte da sua identidade familiar e enfrenta dificuldades em encontrar um novo sentido para a data.

‘Joana’ e ‘Maria’ enfrentaram (ou enfrentam ainda) processos de luto, que são vividos em plena época natalícia. Processos difíceis de gerir, numa altura em que todos os que as rodeiam vivem em clima de festa e a elas só lhes apetece chorar e isolarem-se. A procura de ajuda é fundamental e há estratégias para tornar o processo mais fácil.

O tema foi mote de conversa entre a CNN Portugal e a psicóloga Diana Costa Gomes.

Que impacto pode ter numa pessoa a vivência do primeiro Natal após um luto recente?

Lidar com o luto, por si só, pode ser um processo lento e demorado. O primeiro Natal após uma perda pode ser profundamente difícil. É um momento que frequentemente traz à tona a ausência de quem partiu ou daquilo que foi perdido. O simbolismo do Natal como “época de família” intensifica a dor, relembrando a diferença entre como as coisas eram e como passaram a ser.

Um processo de luto não acontece só em caso de morte…

Não. Um luto não diz respeito só a morte. No caso do divórcio, por exemplo, pode haver sentimentos de solidão e frustração em relação às dinâmicas familiares alteradas.

No luto por morte, a ausência da pessoa querida em épocas como o Natal pode trazer um vazio profundo, especialmente em tradições partilhadas.

Acresce ainda que o luto é, muitas vezes, um luto familiar em que cada membro da família vive o luto à sua maneira. Nestes quadros, temos, muitas vezes, de lidar, não apenas com o nosso luto, como com o do outro, que é, necessariamente, diferente do nosso.

Se é que se pode “medir” a dor, ela torna-se ainda maior quando a perda é próxima destas datas?

Sim, embora não haja um “dolorómetro”, a dor pode intensificar-se quando a perda ocorre perto do Natal, não só porque há menos tempo para processar e aceitar a situação antes de enfrentar a carga emocional das festas, mas porque datas especiais, como o Natal, evocam memórias recentes que contrastam com a realidade atual e o simbolismo desta época reforça o sentimento de perda e saudade.

Como viver essa época festiva, preservando os nossos tempos e os nossos sentimentos? Que estratégias usar?

Não há “receitas” e tenho sempre alguma resistência em falar em “estratégias”. Afinal, o que nos acrescenta é sempre idiossincrático. Ainda assim, aqui ficam algumas estratégias práticas para lidar com o luto no Natal:

  • Aceitar os próprios sentimentos: Não se force a estar feliz. Permita-se sentir tristeza ou saudade.
  • Fazer mudanças conscientes: Avalie se prefere manter as tradições ou criar novas. Pode ser reconfortante para alguns continuar com os rituais familiares. Para outros, fazer algo diferente (como viajar ou mudar o local da celebração) ajuda a aliviar o peso emocional.
  • Reduzir as expectativas: Não se pressione para seguir o ritmo habitual de celebrações.
  • Escolher um local neutro: Fazer a ceia num local neutro pode ajudar a evitar o peso emocional associado a ambientes com muitas memórias.
  • Praticar o autocuidado: Reserve momentos para si, seja através de descanso, leitura ou atividades que promovam bem-estar.
  • Homenagear a pessoa perdida: Dedicar um momento para lembrar o ente querido pode trazer conforto e significado, como acender uma vela ou partilhar uma história.
  • Apoiar-se na rede de suporte: Permita que amigos e familiares lhe ofereçam apoio.

É muito importante aceitarmos as nossas emoções. A tristeza é uma dessas emoções primárias que vivemos no luto. A principal função de uma emoção primária é estilizar-nos, regular-nos. Se a evitamos, vamos só transformá-la noutra coisa e não vamos regular-nos. Por isso, o “não fiques triste!” é completamente desprovido de sentido.

E como devemos agir quando alguém próximo de nós está de luto?

Apoiar alguém de luto exige sensibilidade. Deixo algumas sugestões:

  • Convidar com empatia: Convide a pessoa para a sua casa ou atividades natalícias, mas deixe claro que a decisão é dela e que não há problema em recusar.
  • O que dizer: Evite frases como “Vai ficar tudo bem”, “Não penses nisso” ou “Devias fazer um esforço!”.  Em vez disso, pode dizer algo como: “Sei que esta época é difícil, mas estou aqui para o que precisares.”
  • Sobre “Feliz Natal” ou “Boas Festas”: Avalie o estado emocional da pessoa. Se achar que pode ser desconfortável, opte por algo mais neutro, como “Espero que estejas bem nesta época.”
  • Prendas ou não? Sim, mas escolha algo simbólico e reconfortante.

A ajuda profissional faz ainda mais sentido nestas circunstâncias?

Sim, a ajuda profissional pode ser extremamente benéfica em momentos de luto durante o período do Natal, especialmente porque esta época intensifica os sentimentos de perda e solidão. Eis algumas razões que reforçam a importância do acompanhamento psicológico nesses casos:

  • Processar o luto de forma saudável: Um psicólogo pode ajudar a pessoa a compreender e processar as emoções associadas ao luto, evitando que elas se transformem num luto patológico.
  • Aprender estratégias de coping: os profissionais podem ensinar técnicas práticas para lidar com gatilhos emocionais e encontrar formas de adaptar-se a esta nova realidade sem negar ou evitar a dor.
  • Identificar e tratar sinais de sofrimento agravado: O luto pode evoluir para depressão, ansiedade ou outras condições. Um psicólogo ou psiquiatra pode diagnosticar e tratar esses sintomas precocemente.
  • Reconstrução de significado: O acompanhamento pode ajudar a pessoa a ressignificar tradições e memórias, lidando melhor com o vazio deixado pela perda.
  • Prevenir isolamento: Muitos enlutados tendem a isolar-se, o que pode agravar o sofrimento. A ajuda profissional oferece um espaço seguro de expressão, promovendo conexões saudáveis com o mundo exterior.
  • Apoio em circunstâncias específicas: Se a perda ocorreu perto do Natal, o choque pode ser ainda maior. Nestes casos, a terapia pode ajudar a lidar com as emoções intensas e o impacto de viver as festividades logo após o evento.

Quando se deve procurar ajuda profissional?

Quando o luto interfere significativamente na vida quotidiana, dificultando o trabalho, relações ou autocuidado, se a pessoa sente que não consegue lidar com a dor ou se a tristeza se torna persistente e incapacitante, caso haja pensamentos de desesperança, culpa extrema ou ideias de autolesão ou quando há dificuldade em aceitar a perda, e o sofrimento emocional não diminui com o tempo.

A ajuda profissional não elimina a dor do luto, mas oferece ferramentas e suporte para viver esse processo de maneira mais leve e adaptativa, mesmo durante épocas emocionalmente desafiantes como o Natal.

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