Algoritmos que supostamente detetam crimes antes de acontecerem: os novos poderes da Europol que "nos podem custar a liberdade"

30 jun 2022, 07:00
Hacker (Jakub Porzycki/Getty Images)

Com o propósito de regular a cooperação da Europol com os organismos privados, um novo regulamento permite à agência recolher os nossos dados para "investigação e inovação" de forma a criar ferramentas de prevenção de crimes. Especialistas alertam para a perda de liberdade

“Entregar a nossa privacidade a troco de segurança um dia vai custar-nos a nossa própria liberdade”, alerta Elsa Veloso, advogada especialista em proteção de dados, acerca do “aumento enorme” de poderes que a União Europeia vai dar à Europol. Um novo regulamento, que entrou em vigor esta semana, vai dar à agência policial europeia o poder de recolher e processar dados de indivíduos mesmo que não tenham cometido crimes, mas os especialistas sublinham que este não é o único perigo que as pessoas correm.

“Os dados dos cidadãos vão ficar vulneráveis. Há mais acessos, há uma quantidade cada vez maior de dados disponíveis. Este regulamento prevê a criação de um novo capítulo, chamado 'Investigação e Inovação', que passa pela experimentação de algoritmos em grandes bases de dados para tentar encontrar correlações. As pessoas não estão protegidas”, afirma a especialista.

Justificado com o aumento das “ameaças complexas” que atualmente “se propagam entre fronteiras”, a União Europeia decidiu alargar os poderes da agência, dando particular atenção à cooperação com empresas privadas e na área da “investigação e inovação”. Este capítulo permite à agência policial tratar os dados de qualquer cidadão mesmo que não tenha cometido qualquer crime. A explicação utilizada pelos autores deste documento prende-se com a fundamentação técnica de “evitar a parcialidade na tomada de decisões algorítimicas”.  

Esse departamento poderá utilizar os dados obtidos para criar “ferramentas de combate ao crime” com características preventivas. Ou seja, um mecanismo tecnológico capaz de prever crimes antes de estes acontecerem e que recorre à análise de quantidades maciças de dados na tentativa de encontrar padrões que denunciem possíveis atividades criminosas. 

“Esta reforma promove um modelo perigoso de policiamento que recolhe de forma maciça os dados para criar ferramentas de previsão de crimes parecem estar prontas para se tornar a norma. Mesmo que esteja completamente inocente e não tenha nada a esconder, os seus dados podem acabar na Europol. E uma vez que eles entram no sistema, eles não voltam a sair”, aponta o analista de segurança Chlóe Bérthélemy.

O regulamento, aprovado pelos vários ministros da Administração Interna da União Europeia, vai dar o poder à Europol de exigir informações - como o endereço IP, URL e os conteúdos de comunicações privadas - a empresas, plataformas digitais e instituições financeiras, inclusive de cidadãos sem qualquer ligação criminal. Além disso, a polícia europeia pode exigir dados de subscritores, tráfego ou qualquer outra informação tida como relevante para a investigação criminal de empresas tecnológicas como a Meta ou a Google ou dos gigantes das telecomunicações.

Investigação e inovação: um alçapão para a recolha de dados?

Os especialistas levantam várias dúvidas em relação ao papel da “investigação e inovação” no documento, que permite à agência policial tratar os dados de qualquer cidadão mesmo que não tenha cometido qualquer crime, “a fim de evitar a parcialidade na tomada de decisões algorítmicas". As dúvidas dos especialistas centram-se particularmente na anonimidade dos dados dos cidadãos. "A anonimidade dos dados não traz vantagem nenhuma à Europol. Como é que a polícia antecipa um crime e identifica um criminoso se os dados estão anónimos? Este regulamento quer aprovar uma ferramenta que consegue evitar um crime no futuro, uma espécie de Minority Report", afirma Nuno Mateus Coelho, professor universitário especialista em cibersegurança, lembrando o filme de Steven Spielberg.

Francisco Pereira Coutinho, especialista em Proteção de Dados da Universidade Nova, sublinha que os dados anonimizados são apenas um número e que, a partir desse número que é alimentado ao algoritmo, "não é possível chegar aos dados de ninguém". O especialista destaca que esta é uma ferramenta "importante para perceber onde ocorre um determinado tipo de crime" e que "é o futuro". 

