“Há duas coisas de que podemos ter a certeza: Donald Trump vai surpreender-nos e não seguirá uma abordagem coerente”

2 jan, 07:00
Donald Trump a 22 de outubro de 2024 (AP Photo/Alex Brandon)

ENTREVISTA || Para o historiador alemão Kiran Klaus Patel, na última década houve anos mais marcantes para a Europa do que 2024 e, desse ponto de vista, o grande acontecimento do ano foi a reeleição de Donald Trump do outro lado do Atlântico. "Tem impacto direto na Europa e tornará a UE ainda mais importante", defende num balanço de 2024. Há alguns "sinais de esperança" face aos "grandes desafios" que o mundo enfrenta em 2025, diz Patel, à cabeça o (não) combate às alterações climáticas - "É muito provável que a incapacidade do nosso tempo para resolver a crise climática domine as avaliações históricas" daqui a um século

Muitos analistas têm feito referência à invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia em 2022 como “um ponto de viragem histórico” que marca o fim da atual “ordem mundial”, mas é indiscutível que esta guerra, na verdade, começou em 2014, com a anexação da Crimeia. Havendo grandes expectativas em relação a este conflito, em particular no contexto da reeleição de Donald Trump nos EUA e quando se fala no potencial envio de dezenas de milhares de tropas europeias para a Ucrânia, iremos eventualmente olhar para trás e ver 2024 como o verdadeiro “início do fim” desta dita ordem mundial?

De facto 2014 foi o verdadeiro ponto de viragem na história da agressão russa contra a Ucrânia. Mas a ordem pós-Guerra Fria nunca foi uma ordem verdadeiramente global: se tomarmos como referência a democracia liberal, a relativa ausência de guerra, a globalização económica e o multilateralismo, o mundo sempre pareceu diferente quando visto, por exemplo, a partir do Sudão, da Colômbia ou mesmo de um país tão próximo da Europa como a Argélia. E se perguntarmos aos georgianos, eles datarão as políticas agressivas da Rússia desde a guerra de 2008. Em muitos aspetos, os europeus (ocidentais) têm vivido numa bolha. Hoje, cada vez mais pessoas se apercebem de que se trata de uma bolha – e é uma bolha que continua a esvaziar-se. Cada vez mais vemos que os conflitos, as tendências iliberais e os desafios económicos que afetaram outras regiões do mundo muito antes da década de 2020 também nos afetam, e cada vez mais. As coisas tornaram-se muito mais imprevisíveis também no nosso canto do mundo e é cada vez mais claro que não podemos isolar-nos dos desenvolvimentos globais.

Olhando para esta ideia do “fim da ordem mundial” e para conceitos como o de “universalismo ocidental”, outros debates ganharam força este ano, sobretudo no que respeita ao direito internacional. Antes da assembleia-geral das Nações Unidas, houve uma renovada discussão sobre a necessidade de reformar a ONU, também no contexto da dualidade de critérios do Ocidente face à guerra em Gaza e à guerra na Ucrânia e dado o acumular de provas a apontar para crimes contra a humanidade cometidos por Israel nos territórios palestinianos ocupados. Como avalia a posição do Ocidente em 2024 neste contexto?

O Ocidente tem sido sempre acusado de ter dois pesos e duas medidas, de misturar belas ideais com práticas brutais. No melhor dos mundos, a ONU tornar-se-ia supérflua e assumiria o papel de fórum de governação mundial, resolvendo os conflitos internacionais no respeito pela diversidade da comunidade mundial. Mas essas esperanças foram abandonadas há muito. Em 2024, tal como tantas vezes na sua história, as potências ocidentais andaram a arrastar os pés. O balanço é misto, mas é útil considerar o seguinte contrafactual: o mundo seria um lugar melhor sem as potências ocidentais? Tenho fortes dúvidas. Além disso, as sociedades abertas são capazes de ver os seus próprios erros e de os corrigir. Também isso é uma fonte de esperança.

