A arte de Nuno Saraiva sobre os obreiros da Amadora está espelhada nos equipamentos do «Tricolor». Da música às «pastilhas Bayard», o cartoonista recuou até 1999, relatando ao Maisfutebol uma saga que conheceu um novo capítulo, desta feita na Reboleira
Na Reboleira, maio foi um mês de emoções e festa, graças à manutenção na Liga – na última jornada, ante o Gil Vicente – mas também de ideias para a nova temporada. Enquanto o «Tricolor» disputava os derradeiros pontos com Arouca, Vizela e Gil Vicente, a estrutura do Estrela ensaiava a «pele» para 2024/25.
Certo dia, o mural pintado em 2019 na Estrada Salvador Allende, em homenagem a dezenas de «filhos» da Amadora, originou uma vontade suprema. Daí a pouco, tocou o telemóvel de Nuno Saraiva, responsável por tal obra.
«Espera, deixa-me encostar a janela, porque o meu atelier fica junto a Santa Apolónia, então ouve-se o comboio», pede o ilustrador e cartoonista antes de conversar com o Maisfutebol.
A tela embebida nos equipamentos do Estrela são o culminar de séculos de evolução das «tribos urbanas», à boleia do desenvolvimento industrial e num fluxo potenciado pela ferrovia. Habituado à vida nas «margens da capital», Nuno Saraiva – nascido em Almada há 55 anos – recua até ao primeiro capítulo desta saga.
«Em 1999 desenhei sobre estas tribos urbanas. Mas, em 2017, decidi aprofundar a investigação. Para o cartaz do festival Amadora BD, apostei numa homenagem às gentes da capital da banda desenhada», desvenda.
Ora, desprovido de qualquer base bibliográfica, Nuno Saraiva aventurou-se entre arquivos, recuperando os obreiros daquela cidade, dos fidalgos aos artistas. Ao fim de meio ano havia reunido a informação compilada na obra «Gente da Amadora – História e Memória Ilustradas».
«Algumas figuras tive de adaptar, porque há vestígios paleolíticos e romanos, há provas que, antes das povoações, já existiam alguns fidalgos moradores, com quintas. A Amadora transformou-se ao longo dos séculos, mas o que fixou os moradores foi a Revolução Industrial», explica o cartoonista.
O entusiasmo conduziu-o ao legado de Álvaro Justino Matias, «pai das pastilhas Bayard». Além deste «figurão», Nuno Saraiva também descobriu o taberneiro galego mencionado nos «Maias» de Eça Queiroz.
Quanto a personalidades atuais, o entrevistado elenca ao Maisfutebol inúmeros embaixadores da Amadora, como Teresa Salgueiro, António Chainho, Blaya e Valete. Para este último artista, Saraiva guarda um apreço particular.
«É um dos herdeiros do Zeca Afonso. Prezo o trabalho e a escrita dele, algo revolucionário. É importante manter essa postura face ao que é injusto», remata.
E figuras do desporto? Há duas inconfundíveis.
«Desenhei o Duílio, capitão do Estrela na conquista da Taça de Portugal em 1990. E também o Rui Costa, que despontou na Amadora. Foi desenhado com menção à Seleção Nacional, para evitar confrontações clubísticas», esclarece, entre risos.
O referido cartaz de 2017, que evoluiu para mural em 2019, recebeu também homenagens a amigos e mestres, entre os quais Vasco Granja, José Garcês e José Rui, «dois decanos da banda desenhada».
Um sonho com Nani e a exclusão de Jorge Jesus
O convite do Estrela chegou a Nuno Saraiva sem menção ao cartaz e à banda desenhada, mas com elogios ao mural. Analisando meticulosamente a própria obra, o artista elegeu 40 personagens para serem estampadas nos equipamentos. Semanas de anseios e questões, confessa.
«Foi complicado perceber como os desenhos seriam inseridos numa marca tão forte como é um clube de futebol. Tive receio que criassem ruído no equipamento, mas disseram-me que seria um padrão, como um azulejo. O protótipo foi concebido pelos designers do Estrela, eu apenas formulei opiniões», narra.
