Emoção, tensão e recados para Marcelo. O debate que terminou com a terceira aprovação da eutanásia

9 jun 2022, 19:15
Parlamento (António Pedro Santos/ LUSA)

Deputada do PS emocionou-se e até ouviu palmas de alguns sociais-democratas. Do lado do PSD houve deputados a falar de ambos os lados

O Parlamento português aprovou esta quinta-feira os quatro diplomas sobre a morte medicamente assistida, também conhecida como eutanásia, naquela que foi a terceira discussão sobre o tema, depois de, nas duas vezes anteriores, o Presidente da República ter vetado os diplomas. Foi um longo debate (cerca de duas horas), no qual houve espaço para críticas, mas também emoção.

PS com recado para Marcelo

PS e PSD, os dois maiores partidos da Assembleia da República, deram liberdade de voto aos seus deputados, o que acabou por resultar na divisão das bancadas. Dos dois lados houve votos contra e a favor.

Todos os deputados de Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, Livre e PAN votaram a favor, enquanto Chega e PCP mantiveram os votos contra já aplicados nas votações anteriores.

Entre os deputados socialistas que votaram a favor esteve Eurico Brilhante Dias, líder da bancada parlamentar que já deixava um cheirinho de como iria correr a votação. “Há quem tenha sinalizado que votará contra e há quem tenha sinalizado que se poderá abster”, disse à entrada para o hemiciclo, não querendo, no entanto, revelar nomes.

Lá dentro, e também a favor da despenalização da morte medicamente assistida, a deputada Isabel Moreira foi quem deu voz ao projeto de lei socialista, mas não sem deixar um recado ao Presidente da República, que já por duas vezes recusou os diplomas enviados para Belém. “A realidade é o que é. O facto é este: num segundo momento, o senhor Presidente teve dúvidas e aqui estamos. Mas sabemos, e sabe quem está de boa-fé, lendo as definições de conceitos que sempre estiveram na lei aqui aprovada que ‘doença fatal’ nunca significou ‘morte iminente’."

Num discurso longo, e por vezes emocionado, a deputada socialista, que teve direito a palmas da bancada do PS, mas também de deputados de PSD, Bloco de Esquerda e Iniciativa Liberal, afirmou que todas as questões constitucionais foram ultrapassadas.

A divisão no PSD

A divisão também se sentiu do lado do PSD, partido que decidiu enviar dois representantes, um de cada lado, para esgrimir argumentos. Pelo voto contra foi Paulo Rios de Oliveira a intervir, reiterando que "para soluções más não há leis boas e as várias tentativas falhadas e todas as sucessivas alterações que foram fazendo em vão, são disso mesmo confirmação, mas, no fim do dia, no fim de contas, a nossa posição individual é, antes de mais, uma questão de consciência”.

Falando em nome individual, o parlamentar disse que a sua "consciência grita não", pelo que, mantendo a coerência, só poderia votar contra a despenalização da morte medicamente assistida.

Em sentido contrário apareceu André Coelho Lima, representante de uma minoria social-democrata, que até começou por deixar claro que não é a favor da eutanásia, vincando depois que também não é contra apenas por entender que não lhe diz respeito “aquilo que cada um entenda dever fazer com a sua própria vida”.

Citando o filósofo liberal inglês Herbert Spencer, segundo o qual “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”, o deputado do PSD considerou que “esta frase diz tudo sobre o que aqui se discute”, deixando claro que é “radicalmente pelo princípio da não ingerência nas opções dos outros”.

“Não meçamos consciências. Não valoremos os princípios de cada um de nós. Cessemos de nos dividir entre bons e maus”, pediu.

Mais à frente, subiram à tribuna outras duas deputadas do PSD com posições opostas: Cláudia Bento (contra) e Sofia Matos (favor).

O que disse quem votou totalmente a favor

No debate parlamentar dos projetos de PS, BE, PAN e IL que pretendem regular os casos em que a eutanásia não é punível, a coordenadora do BE, Catarina Martins, recordou que o Parlamento aprovou em janeiro de 2021 a despenalização da morte assistida e que, “desde então, o Presidente da República entendeu, por duas vezes, obstar à promulgação da lei”.

“E porque este processo leva já anos e deve agora ter a sua conclusão normal: a promulgação e a entrada em vigor da lei”, afirmou, considerando que o debate resultou de um “pedido de afinamento terminológico feito pelo Presidente da República”.