Reputado historiador alemão da Universidade Ludwig-Maximilians de Munique, Kiran Klaus Patel fundou e dirige o Projeto Casa Europa na mesma universidade e é investigador da Royal Historical Society (LMU)

No contexto da invasão total da Ucrânia, defendeu que “ocorreu exatamente o oposto do que Putin esperava”, com o Ocidente cada vez mais unido, a NATO mais reforçada do que nunca e a UE “a sair mais forte desta crise”. Fechado 2024, e após as fortes conquistas de partidos eurocéticos nas eleições europeias de junho, mantém essa opinião?

Continuo a acreditar que o Ocidente reagiu de forma diferente àquela que Putin esperava face à invasão em grande escala da Ucrânia. A adesão da Finlândia e da Suécia à NATO é o melhor exemplo disso. Mas, desde o início da guerra, a situação foi sempre frágil e, quanto mais se arrasta, mais difícil se torna para a Ucrânia e para o Ocidente. Existem fortes tendências centrífugas no seio da União Europeia, com governos que contestam a posição pró-ucraniana, como é o caso da Hungria. Infelizmente, o tempo tende a estar do lado de Putin, especialmente com o advento da segunda administração Trump.

Muitos concordam que a Europa está numa profunda crise, como demonstrado não apenas pelos resultados das europeias, mas também pela instabilidade política e económica em países como a Alemanha e França. Ao mesmo tempo, vemos a influência da Rússia noutros países do continente, como a Moldova e a Geórgia, a aumentar. Do ponto de vista europeu, 2024 foi um ano para recordar ou para esquecer?

Diria que, para os europeus, há anos que se destacam mais do que 2024 – pelos melhores e pelos piores motivos. A decisão do Brexit em 2016, o início da pandemia em 2020, a invasão da Ucrânia em grande escala em 2022: estes acontecimentos foram mais marcantes. Diria que o acontecimento mais importante de 2024 foi a reeleição de Trump como Presidente dos EUA – que tem impacto direto na Europa e que tornará a União Europeia ainda mais importante como representante da ordem liberal e multilateral que tem estado sob tanta pressão.

Há alguns anos destacou que, se Donald Trump tivesse sido reeleito Presidente em 2020, “o mundo estaria hoje numa situação completamente diferente” e que, “vista deste ângulo, a coesão do Ocidente é tão frágil que temos razões para estar preocupados com o futuro”. A menos de um mês da tomada de posse de Trump, marcada para 20 de janeiro de 2025, está preocupado com o futuro?

Sim, profundamente preocupado. Acredito que a democracia americana vai sobreviver a Trump. Mas todos temos pela frente um período extremamente difícil.

Guerra na Ucrânia está a aproximar-se do fim? "O tempo tende a estar ao lado de Putin, especialmente com o advento da segunda administração Trump", sublinha Kiran Patel (Dmitri Lovetsky/AP)

Tal como aconteceu há oito anos, Trump está apostado em usar as trocas comerciais como uma arma e parece mais concentrado em questões internas em detrimento de questões geopolíticas. Mas não devemos esquecer-nos de que, em 2016, também tinha prometido não se meter nos assuntos de outros países e assim que chegou ao poder bombardeou a Síria, por exemplo. O que podemos esperar da próxima administração norte-americana no plano internacional, nomeadamente no que toca às guerras na Ucrânia e no Médio Oriente?

Há duas coisas de que podemos ter a certeza: Trump vai surpreender-nos e, seja qual for o domínio político, não seguirá uma abordagem coerente, vai manter-se imprevisível. Alguns tentarão agradar ao seu ego, outros copiarão a sua abordagem e um terceiro grupo manter-se-á fiel aos métodos existentes. Para a Europa, isto significa que a UE tem de se manter mais firmemente unida, cumprir as suas próprias promessas e tornar-se mais criativa a lidar com o mundo em geral. Isto inclui o estabelecimento de laços mais fortes com países com valores e interesses semelhantes, como o Canadá e a Austrália. Neste sentido, os novos acordos comerciais com o Mercosul e a Suíça são sinais de esperança. E para além da NATO e da UE, outros formatos e constelações poderão ganhar importância na política internacional. Em questões de segurança, por exemplo, a cooperação com o Reino Unido será fundamental para a Europa continental e, neste caso, poderão ser necessárias soluções políticas criativas, caso Trump enfraqueça a NATO e dado que o Reino Unido não voltará a aderir à UE num futuro previsível.

