Formosinho: da série da Amazon ao lado de Mourinho, à conquista do Sudão

23 nov 2021, 23:52
Ricardo Formosinho (DR: Al Hilal SC)

Adjunto de José Mourinho no Tottenham e no Man United, Ricardo Formosinho rumou ao país da África oriental em março deste ano. No final de outubro, um golpe militar fê-lo regressar a Portugal praticamente só com a roupa que tinha no corpo

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@tvi.pt ou rgouveia@tvi.pt

Fiel amigo e adjunto de José Mourinho no Tottenham e no Manchester United, Ricardo Formosinho decidiu no verão de 2020 que estava na hora de voltar a testar-se como treinador principal. Falou com ele e despediu-se com amizade sem saber o que o futuro lhe reservaria.

Meses depois, aterrou em Cartum, capital do Sudão, para treinar o Al-Hilal SC, um gigante de África com 20 milhões de adeptos. Em meio ano conquistou-lhes os corações: mudou hábitos instituídos e, mais importante, venceu o campeonato, pondo fim a um domínio de alguns anos do grande rival Al-Merrikh, apurou-se para a final da Taça (que ainda vai ser jogada) e carimbou o acesso à fase de grupos da Champions africana.

A 25 de outubro, um golpe militar deitou abaixo um Governo incapaz dar resposta a uma crise gravíssima num país estrangulado por uma elevada inflação, pela escassez de alimentos, de medicamentos e de combustíveis.

Nessa altura, o Al-Hilal estava no vizinho Egito, onde ia jogar para a Champions de África e o aeroporto internacional de Cartum foi fechado e o acesso à internet cortado. Por sentir a segurança comprometida, o voo seguinte que Formosinho apanhou foi para Portugal. «Deixei lá quase toda a minha roupa. Os meus pertences pessoais ficaram lá. Os profissionais vieram comigo porque me acompanham sempre para os jogos», conta-nos este setubalense que em 1990 iniciou-se como treinador depois de uma carreira sólida como futebolista, quase toda no Vitória, o clube da terra pelo qual continua apaixonado.

Em entrevista ao Maisfutebol, o setubalense Ricardo Formosinho recordou as aventuras sudanesas e falou sobre a longa amizade com o homem que diz continuar a ser o número 1, apesar da ausência de títulos nos últimos anos. «Ele vai voltar a ganhar e fazer obra na Roma, porque vão dar-lhe tempo.»

DR: Al-Hilal SC

Maisfutebol – Se pudesse definir a sua passagem pelo Sudão numa palavra, qual escolheria?

Ricardo Formosinho – Sucesso.

MF – Porque chegou ao país em abril passado, ganhou o campeonato…

RF – O campeonato, passámos duas pré-eliminatórias da Champions League africana e chegámos à fase de grupos, e apurámo-nos para a final da Taça, que vai ser disputada no próximo mês. Quando lá chegámos, perdemos o primeiro ou o segundo jogo que fizemos, contra o anterior campeão, e depois vencemos todos os 15 jogos da segunda volta e só sofremos um golo. Portanto, sucesso! Era impossível fazer melhor.

MF – E acabou por voltar recentemente a Portugal numa altura em que estava em curso um golpe militar no país. Foi isso que o levou a regressar?

RF – Nós tínhamos acabado de disputar a 2.ª pré-eliminatória para a Champions League, que ganhámos. Estávamos no Egito e é precisamente nesse dia [final de outubro] que a situação se dá. E, claro, tivemos complicações porque não conseguíamos entrar no Sudão. E optámos por regressar diretamente do Egito para Portugal. E há várias razões que me levam a não voltar ao Sudão.

MF – Quais?

RF – O país está num momento de grande reboliço político. Não me sentia 100 por cento seguro como antes e essa é uma das razões.

MF – Foi só quando estava no Egito que deixou de se sentir 100 por cento seguro ou já sentia isso há algum tempo?

RF – Foi precisamente quando se deu o golpe de Estado e nós estávamos no Egito. Pelas imagens que vi na imprensa e pelas informações que íamos recebendo de pessoas nossas amigas que estavam lá, nós sabíamos que o povo andava insatisfeito e que a qualquer momento podia revoltar-se, mas até aí não nos sentimos inseguros, até porque a nossa vida lá era muito profissional: treino-hotel, hotel-treino. Mas a partir do golpe senti que não havia condições de segurança. Não quero dizer que nos fosse acontecer alguma coisa. Talvez não, mas a segurança não era a mesma. E era impossível voltar ao Sudão nos dias seguintes, porque o aeroporto estava fechado. Além disso, não havia internet no país e as nossas famílias não iam ter notícias nossas. Seria duro e optei por sair diretamente do Egito para Portugal à primeira oportunidade. Foi a melhor opção.

MF – E deixou quase tudo lá? Roupa e outros pertences?

RF – Deixei tudo lá. Ainda por cima ganhei uns quilinhos [risos] e quando cheguei a Portugal a roupa que tinha cá já não me servia. Foi uma despesa extra. Os meus pertences pessoais estão lá. Os profissionais vieram comigo, porque me acompanham sempre para os jogos. Espero que em breve me enviem a roupa para Portugal.

MF – Tentaram demovê-lo da sua decisão de voltar a Portugal?

