Falsa professora recebeu quase um milhão de euros do Estado - e dois tribunais já disseram que não tem de devolver nada

26 set, 07:00

Paula Pinto Pereira deu aulas em quatro escolas portuguesas durante décadas sem nunca ninguém suspeitar das suas competências. Três denúncias anónimas, em 2021, determinaram um inquérito, seguido de um processo disciplinar e consequente demissão

Deu aulas de Matemática durante décadas sem estar habilitada para isso. Foram três denúncias anónimas à Inspeção-Geral da Educação, em 2021, que levaram ao fim da carreira de docente de Paula Pinto Pereira, na qual atingiu o escalão máximo de remuneração, recebendo do Estado um salário superior a dois mil euros líquidos.

As denúncias deram origem a um processo de inquérito e depois a um processo disciplinar. Com base no relatório final do processo disciplinar, o ministro da Educação assinou, em 2023, o despacho que culminou na demissão da professora - agora sabe-se sem habilitações - e na exigência de devolução de quase 350 mil euros por danos ao Estado, invocando o "enriquecimento sem causa". E é neste ponto que a Justiça tem dado razão à professora, que afinal não o era.

A “falsa professora” de Matemática não queria ser demitida nem devolver qualquer quantia e, de imediato, apresentou uma providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada. O tribunal de 1.ª instância acabou por lhe dar razão em parte. Sobre a demissão não houve dúvidas, mas quanto à devolução dos 350 mil euros o tribunal considerou que a visada nada tinha a pagar. E anulou o "ato administrativo" descrito no processo disciplinar que obrigava à devolução.

Na decisão do TAF de Almada pode ler-se que a ação foi declarada “parcialmente procedente” e determinada a anulação do “ato administrativo na parte em que impõe a devolução ao Estado da quantia de €348.563,70”. Tal como considerou “a presente ação improcedente, por não provada” e absolveu “a Entidade Demandada do pedido”.

Inconformado com a decisão, o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) recorreu a 21 de maio de 2024 para o Tribunal Central Administrativo Sul. Todavia, a 28 de agosto de 2024, o coletivo de três juízes manteve a decisão da 1.ª instância. O acórdão a que a CNN Portugal teve acesso considera, mais uma vez, que Paula Pinto Pereira não tinha nada a devolver ao Estado.

Tanto no processo disciplinar como, depois, já em tribunal, sempre defendeu que a docente tinha “enganado/ludibriado de forma permanente o Ministério da Educação, tendo entregue certidões de habilitações falsas, que certificavam que tinha habilitações académicas que não tinha, de bacharelato, de licenciatura e mestrado, que lhe permitiram ingressar e progredir na carreira de docente, quando não tinha habilitações para tal”. Uma segunda derrota que não ficará por aqui.

A CNN Portugal questionou o MECI sobre se ponderava recorrer desta decisão, mas a resposta não é completamente clara, ainda que tenha ficado a garantia de que não vai desistir: "A devolução ao Estado destas quantias poderá sempre ser contestada pelo MECI e ser realizada no âmbito do processo-crime, ainda em curso, e/ou pela via administrativa através de procedimento administrativo para reposição de dinheiros públicos, procedimento já em desenvolvimento."

Apesar de até agora a Justiça ter considerado que a docente nada tinha a devolver, Paula Pinto Pereira ainda se pode sentar no banco dos réus pelo crime de burla qualificada, já que foi aberto um inquérito na Procuradoria da República da Comarca de Lisboa - DIAP - 4.ª Secção de Almada, em 2021. E é a este "processo crime" que o MECI se refere.

Segundo explicou o Ministério da Educação Ciência, "a Inspeção Geral da Educação e Ciência teve conhecimento do caso através de três denúncias anónimas, a dar conta de dúvidas relativamente ao facto de a docente ser detentora da licenciatura em Matemática, ramo educacional, pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa - FCUL e sobre o facto de a docente ser detentora do mestrado em Ensino da Matemática, pela Universidade da Madeira".

Explicou ainda que, "perante as denúncias, a 01-04-2022 foi instaurado um processo de inquérito pela IGEC. Concluído o processo de inquérito, com a existência de fortes indícios da prática de infração disciplinar/criminal, foi instaurado à trabalhadora um processo disciplinar e foi feita participação crime ao Ministério Público competente, com o conhecimento do inquérito à DGAE e DGEstE, para os devidos efeitos".

E como chegou o MECI ao valor de €348.563,70, que considera "ilícitos"? Durante toda a sua carreira o "valor da remuneração processada à trabalhadora (...) foi no total de 970.895,09 €", no entanto, o Estado apenas pede o valor calculado "de abril de 2003 a março de 2023 (últimos 20 anos)" de 348.563,70 €.

Março de 2023 é a data do despacho do ministro da Educação que determina a demissão da professora e a devolução do dinheiro. Mas não só. O prazo ordinário de prescrição previsto no art.° 309° do Código Civil é de 20 anos.

E foi essa a conta feita, segundo o recurso apresentado no Tribunal Central Administrativo Sul. "A quantia, cuja devolução aos cofres do Estado, é imposta à A./Recorrida, resulta das verbas indevidamente e ilegitimamente recebidas, pela conduta que adotou, nos últimos vinte anos, que é o prazo ordinário de prescrição previsto no art. 309° do Código Civil, que aqui se aplica tendo em conta que decorre do processo disciplinar, claramente, que desde que A./Recorrida ingressou nos quadros da carreira docente e aí progrediu subindo de escalões, se estabeleceu uma relação laboral sinalagmática entre a mesma e a Administração Pública em que se exige o cumprimento de obrigações mútuas pautadas pela boa-fé."

Professora passou por quatro escolas

Paula Pinto Pereira passou por quatro escolas nacionais. A primeira foi a Escola Preparatória do Entroncamento, Santarém, (atuais EB). Esta foi a porta de entrada no ensino como professora de substituição, por apenas dois meses, “de uma docente em licença de maternidade. Entrou na categoria de professora provisória, para o 4.° Grupo”, lê-se no acórdão a que a CNN Portugal teve acesso. Era o ano letivo de 1986/1987. No ano seguinte, assina contrato com a Escola Secundária do Entroncamento, inicialmente para 21 horas que em pouco tempo se transformaram em horário completo.

Em 1988/1989 chega à Escola Secundária do Barreiro (que entretanto mudou de nome), para depois seguir para a Secundária Daniel Sampaio, na Sobreda da Caparica, ambas na Margem Sul, onde esteve até ser descoberto que não tinha as habilitações necessárias para a função de docente.

Com certificados de habilitações falsificados, Paula Pinto Pereira conseguiu passar aos quadros definitivos da carreira docente em 2003 e posicionar-se no 10.º escalão, o mais alto e com o vencimento mais alto da carreira de professor, ou seja, nessa altura esta professora sem habilitações já recebia mais de 2 mil euros líquidos por mês.

Mas também escreveu manuais de Matemática, livros que ainda são usados em diversas escolas por alunos dos 10.º, 11.º e 12.º anos.

Paula Pinto Pereira dizia ter um mestrado em Cambridge, uma das universidades mais reputadas do mundo, e um doutoramento na Madeira. Tudo sem sair da Sobreda, no concelho de Almada, onde a docente passou grande parte da carreira e fazia a sua vida.

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