Também parece haver a certeza de que Trump estará menos concentrado na Europa e no Médio Oriente e mais concentrado na região do Indo-Pacífico, especialmente na China, uma tendência dos EUA há vários anos. Há algum tempo afirmou que, “quando olharmos para trás em 2060, é possível que o conflito entre a China e os EUA tenha tido uma influência maior [no mundo] do que a guerra na Ucrânia”. Como é que 2024 e 2025 podem – ou não – ser anos-chave neste contexto?

As tensões entre os EUA e a China têm vindo a aumentar há várias décadas. Em termos económicos, os dois países são as superpotências mundiais da atualidade; em termos militares, a China está agora à frente da Rússia em indicadores importantes. Resta-nos esperar que os líderes de ambas as partes continuem a encontrar soluções políticas. Um conflito militar entre eles seria muito maior do que aquele que estamos a testemunhar na Ucrânia neste momento – quer para a zona de guerra, quer para todo o globo. Na Europa, temos tendência a ignorar as tensões sino-americanas: a guerra na Ucrânia não é apenas um cenário, mas uma realidade, e está muito mais próxima de nós do que a zona de conflito no Mar do Sul da China. Mas permita-me ser ainda mais especulativo. Olhando para trás, a partir de 2150, é muito provável que a incapacidade do nosso tempo para resolver a crise climática domine as avaliações históricas. A primeira metade do século XXI será provavelmente vista como o último período em que a humanidade poderia ter evitado os efeitos dramáticos e a longo prazo das alterações climáticas provocadas pelo homem. Em vez disso, o egoísmo nacional, a guerra e a preocupação com questões de ordem secundária dominam com demasiada frequência os debates políticos e as práticas sociais atuais.

"Na Europa, temos tendência a ignorar as tensões sino-americanas, [mas] um conflito militar entre EUA e China seria muito maior do que o que estamos a testemunhar na Ucrânia neste momento" (Jim Watson/AFP/Getty Images/File via CNN Newsource)

As guerras em curso e este realinhamento de interesses também nos deram um bloco cada vez mais unido de países do chamado Sul Global, sob a forma dos BRICS, que tiveram uma cimeira importante este ano. Embora não estejam totalmente alinhados, vão os BRICS tornar-se um bloco mundial importante ou estão destinados ao fracasso? E quais as potenciais consequências disso para o Ocidente?

Vejo os BRICS como uma prova de que o mundo está a tornar-se um lugar multipolar, que ultrapassou a bipolaridade da Guerra Fria e o momento unilateral dos EUA durante o período pós-Guerra Fria. Dito isto, os BRICS são um quadro bastante vago, reunindo países de dimensões muito diferentes e com ordens e interesses políticos distintos. É mais fácil apontar aquilo de que os BRICS não gostam do que aquilo que defendem. Enfraquecem o Ocidente, mas não espero que se tornem um bloco poderoso e permanente com uma voz consistente na política mundial.

Uma ideia interessante sobre a qual já refletiu é a de que a Grande Depressão representou tanto uma “crise das ordens políticas existentes” quanto uma crise da economia de mercado global. Com tudo o que está a acontecer, diria que estamos a assistir ao mesmo fenómeno? Será que vamos olhar para 2024 e vê-lo como o ponto de partida de uma nova Grande Depressão?

A ordem pós-Guerra Fria, com um forte papel do Ocidente, uma tónica no multilateralismo e um impulso à globalização, está em crise há já algum tempo. Diria que o verdadeiro ponto de partida da atual crise é o final da década de 2000, com a crise financeira mundial de 2007/8 como raiz importante dessa crise.

É curioso pensar que, no final de 2019, ninguém pareceu prever que a pandemia Covid viria a tornar-se o maior acontecimento do ano seguinte. Este ano assistimos a uma alarmante epidemia de gripe das aves nos EUA e a vírus que saltam cada vez mais dos animais para as pessoas. Estaremos na iminência de uma nova pandemia?

Essa é exatamente a grande questão com o futuro – ser tão difícil de prever.... Sabemos com certeza que vão surgir mais pandemias. Mas não sabemos exatamente quando nem como serão. Diria que devemos preparar-nos mais para esse cenário, fazer mais do que estamos a fazer neste momento.

