"O plano de paz de Trump para Gaza concentra-se na prosperidade económica e evita a questão da justiça pelos crimes cometidos"

11 out, 07:30
Donald Trump Benjamin Netanyahu (Evan Vucci/AP)

Enquanto primeiro passo, o cessar-fogo que a administração Trump acaba de alcançar para a Faixa de Gaza, a fim de abrir a caminho a negociações do plano de paz que o presidente americano tinha apresentado na semana passada, deve ser celebrado, defende à CNN Portugal a diretora-executiva do Instituto Lemkin de Prevenção de Genocídio. Para Elisa von Joeden-Forgey, o mais urgente no imediato é que a trégua seja respeitada e que a ajuda humanitária possa finalmente chegar aos palestinianos do enclave. Depois virão as discussões difíceis

Como olha para este acordo de cessar-fogo?

Congratulamo-nos com o cessar-fogo e damos crédito ao presidente dos EUA, Donald Trump, por ter concretizado este difícil acordo para a primeira fase de um prometido plano de paz. O mais essencial no imediato é salvar as vidas dos palestinianos que enfrentam um genocídio contínuo. Qualquer cessar-fogo deve ser bem acolhido – e deve ser cumprido, para que a ajuda humanitária necessária possa chegar ao povo palestiniano. 

O que deve vir imediatamente a seguir a esta primeira fase?

Agora, é responsabilidade do presidente Trump garantir que o seu aliado, Israel, não viola o cessar-fogo, como fez com os anteriores, e que permita a entrada de “ajuda total” através das Nações Unidas, do Crescente Vermelho e de outras organizações, conforme exige o plano de paz. Gostaríamos que o presidente Trump tivesse imposto um cessar-fogo duradouro imediatamente após a sua tomada de posse – como tentou fazer, sem o conseguir –, pois muitas, muitas vidas podiam ter sido salvas. Mas o passado não pode ser desfeito e acolhemos este momento com grande esperança.

Vários analistas defendem que, face ao que tem estado a acontecer nos últimos dois anos, este acordo peca não apenas por tardio mas por não conter provisões essenciais para o futuro, como garantias de que os responsáveis pelos crimes cometidos na Faixa de Gaza serão julgados. Concorda?

Sim. O Instituto Lemkin defende que, para que uma paz duradoura surja do genocídio, deve haver justiça pelos crimes cometidos. Sem um mecanismo de justiça neste caso, como em outros, será difícil garantir que as mudanças necessárias no governo e na sociedade perpetradores, neste caso Israel, são feitas ao ponto de os palestinianos confiarem que o Estado israelita não continuará o seu genocídio por outros meios, como o processo de deslocação [forçada] que está em pleno andamento na Cisjordânia. 

Havia alguns receios de que os ministros mais extremistas do Governo de Benjamin Netanyahu poderiam bloquear o cessar-fogo, dadas as suas recorrentes afirmações sobre impossibilitar um futuro Estado da Palestina e impedir que a guerra acabe.

A realidade é que tanto o governo israelita como a sociedade israelita estão atualmente profundamente imbuídos de uma ideologia genocida em relação aos palestinianos. Isso deve mudar e os mecanismos de justiça são uma das forças mais poderosas para essa mudança. O plano de paz do presidente Trump concentra-se na prosperidade económica, mas evita a questão da justiça.

foto AP

Acredita que isso pode vir a ser considerado no plano de paz que vai agora começar a ser negociado?

A nossa esperança é que as futuras iterações do plano de paz levem muito a sério a importância de um mecanismo de justiça para uma paz sustentável e duradoura. Esperar que os palestinianos em Gaza esqueçam e sigam em frente sem justiça, quando perderam tanto e terão de lidar com essa perda ao longo de gerações, é uma forma de negação do genocídio indistinguível da atitude do mundo ocidental em relação à Nakba [expulsão forçada de milhões de palestinianos do seu território em 1948, aquando a criação do Estado de Israel].

O genocídio exige que o mundo ouça as queixas dos sobreviventes, as legitime e trabalhe para reparar e curar os danos causados. Este é muitas vezes um processo doloroso e muito ressentido dentro do Estado e da sociedade perpetradores, mas é absolutamente necessário e só as potências externas podem garanti-lo. Cabe a todos nós garantir que isso acontece em Israel e na Palestina.

Sem fazer uma única referência a um futuro Estado da Palestina, o acordo de paz proposto por Trump na semana passada prevê um “processo de diálogo interreligioso”. Esse poderá ser um caminho?

