A Boeing defraudou os Estados Unidos e safou-se com uma "palmada". Eis como

CNN , Chris Isidore e Pete Muntean
18 jul 2024, 08:00
Crise na Boeing (ver créditos na própria fotografia)

A Boeing enfrenta até 487 milhões de dólares (446 milhões de euros) em multas como parte do antecipado acordo em que vai declarar-se culpada de uma acusação criminal, relacionado com dois acidentes fatais com o 737 Max. Os críticos do acordo, contudo, dizem que se limita a uma “palmada na mão”.

Embora as confissões de culpa por parte de empresas da dimensão da Boeing sejam raras, e existam alguns termos do acordo de confissão que os dirigentes da Boeing consideraram, sem dúvida, onerosos, o acordo mostra os limites das acusações criminais a empresas.

A Boeing concordou em declarar-se culpada de uma acusação de ter defraudado a Administração Federal da Aviação, ao ocultar informações cruciais sobre uma falha na conceção do 737 Max durante o seu processo de certificação original. Essa falha de design foi associada a acidentes em 2018 e 2019 que mataram 346 pessoas, mergulhando a empresa numa crise que levou a perdas de 32 mil milhões de dólares (29 mil milhões de euros).

"O Departamento de Justiça não favorece ninguém ao tentar vender isto como um acordo difícil", diz Peter Goeltz, ex-diretor executivo do National Transportation Safety Board e atual colaborador da CNN que presta consultoria a empresas de transportes. "Não cheira a um acordo difícil."

Sob o acordo de confissão alcançado a 14 de julho, a multa de 243 milhões de dólares (222 milhões de euros) que a Boeing concordou pagar em 2021 poderá ser duplicada para 487 milhões (446 milhões de euros).

"Isto é o quê, o preço de três 777?" questiona Goeltz. "Não tenho a certeza de que seja uma coima significativa."

Existem alguns outros números que apoiam a opinião de Goeltz.

Antes do início das perdas em 2019, a empresa estava a declarar uma receita anual recorde de 101 mil milhões de dólares (92 mil milhões de euros) e um lucro operacional básico recorde de 10.7 mil milhões (9,81 mil milhões de euros), o correspondente a 21 vezes o custo da multa de 487 milhões.

Embora a notação de crédito da Boeing corra agora o risco de cair pela primeira vez para o estatuto de "junk bonds", a agência de notação de crédito Moody's declarou, no dia a seguir ao acordo, que esse acordo e as sanções "terão pouco efeito nas finanças ou nas operações da Boeing".

E a Boeing quase escapou mesmo a esta bofetada.

Em janeiro, um tampão de porta rebentou num 737 Max que se aproximava dos 16 mil pés. Embora ninguém tenha morrido ou ficado gravemente ferido naquele voo da Alaska Airlines, o incidente não só atraiu atenção indesejada e uma série de investigações federais, como também derrubou um acordo que a Boeing tinha alcançado em janeiro de 2021 com o Departamento de Justiça para acabar com o risco de processo por defraudar a FAA durante a certificação do Max. O incidente da Alaska Air ocorreu poucos dias antes do fim do período de experiência.

Um acordo barato

A antecipada confissão de culpa não satisfez muito dos familiares das vítimas do acidente, que a classificam como um "acordo amoroso", uma "abominação atroz" e um grave "erro judiciário".

Os advogados das famílias argumentam que a Boeing deveria ter sido alvo de uma multa máxima de 24,8 mil milhões de dólares (22,7 mil milhões de euros), calculada com base num múltiplo do seu cálculo das perdas combinadas sofridas pelas famílias.

Outras empresas que se declararam culpadas de crimes concordaram em pagar multas muito mais elevadas. A gigante petrolífera BP aceitou pagar 4 mil milhões de dólares (3,67 mil milhões de euros) para resolver acusações criminais, incluindo homicídio involuntário, relacionadas com a explosão e o derrame de petróleo na sua plataforma petrolífera Deepwater Horizon em 2010, que matou 11 trabalhadores.

A Volkswagen declarou-se culpada de três acusações criminais nos EUA e concordou em pagar 2,8 mil milhões de dólares (2,57 mil milhões de euros) em sanções penais em 2017, depois de ter admitido ter feito batota nos seus testes de emissões de gasóleo.

"O facto de se tratar de milhões de dólares em vez de milhares de milhões é uma indicação de que estamos perante uma palmada na mão", diz Paul Cassell, professor de Direito da Universidade do Utah que trabalhou no caso da BP em nome das vítimas e que está agora a trabalhar para as famílias envolvidas nos acidentes com o Boeing.

Dois rapazes analisam uma pilha de metal destruído reunido por trabalhadores durante os esforços para recuperar destroços do voo da Ethiopian Airlines que caiu em março de 2019. A Boeing declarou-se culpada de defraudar a Adminstração Federal de Aviação durante o processo de certificação dos aviões modelo Max antes deste acidente e de um outro na Indonésia (Jemal Countess/Getty Images)

Um dos factos que irritam os membros das famílias é o facto de a Boeing ter concordado em declarar-se culpada de uma simples fraude à FAA, em vez de enfrentar acusações de homicídio involuntário pela morte de centenas de pessoas.

"É um caso mais difícil de provar, mas acredito que as provas estavam lá", disse Mark Lindquist, outro advogado que representa os membros da família, bem como alguns passageiros a bordo do voo da Alaska Air.

"Em termos práticos, o resultado poderia não ter sido muito diferente" se tivesse havido homicídio involuntário em vez de acusações de fraude neste caso criminal, aponta Lindquist. "De um ponto de vista filosófico, teria sido mais como uma responsabilização e justiça para as famílias das vítimas."

