Não vai ganhar um Toyota como o Maniche, mas João Félix pode ganhar a carreira se lhe derem honestidade além de beijinhos

11 jul 2024, 07:00

Fomos perceber o que se passa na cabeça de um jogador antes de marcar um penálti. Como é que esse jogador decide para que lado vai chutar. O que acontece quando marca - mas sobretudo o que acontece quando falha. E como se tira o jogador do buraco onde cai. Como se tira João Félix desse sítio

Chamam-lhe penálti, grande penalidade, o remate da marca de 11 metros e até castigo máximo, dizem que a pressão é inacreditável - e Maniche sabe o que isso é. Euro 2004, Estádio da Luz com 65 mil adeptos, Portugal-Inglaterra, estamos no quinto e último penálti da primeira vaga, Maniche vai marcar e este é o relato que o próprio faz 20 anos depois: "O estádio estava cheio, a pressão era imensa e tens de te abstrair do momento e focar-te, acima de tudo, num lado. Antes de bater o penálti, desde o meio-campo até à marca da grande penalidade só tinha um lado na minha cabeça, porque se mudasse a meio não teria o resultado esperado - é aquilo que também se diz em conversas com os meus colegas. É sempre negativo mudar de lado, porque se mudas de um momento para o outro não tem o resultado esperado". 

Mas há mais: "Tive a convicção de que tinha de bater para aquele lado, tinha de ser com força, e depois foi um alívio tremendo, porque é o quinto penálti - se falhasse teria de levar depois com uma nação às costas, o jogador fica sempre marcado por isso e nunca esquece. Fica sempre aquela mágoa ‘eu falhei uma grande penalidade e perdemos por minha causa’", conta o antigo internacional português. 

O que se passou depois é conhecido e é épico: Ricardo tirou as luvas, marcou a seguir e Portugal continuou até à derrota com a Grécia. Todavia, nem sempre a obra saiu perfeita a Maniche, que relembra a final da Taça Intercontinental pelo o FC Porto a dezembro 2012, onde na decisão por grandes penalidades falhou - o guarda-redes foi para um lado mas a bola esbarrou no poste. E a seguir vem o turbilhão dentro da cabeça do próprio jogador: "Entre o falhar e o marcar é uma diferença enorme em termos de tudo, enfim, só quem bate é que sabe exatamente aquilo que quero dizer, porque eu falhei nesse momento, bati e a bola foi ao poste e só pensei 'pronto, vou ficar marcado, não ganhámos a Intercontinental por minha culpa'. É assim que o jogador pensa, não há outro pensamento, não há aquela desculpa 'eu falhei mas a bola foi ao poste', não, falhei e a equipa perdeu, ponto".

As duas histórias com Maniche ocorreram no mesmo ano, uma a 24 de junho, a outra a 12 dezembro. Mas o FC Porto acabou por vencer e Maniche foi considerado o homem do jogo, até ganhou um carro - assim eram os prémios de há 20 anos.

Maniche após vencer a Taça Intercontinental pelo FC Porto, falhar um penálti e ser o homem do jogo. O prémio pela prestação em campo exemplar foi aquele Toyota (Getty)

João Félix também mandou uma bola ao poste num penálti, neste caso contra a França - e Portugal perdeu. Aconteceu, acontece e vai continuar a acontecer, agora é recuperar a cabeça do jogador. Augusto Inácio também andou lá dentro como jogador, por isso sabe bem o que é que se sofre quando a bola não entra e as consequências são tão avultadas. Inácio não hesita em afirmar-se convicto de que "esta vai ser uma grande penalidade que vai acompanhar o João Félix para sempre, claro que dói muito, claro que custa muito, faço ideia do que é que o João Félix tem passado".

Mas agora, explica o comentador da CNN, é tempo de Félix começar a lidar com o facto de "ter consciência de que não contribuiu para a passagem à fase seguinte". Esse é um processo que "demora o seu tempo" e para o qual as férias vão ser muito úteis - "para que possa desanuviar a cabeça, porque quando voltar está mais esbatido o assunto e pode trabalhar com maior tranquilidade". "Pior do que poder ter toda a gente a criticá-lo é o facto de o próprio estar frustrado e triste com toda esta situação" - alterar isso deve ser a grande prioridade do próprio e de todos os que o rodeiam, sublinha o treinador campeão pelo Sporting há 24 anos.

Apesar de falhanços como aquele penálti serem "os momentos que mais custam", isso não tem de definir um jogador, sublinha Inácio: "Não digo que faça parte do crescimento do jogador, mas faz parte daquilo que é a vida de um jogador".