Também é engraçado pensar que, se olharmos para a história moderna mundial, retrospetivas de dados anos falharam em mencionar o que agora sabemos que foram grandes acontecimentos mundiais que viriam moldar as décadas seguintes, como a invenção da internet moderna em 1983 ou a fundação da Amazon em 1994 e da Google em 1998. Poder-se-á dizer que 2024 foi um ano muito importante em termos de Inteligência Artificial generativa, por exemplo, com todos os benefícios e riscos que a IA encerra?

Considero a IA uma força transformadora, mas não creio que 2024 marque o seu verdadeiro ponto de viragem. Foi o ano em que muitas pessoas se aperceberam do seu poder pela primeira vez. A inovação tecnológica, a criação de empresas que mais tarde dominam a economia global e a consciencialização da sociedade são critérios muito diferentes para definir pontos de viragem. A IA tem uma longa história e os especialistas na matéria (não sou um deles) distinguem várias vagas, sendo as décadas de 1940/50 um importante ponto de partida. Talvez os historiadores do futuro vejam 2016 como o verdadeiro ponto de viragem. Nessa altura, uma IA tomou uma decisão que nenhum humano teria previsto e que acabou por se revelar muito bem-sucedida, quando numa partida de Go (um jogo de tabuleiro chinês mais complexo do que as damas), uma IA chamada AlphaGo fez uma jogada criativa (a jogada 37, que desde então se tornou famosa entre os especialistas em IA) que levantou a questão sobre se a IA se tornou autónoma.

Um jogo de tabuleiro chinês com 3.000 anos foi o foco de um confronto do século XXI, quando o grande mestre sul-coreano do Go, Lee Se-Dol, se defrontou com o Alpha Go, um supercomputador desenvolvido pela Google, no que Patel considera um dos grandes pontos de viragem tecnológicos deste século (Ahn Young-joon/AP)

Ainda no campo tecnológico, não podemos deixar de falar do peso cada vez maior das redes sociais nos processos democráticos – como demonstrado pelo que aconteceu com as eleições presidenciais na Roménia, por exemplo, ou com a detenção de Pavel Durov, do Telegram, em França. Com as suas regras sobre a IA e leis de proteção de dados, a UE tem sido o principal garante dos direitos das pessoas face a gigantes tecnológicos como a Meta e a Google, mas, ao mesmo tempo, como sublinhado no famoso Relatório Draghi, “a posição reguladora da UE em relação às empresas tecnológicas dificulta a inovação”. Qual é a sua opinião sobre este duplo desafio que a UE enfrenta, entre proteger os cidadãos e promover a inovação num mercado global cada vez mais competitivo?

É óbvio que precisamos de ambas, inovação e proteção. Encontrar o equilíbrio correto será fundamental e não há respostas fáceis. A um nível mais fundamental, precisamos de uma UE forte neste domínio. No que toca aos desenvolvimentos globais, qualquer país europeu é demasiado pequeno para ser relevante. Mas se a UE falar a uma só voz, pode ter um impacto global e contrabalançar as forças que estão apenas concentradas na inovação.

Gostava de terminar este balanço com um tema que já abordou: o das alterações climáticas. Em 2024, voltámos a ultrapassar recordes de temperatura global e a assistir a fenómenos meteorológicos extremos, perante a mesma aparente falta de vontade ou incapacidade política para reverter este rumo. Com todos os desafios económicos que se avizinham na Europa e noutras partes do mundo, acha que, no futuro, vamos olhar para 2024 como o ano em que o mundo começou a acordar ou como o ano em que o mundo desistiu verdadeiramente desta luta que as gerações mais jovens continuam a exigir?

Olhando para o futuro, eis a minha maior esperança para 2025: que, apesar das guerras em curso, apesar de Trump e de outros desafios, cada vez mais pessoas se apercebam da nossa responsabilidade partilhada para com o mundo e as gerações futuras. Já não nos resta muito tempo. Lembremo-nos dos principais desafios da nossa era, acreditemos no poder positivo da mudança e comecemos o novo ano com otimismo. E depois mãos à obra!

"A primeira metade do século XXI será provavelmente vista como o último período em que a humanidade poderia ter evitado os efeitos dramáticos e a longo prazo das alterações climáticas provocadas pelo homem" (Noah Berger/AP)

 

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