Fora do pelotão ficou Jorge Jesus: «Não enviei para o Estrela, para não criar problemas, até porque continua no ativo enquanto treinador».
Em todo o caso, Nuno Saraiva identifica potencial para os equipamentos originarem momentos caricatos, por exemplo, aquando de um golo.
«O Nani marca e, ao festejar, quer beijar o símbolo do Estrela, mas engana-se e beija um boneco meu. Por exemplo, beija o desenho da Blaya ou do Stuart Carvalhais [artista]. Seria magnífico. São momentos de celebração à volta dos meus bonecos, é fantástico», exclama, como que ainda incrédulo com o resultado.
A rota para o futuro
Do panorama de equipamentos fabricados em Portugal para os principais campeonatos, a versão 2024/25 do Estrela é um raro caso de aproximação à identidade da cidade natal, com evidentes menções aos «filhos da terra».
«É importante que as marcas, as empresas e os agentes compreendam que os equipamentos não são herméticos, fechados, demasiado sérios. Há uma certa moralidade em volta do “branding” dos clubes», critica Nuno Saraiva.
Para ilustrar tal argumento, o cartoonista recorre ao equipamento alternativo da Bélgica para o Euro 2024.
«Decidiram vestir os jogadores com as cores do Tintim. Era só “Tintins” em campo [risos]. Há uns anos, seria considerado de mau tom ou infantil. Mas, hoje não. O Tintim é uma personagem do imaginário da nossa infância. A imagem deve conter frescura, para atrair os jovens e as franjas infantis», prossegue.
Quanto a «frescura», qual dos três equipamentos do Estrela enche o olho de Nuno Saraiva?
O tradicional atrai, admite, mas opta pela tela que evidencia os seus desenhos.
«Gostei mais do equipamento escuro, ainda que o principal seja muito bonito. Na minha escolha, as figuras sobressaem, com um traço mais claro e apelativo. A transformação em “negativo” ficou muito interessante», detalha.
Portanto, por agora, nos raros tempos livres, Nuno Saraiva assistirá aos encontros do Estrela de alento reforçado e, sobretudo, na expectativa de um golo de Nani, a mais sonante contratação.
«Fiquei boquiaberto, é um orgulho ver um ilustre português, que tão bem defendeu as cores da Seleção Nacional, vestir as minhas ilustrações. A lua está ao nosso alcance.»
«Sou também professor e digo aos meus alunos que devem manter os sonhos vivos e ter uma autoestima blindada. Já trabalhei imensos produtos, mas foi a estreia em estampagem para uma equipa de futebol. E é uma honra», refere, de coração na boca.
Uma águia de olho em Alcochete
Entre projetos, aulas, família e futebol, Nuno Saraiva admite que nunca esteve tão conectado à modalidade. Se outrora como cartoonista na imprensa desportiva, a paternidade renovou os motivos.
«A minha filha joga na academia do Sporting, com um pé esquerdo formidável, e vou acompanhando-a nos treinos e torneios. Além disso, as minhas enteadas são sócias do Sporting e eu pago as quotas. Portanto, nunca estive tão ligado ao futebol na vida afetiva e financeira», revela, entre gargalhadas.
Confesso benfiquista – «muito desiludido» – contrabalança essa amargura com o regozijo que enche o lar. Em suma, o ilustrador acaba por «beber» da felicidade proveniente do sucesso do Sporting.
«Sou um benfiquista numa família de sportinguistas», termina.
Quis o destino que naquela casa se conjugassem os tons do Estrela da Amadora, um emblema que acompanha o fado de Nuno Saraiva desde 1999, sem que o artista desconfiasse de tal.
O «Tricolor» retomará a ação da Liga na noite desta segunda-feira (20h15). Na Reboleira, a arte de Nuno Saraiva – e o legado da Amadora e do Estrela (17.º) – servirá de mote para o embate com outro histórico, o Boavista (13.º).