Congratulamo-nos com os conceitos do plano de paz relativos a um “processo de diálogo interreligioso” e ao estabelecimento de “um diálogo entre Israel e os palestinianos” sobre um futuro comum e pacífico. Trata-se de projetos muito importantes. Em última análise, cabe aos israelitas e aos palestinianos construir em conjunto um futuro sustentável, no qual cada um se sinta reconhecido e ao qual se sinta ligado. 

Como pode isso ser enquadrado na realidade da ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental e à luz da sugerida criação de um organismo dirigido por Trump e Tony Blair que supervisione a Faixa de Gaza por tempo indefinido?

A assimetria de poder existente tornará isso muito difícil, pelo que serão necessárias mudanças estruturais para que os palestinianos tenham voz. Muitas das disposições do plano de paz parecem ir contra a voz dos palestinianos, ao conceder a fatores externos, incluindo Israel, poder sobre a governação, o desenvolvimento económico, o planeamento, a avaliação das reformas, a mobilidade e a segurança. Os fatores externos devem exercer uma supervisão semelhante sobre Israel, que escolheu o caminho do genocídio em massa após 7 de outubro de 2023. Além disso, um bom número de palestinianos (mais de 30% do órgão decisório) deve estar presente em todas as mesas de decisão, garantindo que a reconstrução atende às necessidades, esperanças e desejos do povo palestiniano.

Acredita na possibilidade de um verdadeiro diálogo entre israelitas e palestinianos sob este acordo de paz? 

Um diálogo real entre israelitas e palestinianos exigirá uma base factual comum, que pode ser alcançada através de julgamentos e outros mecanismos judiciais. E nesse sentido, o presidente Trump deve apoiar a criação imediata de uma missão independente de apuramento de factos em Gaza para documentar toda a extensão dos crimes de Israel e deve pressionar Israel a permitir uma missão semelhante em Israel para documentar toda a extensão dos crimes do Hamas, e outros grupos, a 7 de outubro de 2023. As provas proporcionarão a clareza necessária para qualquer diálogo produtivo. O presidente Trump também deve apoiar o trabalho do Tribunal Penal Internacional (TPI) e do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) por razões semelhantes.

foto CNN

Já referiu que o acordo, nos termos em que é conhecido para já, falha por não prever a responsabilização pelos crimes cometidos em Gaza. Que outros passos considera necessários para se alcançar uma paz duradoura nos territórios?

No geral, a minha opinião pessoal é que o plano de paz comete o erro de subestimar radicalmente a ameaça contínua que Israel representa para a vida dos palestinianos, pelo que encorajamos o presidente Trump a considerar as implicações do genocídio de Israel para a concretização de qualquer paz sustentável. A reforma do setor de segurança de Israel, dos seus sistemas de justiça e educação, do seu desenvolvimento económico, particularmente nos territórios ocupados, e assim por diante, será necessária para concretizar a paz. É claro que diminuir a ameaça do terrorismo contra os israelitas ajudará, mas o plano de paz concentra-se exclusivamente na necessidade de segurança de Israel, em detrimento da segurança palestiniana. 

O que está diretamente ligado ao facto de não haver qualquer referência a um futuro Estado da Palestina no documento-base…

Em última análise, colocar Israel no caminho do reconhecimento da plena humanidade e dos direitos dos seus vizinhos palestinianos, incluindo o direito à autodeterminação, será uma das coisas mais importantes que o presidente Trump poderá fazer, e isso exigirá incentivos e punições. Atualmente, o primeiro-ministro Netanyahu, muitos membros do seu gabinete e muitos cidadãos israelitas estão profundamente comprometidos com um plano para a Grande Israel que exige o genocídio contínuo dos palestinianos, seja através de assassinatos em massa, seja através de deslocamentos forçados.

Congratulamo-nos com a posição pública do presidente Trump contra a deslocação forçada dos palestinianos de Gaza. Esperamos que ele mantenha a sua posição. Israel também tem de se comprometer a reparar os danos causados à vida palestiniana desde 1948. Tal compromisso é do interesse de Israel, uma vez que uma sociedade ética é sempre mais forte e segura do que uma que abraça – e procura esconder – atrocidades em massa. No entanto, é difícil incentivar as sociedades perpetradoras a perceberem isso.

Ainda assim, há pessoas e organizações dentro de Israel comprometidas com a paz e a solução de dois Estados. Esse ainda é um futuro possível?

Sabemos que há vozes em Israel que podem conduzir a nação por um caminho mais seguro e ético e sabemos que há muitos, muitos parceiros do lado palestiniano que estarão dispostos a ajudá-los. Qualquer plano de paz eficaz e bem-sucedido garantirá que essas vozes sejam ouvidas. Esperamos sinceramente que este cessar-fogo se mantenha e que esta fase se torne um caminho para a paz duradoura, a justiça real e a prosperidade partilhada — e a alegria — para israelitas e palestinianos.

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