O criador da proposta destaca a necessidade de adaptação aos novos desafios e também desdramatiza a utilização de dados pessoais. “Precisamos de Inteligência Artificial (IA) para desenvolver novas ferramentas de pesquisa. E a qualidade da IA é diretamente proporcional à quantidade e qualidade dos dados disponíveis para alimentar os algoritmos”, afirma Javier Zarzelos, eurodeputado espanhol do Partido Popular e autor da reforma, em declarações ao jornal El País. Os dados que vão ser utilizados pela Europol, sublinha, serão “dados pessoais devidamente anonimizados” para treinar algoritmos e torná-los mais eficientes.

A bola de neve

Não é garantido que a integridade dos dados seja mantida. Este documento abre a porta para o tratamento de bases de dados de grandes dimensões, com milhões de dados com metadados, algo que choca com a decisão de vários tribunais constitucionais na União Europeia. “O Tribunal Constitucional não permite a recolha de metadados por parte das operadoras de telecomunicações e agora vamos entregar esta informação de uma forma livre a uma polícia europeia?”, questiona Francisco Pereira Coutinho.

Elsa Veloso estranha também o “enorme poder discricionário” que se dá quando alguém utiliza palavras como “inovação ou algoritmos”, acrescentando que esta área técnica é muito sensível e pode levar inclusive à discriminação de indivíduos já excluídos da sociedade. “Estes algoritmos são altamente discriminatórios do ponto de vista ético, religioso e étnico. Os algoritmos não são neutros, não são matemática pura. Eles são programados por alguém que lhes diz como escolher”, frisa a advogada.

Francisco Pereira Coutinho também alerta para o que pode vir a ser "um efeito bola de neve" nestes novos mecanismos de deteção de crimes, com os dados que alimentam o algoritmo a conduzirem a determinado tipo de resultados que estigmatizam uma população ou uma região. "Podem levantar-se questões problemáticas na forma como estes dados são interpretados. O algoritmo reproduz o que os dados lhe dão. Se o algoritmo diz que num determinado bairro há maior probabilidade de serem cometidos crimes, levando a um maior policiamento dessa zona, é provável que ocorra a deteção de mais crimes, o que acaba por criar um efeito bola de neve."

A reforma choca mesmo com uma declaração do Parlamento Europeu que pedia a proibição do uso de inteligência artificial por parte da polícia, de forma a evitar a proliferação de tecnologias de reconhecimento facial e de algoritmos de previsão de crimes. E há pouco mais de quatro meses, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados ordenou que a Europol excluísse dos seus bancos de dados informações sobre cidadãos inocentes, depois de uma investigação de dois anos que determinou que a manutenção destes dados era uma medida “desproporcional”.

Também o regulador europeu já expressou a sua preocupação, apontando a revisão deste documento como algo que vem "enfraquecer o direito fundamental de proteção de dados" sem garantir a "supervisão apropriada" para os poderes que este novo regulamento garante. O supervisor europeu para a proteção de dados expressa também "fortes dúvidas" acerca de algumas das propostas que agora entraram em vigor. 

Minority Report: uma ditadura da segurança?

“A privacidade tem de continuar a existir, é como tomar água. Se não existir privacidade não existe liberdade. Portanto, temos de conseguir conciliar estas duas grandes áreas: segurança e direitos fundamentais”, defende Elsa Veloso.

Antes deste regulamento, a agência policial era uma entidade de investigação que apoiava as polícias dos vários Estados da União Europeia, entregando-lhes informação tratada a nível europeu - mas não só. Existem tratados que permitem a partilha de informação com outros países: um deles é o Brasil e, até há bem pouco tempo, a Europol também colaborava com a Rússia, embora esse acordo tenha sido suspenso com o início da invasão da Ucrânia.

Elsa Veloso teme que a utilização abusiva deste regulamento possa levar a uma perda da privacidade e isso, salienta, pode deixar uma porta entreaberta para a criação de uma ditadura. “Quando nós temos um pendor maior para a segurança e permitimos que as autoridades vigiem tudo, perdemos privacidade e os cidadãos perdem capacidade de se autodeterminarem. De um lado queremos ter segurança e combater a criminalidade, mas é com este intuito que são impostas as ditaduras. As ditaduras, no início, são a vontade de muitos.”

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