Catarina Martins – cuja intervenção foi sendo pontuada por protestos da bancada do Chega - criticou ainda os que “querem tornar o Parlamento refém do medo”, dizendo que a lei será aplicada a mais casos do que o que estava previsto, e rejeitou que o atual texto do projeto do BE seja “substancialmente diferente do da lei anteriormente aprovada, porque já não se cinge às situações de terminalidade ou de doença fatal”.

“Com toda a serenidade, reponha-se a verdade: nunca o alcance dos projetos de lei – desde logo os do Bloco de Esquerda – nas suas redações anteriores, foi confinado a situações de fatalidade ou terminalidade”, afirmou, dizendo que o Tribunal Constitucional aceitou esta consagração.

Pelo PAN, a porta-voz Inês Sousa Real defendeu que uma lei justa tem de “servir e defender quem sofre irremediavelmente, quem não tem cura para o seu estado clínico e quem, independentemente da opinião ou crenças de terceiros, tem o direito a tomar decisões sobre a sua própria vida”

“O processo legislativo para regular as condições em que a morte medicamente assistida não é punível foi dos processos mais discutidos e fundamentados que tivemos nesta casa”, afirmou, defendendo já estar assegurado “um reforço do amplo consenso político” e considerando que o Tribunal Constitucional entendeu que “a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constitui um obstáculo inultrapassável para se despenalizar, em determinadas condições, a antecipação da morte medicamente assistida”

“O que não pode é continuar a adiar-se esta questão”, apelou.

Em nome da Iniciativa Liberal, o presidente e deputado João Cotrim Figueiredo lembrou ser a terceira vez que os deputados vão debater esta matéria, que considerou ter estado “em debate alargado e profundo na sociedade portuguesa há vários anos”.

“A consagração de um direito como o da morte medicamente assistida não é, repito, não é o mesmo que defender o seu exercício (…) Por outras palavras, não despenalizar escolhas morais é aceitar que existe uma moral coletiva que o Estado pode impor. A Iniciativa Liberal rejeita que tal seja legítimo”, disse.

O que disse quem votou totalmente contra

A deputada do PCP Alma Rivera argumentou que “ninguém entende a eutanásia como um sucedâneo dos cuidados paliativos” e para o partido, que é contra a eutanásia, há uma questão que é “incontornável”: o país não pode “criar instrumentos legais para antecipar a morte e ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver”.

A comunista acrescentou que o partido está apreensivo com “as consequências sociais” que podem advir da despenalização da eutanásia, “sobretudo nas camadas sociais mais fragilizadas, nos mais idosos, nos mais pobres, nos que têm mais dificuldades no acesso a cuidados de saúde”.

“Nenhum de nós receia morrer, mas todos nós receamos a morte”, terminou.

Sendo já certo que votaria contra, o Chega preferiu concentrar os seus esforços na questão do referendo, que acabou rejeitada. O presidente do partido, André Ventura, considerou "muito estranha a obsessão deste parlamento e a obsessão da esquerda pela morte", numa ideia muitas vezes dita, e referindo-se sempre aos quatro partidos que apresentaram projetos de lei como sendo de "esquerda", sabendo-se que a IL não se identifica como tal.

Afirmando-se "pela vida", o deputado falou num país extremamente envelhecido, onde 70% dos portugueses não têm acesso a cuidados paliativos", dizendo que "a preocupação da esquerda, da extrema-esquerda e dos liberais não é mais cuidados paliativos para os portugueses, proteger os nossos idosos, proteger a nossa população mais vulnerável, é dar-lhes a morte diretamente através do sistema nacional de saúde, e é isso que não se consegue compreender".

Por isso, André Ventura lançou depois críticas a quem foi contra o referendo, acusando esses deputados de se quererem "fechar no Parlamento", enquanto "o Chega não tem medo de ouvir os portugueses".

"Ao ignorar um referendo que era dar voz ao povo português, este Parlamento o que está a dizer é: não queremos ouvir-vos, temos medo de vos ouvir e não aceitaremos ouvir-vos. Preferimos andar de emaranhado legislativo em emaranhado legislativo até resolvermos estes problemas", vincou, pedindo depois à bancada do PSD que acompanhasse o voto do Chega, o que até aconteceu com praticamente com todos os deputados, mas que não chegou para a aprovação da proposta.

O que se segue

Os projetos aprovados voltam agora a Belém, onde Marcelo Rebelo de Sousa voltará a decidir sobre o futuro da eutanásia. O Presidente da República já disse que está “acima de braços de ferro”, mas não está fora da mesa um envio das propostas para o Tribunal Constitucional.

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