Porque é que nenhum executivo enfrenta acusações

Embora o Departamento de Justiça tenha anunciado, em janeiro de 2021, que "declarações enganosas, meias-verdades e omissões comunicadas por funcionários da Boeing à FAA" desempenharam um papel direto nos acidentes, o organismo assumiu apenas uma ação criminal limitada contra qualquer funcionário individual e nenhuma contra os principais executivos que supervisionaram as decisões da empresa à data.

O Departamento de Justiça disse numa declaração à imprensa a 15 de julho que o acordo não inclui "qualquer imunidade para qualquer funcionário individual, incluindo executivos da empresa, por qualquer conduta".

Mas dos dois ex-funcionários da Boeing citados no acordo original do caso em 2021, apenas um, Mark Forkner, o piloto técnico chefe da Boeing na época, enfrentou acusações criminais e acabou a ser absolvido depois de o seu advogado ter convencido o júri de que estavam a fazer dele um bode expiatório.

"Na prática, os indivíduos angariam mais simpatia dos jurados do que as empresas", diz Lindquist. "O Departamento de Justiça tomou a decisão de perseguir a empresa em vez de indivíduos."

Existem também defesas num processo criminal de um indivíduo que não são possíveis num processo criminal de uma empresa.

"Com um indivíduo, há sempre outra pessoa a quem ele ou ela pode apontar o dedo", diz Lindquist.

Os advogados da Boeing tinham como parte da sua missão garantir que os executivos da empresa não enfrentavam nenhuma acusação criminal, adianta Lindquist.

"Isso ficou claro desde o início", diz o especialista.

Um porta-voz da Boeing refere que a empresa não tem qualquer comentário a fazer sobre a confissão de culpa prevista ou sobre o caso, para além de um breve comunicado a confirmar o acordo.

Outra forma de fazer os executivos pagar

Mesmo que não haja acusações criminais contra os executivos, eles podem enfrentar penalizações significativas, refere Arlen. Essas sanções podem assumir a forma de "clawbacks", em que a Boeing exige que os executivos devolvam os bónus que receberam durante o período em que a má conduta foi cometida.

"Garantir que os indivíduos são responsabilizados é o mais importante", diz.

Contudo, até agora a direção da Boeing tem dado poucos indícios de querer responsabilizar financeiramente os seus executivos. Recentemente, deu ao CEO Dave Calhoun um aumento de 45%, elevando o seu salário de 22,6 milhões de dólares para 32,8 milhões em 2023 (de 20,7 milhões para 30 milhões de euros).

O seu antecessor, Dennis Muilenburg, perdeu o cargo de CEO no final de 2019 sem qualquer indemnização, mas deixou a empresa com um pacote de ações à data avaliadas em cerca de 80 milhões de dólares (73,3 milhões de euros).

Questionada sobre possíveis “clawbacks”, a Boeing invocou a política da empresa, que em parte afirma: "O conselho de administração deve ter o poder discricionário [...] para recuperar a compensação com base em incentivos paga a qualquer executivo da empresa que se tenha envolvido em fraude, suborno ou actos ilegais [...] ou que, conscientemente, não tenha denunciado tais actos de um funcionário sobre o qual esse funcionário tinha responsabilidade direta de supervisão". Contudo, e apesar dessa linguagem, não houve nenhuma devolução.

Arlen diz que também se justificaria que a indemnização dos membros do conselho de administração fosse recuperada. Embora Calhoun não fosse um executivo durante este período, fazia parte do conselho de administração da Boeing, tendo recebido mais de 300 mil dólares (quase 275 mil euros) por ano enquanto decorria o processo de certificação do Max.

“No final de contas, quando se tem uma empresa com problemas sistémicos, a derradeira responsabilidade recai sobre a administração”, indica Arlen.

Porque é que a Boeing vai manter os seus contratos com o governo

A pena mais grave que a Boeing poderia enfrentar é, de longe, a menos provável – poderia ser impedida de obter contratos com o governo federal devido à sua confissão de culpa. E isso poderia forçar a empresa a encerrar as suas atividades: os contratos com o governo dos EUA representaram 37% das suas receitas em 2023, ou cerca de 29 mil milhões de dólares (26 mil milhões de euros), de acordo com os registos da empresa.

Mas, embora seja necessário obter isenções do governo para dar continuidade aos seus contratos, todos esperam que essas isenções sejam concedidas.

A maioria desses contratos é com o negócio de defesa e espacial da Boeing, não com a sua unidade de aeronaves comerciais. Questionado sobre os contratos com o Departamento de Defesa, o porta-voz do Pentágono, o major-general da Força Aérea Patrick Ryder, disse aos jornalistas a 15 de julho que "o Departamento de Defesa avaliará os planos de remediação da empresa e o acordo com o Departamento de Justiça para determinar quais as medidas necessárias e adequadas para proteger o governo federal".

Mas o governo dos EUA tem poucas alternativas para além de continuar a fazer negócios com a Boeing, apesar da esperada confissão de culpa e dos anos de problemas de qualidade.

Para além da falta de alternativas, poucos ou nenhum decisor do governo federal querem ver a Boeing falir.

Continua a ser o maior exportador do país e tem cerca de 150 mil empregados nos EUA. A empresa calcula o seu impacto económico em 79 mil milhões de dólares (72 mil milhões de euros), apoiando 1,6 milhões de empregos diretos e indiretos em mais de 9.900 fornecedores espalhados por todos os 50 estados. E é crucial para o bom funcionamento do sistema de viagens aéreas do país.

"É muito claro para mim que a Boeing está a sobreviver a isto", diz Robert Clifford, outro advogado de familiares das vítimas do acidente. "Porque é que a Boeing tem um passe que outros réus criminais não têm? Porque é a Boeing."

– Natasha Bertrand da CNN contribuiu para este artigo

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