E como se sai daquele sítio escuro onde de repente João Félix aterrou? Manuel Cajuda lembra-se dos seus tempos de treinador e aponta "o realismo e uma dose de humor" como a melhor cura, lembrando que, por vezes, se virava para um jogador e lhe dizia: "Para a próxima, em vez de chutares para a baliza, chuta para fora e vais ver que a bola entra". Ao primeiro vislumbre, o tough love do mister Cajuda pode parecer contraproducente, mas é o próprio quem garante que "toda a gente percebia que era humor" e que, por isso mesmo, o momento tornava-se mais leve e esse era o propósito, desdramatizar e levar o homem por detrás do craque a perceber que foi só um mau dia misturado com uma pitada de azar.

Manuel Cajuda acrescenta ainda mais uma estratégia: "Além disso, deixava sempre claro que não tinha como fugir e que a ia marcar outra vez. Se eu falhei, o padre não vai deixar de dar a missa amanhã e eu vou lá estar outra vez."

Anda bater que tu bates bem

O ex-jogador do Benfica, Alverca e Appolon Limassol Diogo Luís acrescenta que marcar um penálti "nunca é um processo fácil" e começa logo no momento em que o jogador vai partir para a bola. "Há sempre um formigueiro na barriga e uma incerteza sobre para onde rematar." Depois, explica o agora comentador da CNN, a bola entra ou vai ao lado, é defendida ou esbarra nos postes ou na barra: "Marcar é um alívio, falhar o desmoronar, porque muitas vezes a progressão da equipa depende daquela grande penalidade". Tudo isto acontece em breves segundos, num estádio cheio e impaciente que vibra e grita de felicidade ou tristeza a cada remate.

No caso de quem falha o objetivo de fazer golo num jogo de importância maior, Diogo Luís entende que o pós "não é um processo fácil" e o regresso à normalidade pode ser um autêntico desafio. Existe culpa, há desalento e a frustração é inegável, mas "tudo depende dos jogadores em questão", explica, lembrando que "para quem tem mais experiência esta acaba por ser uma experiência mais fácil de ultrapassar".

Para falar sobre o caso de João Félix, Maniche volta a regressar atrás no tempo e lembra o "anda bater que tu bates bem" de Cristiano Ronaldo para João Moutinho na decisão por grandes penalidades contra a Polónia, no Euro 2016. Maniche defende que os jogadores têm de assumir quando sentem que estão com falta de confiança, tal como fez Moutinho, e "nenhum selecionador no mundo vai obrigar um jogador a bater um penálti". "Isso faz parte - se o jogador não está confortável não vai bater o penálti e há aqueles que não estão confortáveis, assumem, batem o penálti e falham; acho que isso é pior, é preferível o jogador assumir-se, não mentir e ter humildade".

"Não quero especular, não sei se foi o João Félix que quis bater o penálti ou se foi o selecionador que optou e colocou o nome dele na lista, mas mesmo assim o João Félix só tinha que dizer que não estava confiante, que não está a passar um bom momento, que está desmotivado e que era preferível não bater o penálti naquele momento. Era melhor ser assim do que dizer 'eu vou bater' e depois cobrar com aquela displicência que até as pessoas especulam", diz Maniche.

Inácio individualiza a questão e lembra que "tudo depende da personalidade da própria pessoa". No entanto, para o treinador campeão pelo Sporting, há algo que é "evidente" e comum a qualquer consciência: este é um momento que "marca, deixa marcas psicológicas grandes e profundas". No caso de Félix, Inácio não tem dúvidas de que o que aconteceu "vai martelar-lhe na cabeça durante algum tempo, mas, como em tudo, a vida segue, há outros desafios, há outros jogos, há outras competições".

O erro primordial, no entendimento de Inácio, seria mesmo entrar numa espiral de autoflagelação de pensamento: "'Falhei o penálti e Portugal saiu do Euro 2024 porque eu falhei'", por esse caminho o treinador acredita que "a vida de Félix vai parar e não pode parar". Inácio afirma que o extremo português "só vai ultrapassar isto quando começar a jogar, a marcar golos e for importante para a equipa" e "isto vai ser ultrapassado de certeza por Félix".

Apesar de todos as incertezas, e indo ao encontro do que defende Cajuda, Inácio garante que "se fosse o treinador e acreditasse no Félix, não era por este penalti que ele falhou que não deixaria de marcar os penaltis no meu clube". "É só vermos que o Cristiano Ronaldo falhou uma grande penalidade contra  a Eslovénia e depois marcou a grande penalidade na série de cinco grandes penalidades. Tem tudo a ver sempre com o estofo mental e psicológico do jogador."

Momento em que Oblak voa e trava o penálti de Cristiano Ronaldo no Portugal-Eslovénia (Getty)

Manuel Cajuda garante que dos colegas de balneário aos roupeiros, passando pela equipa técnica e até os adversários, todos sabem "o que sente o jogador" depois de falhar um penálti importante. Ao técnico principal resta-lhe apenas a psicologia e "os caminhos da motivação", o que se materializa em que "quem comanda o jogador só pode motivar o jogador para que volte a tentar, para que marque, até que o mau momento passe".

Manuel Cajuda lembra que "a maior parte das vezes marca-se até que um dia se falha" e isto pode acontecer a todos. E lamenta que se tenha entrada "mais uma vez na clubite" ao discutir este tema de João Félix "isso nunca é bom". "Durante muitos dias ouvi dizer que o grande trunfo desta seleção era a união do balneário nacional, portanto se um falhou falharam todos."

Evitar falhanços nos penáltis é praticamente impossível, como explica Augusto Inácio, por mais que se tente é impossível replicar num treino o ambiente de um estádio, "não tem mesmo nada que ver". O comentador da CNN realça que, por mais que se treine, "não há a pressão do resultado, do público, do guarda-redes adversário e do próprio momento, é tudo diferente e o estado de espírito é completamente diferente". E pior ainda quando se trata de um desempate por grandes penalidades numa fase final de uma competição internacional - aí, diz Inácio, "pede-se realmente estofo, pede-se realmente frieza" e é por tudo isto que o maior dos craques "pode marcar todos os penáltis nos treinos e depois as coisas serem diferentes nos jogos". "Todos os melhores jogadores do mundo também falharam grandes penalidades, não é só o João Félix que falhou e vai continuar haver gente importante que também vai continuar a falhar e a marcar penaltis", relativiza Augusto Inácio.

João Félix reconfortado pelos colegas e equipa técnica após o jogo com França (Getty)

Diogo Luís acredita que o melhor modo de se dar a volta por cima é "retomar a vida normal", "passado algum tempo aquela memória passa a ser vista pelo jogador como algo positivo, acabou por trazer mais uma experiência". Outra mais-valia enumerada por Diogo Luís são as férias, que "fazem sempre bem " e "permitem ao jogador relaxar, descontrair e voltar a acreditar no seu potencial".

A família e os amigos também podem ser importantes, contudo é preciso "honestidade", salienta Diogo Luís, alertando por um lado que ouvir só coisas positivas pode acabar por ser contraproducente, porque o jogador "arrisca-se a passar a viver numa bolha de conforto", e, por outro, um "discurso demasiado destrutivo também vai prejudicar o atleta".

Apesar da assertividade nas palavras, Maniche destaca que João Félix só tem 24 anos, é talentoso e "não pode já ficar a pensar que ficou para a história por falhar um penálti". O ex-internacional lembra ainda que Portugal teve chances para marcar e evitar o desempate por penáltis e não o fez. "Ele tem de pensar que isto faz parte da vida de um jogador, não há drama nenhum, mas se continuar nesta onda negativa e não mudar algo, provavelmente o talento por si só não vai chegar", aconselha o antigo internacional, que passou por Chelsea, Inter Milão, Benfica, FC Porto e Sporting.

Inácio lembra que o próprio jogador tem a consciência de que os que lhe são mais próximos nunca lhe vão dizer algo como "estiveste muito mal na grande penalidade, não estavas concentrado, foste um burro, foste um estúpido ou não sei o quê - ninguém vai dizer isso". Félix vai ser envolvido de "palavras carinhosas", o "ânimo vai crescer um bocadinho", mas "por muito que se deem abraços e beijinhos é o próprio que tem que ultrapassar, porque é o próprio que vai jogar, não é a família nem os amigos que vão estar depois dentro do campo a marcar penaltis".

Na ressaca eliminação de Portugal, o histórico internacional português Paulo Futre também abordou o tema: destacou o papel fulcral do psicológico dos jogadores nestes momentos, sem adornar a dura realidade: Félix "vai estar marcado, mas isto é o futebol". "Joãozinho, força, meu querido, sabes que eu te adoro, não sei se vais chegar ao Atlético, se vais para o Benfica, se vais para qualquer lado, mas quero o melhor para ti e levanta a moral rapidamente, porque penáltis, quem não falha um penálti? Toda a gente falha o penálti, beijinhos", despediu-se Futre durante a emissão da CNN Portugal.

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