RF – Sim. E até há três ou quatro dias ainda fui pressionado nesse sentido. Queriam que eu regressasse para dar continuidade ao trabalho. Mas estava determinado e continuo a sentir que ainda não há condições de segurança. Pela falta de internet e pelo que se passa nas ruas, sentia que a minha família não ia estar sossegada. E entre estar lá, poder ganhar mais uns dólares, e o bem-estar da minha família e a minha segurança, optei pela segunda opção. Acabámos por rescindir.

MF – Fale-nos de Cartum, capital do Sudão.

RF – Fui poucas vezes para além da minha rotina. É uma cidade muito grande, com vários milhões de pessoas. É uma capital, mas uma cidade tipicamente africana. Um trânsito caótico, sem regras, mas pessoas de uma enorme simpatia. Fomos muito bem recebido e o trabalho que fizemos também ajudou. Vendemos bem a imagem do treinador português e a prova disso é que, depois de eu ter dito que não voltava ao Sudão, falaram com alguns dos meus assistentes, que aceitaram regressar.

MF – Voltando ao início desta sua aventura: como é que um treinador que recentemente apareceu ao lado de José Mourinho numa série da Amazon (All or Nothing dedicado à temporada do Tottenham em 2019/20) vai parar ao Sudão?

RF – Eu estava a trabalhar com o King - é assim que eu trato o José [Mourinho], que para mim continua a ser o Special One – quando entendi que queria ver o que era capaz de fazer com aquilo que desenvolvi perto dele: desde o Manchester United ao Tottenham, onde trabalhei com grandes figuras que me ensinaram muito. Perto do final de uma época, conversei com o José e disse-lhe que gostava de ir à luta. Ele compreendeu-me. O meu alvo era o Médio Oriente. Tinha boas possibilidades aí, mas algumas goraram-se por causa da covid-19. Depois, o Turki Al-Sheikh, que foi quem levou o Jorge Jesus para a Arábia Saudita, contactou-me para me falar de um projeto no Sudão onde ele estaria presente: seríamos protegidos e pagos por ele. Agradeci, mas disse que não. O Sudão não estava nos meus horizontes.

MF – O que é que sabia sobre o Sudão?

RF – Nada mesmo! Mas despertou-me o interesse. Comecei a pesquisar e passado algum tempo ele voltou a contactar-me e pediu-me para repensar. E quem conhece o Turki sabe que não podemos dizer-lhe duas vezes ‘não’. E a vontade dele era enorme: só me perguntou do que é que eu precisava para aceitar. Um bom salário, um staff técnico largo com portugueses, viver no melhor hotel de Cartum. E ele deu-me isso tudo e ainda me perguntou se precisava de mais alguma coisa. Éramos seis portugueses e foi um projeto muito interessante pela parte económica e profissional e que correu muito bem desportivamente. Quando saí do Tottenham, eu sabia que tinha de ganhar, de fazer algo de importante, no clube para onde fosse. Tinha a convicção de que, se não ganhasse, a minha carreira podia acabar ali. Pela idade que já tenho [65 anos] e tudo mais.

Ricardo Formosinho com a equipa técnica que o acompanhou no Al-Hilal. Da esquerda para a direita: Fábio Nuno, Ricardo Silva, Luís Mira, Ricardo Formosinho, Silvino Louro, João Mota e um outro elemento do staff local.

MF – E o Al-Hilal?

RF – Gostei das pessoas, do clube, fizemos obra e mudámos algumas coisas. Construíram-se balneários novos, remodelámos o departamento médico. Modernizámos o clube, mesmo nas infraestruturas. O Al-Hilal é um dos maiores clubes de África. Já esteve no top-3 do continental. Nos últimos três/quatro anos não ganhava nada, mas antes morava assiduamente no primeiro lugar. E a grande ambição deles era voltarem a ser campeões. E nós conseguimos isso. É um clube com todas as dificuldades normais de um clube africano, mas enorme, o maior do Sudão: tem 20 milhões de adeptos. Não digo que um dia não volte ao Sudão, seja para treinar o Al-Hilal ou a seleção, mas com serenidade e que o povo recupere a paz. Nessas condições, estou pronto para regressar.

MF – Como é o futebol sudanês? Pouco profissionalizado?

RF – Foi preciso paciência e alguma pedagogia. Marcámos a diferença na organização no jogo e na competitividade. Quando lá cheguei, eles não se importavam de ganhar dois jogos, empatar um e perder outro a seguir. E a minha grande luta foi meter-lhes na cabeça que ganhar é sempre muito melhor! Mas, para se ganhar muitas vezes, é preciso organização. Felizmente, eles estavam abertos para aprender. E aprenderam rapidamente. Tanto que marcámos 70 e tal golos no campeonato.

MF – E o jogador sudanês? Como é?

RF – Muito talentoso e forte fisicamente. Eles não estavam habituados a trabalhar como nós gostamos. Não treinavam para jogar futebol: o importante para eles era correr muito, saltar e ter muita força e musculatura. E nós conseguimos convencê-los que tinham era de estar preparados para jogar futebol. Receava que eles não entendessem – porque tive uma experiência na Arábia Saudita em que não foi fácil – mas eles perceberam rapidamente. Porquê? Porque íamos ganhando. E a razão está quase sempre do nosso lado quando ganhamos.

MF – Teve de mudar muitos hábitos dos jogadores também na vida deles?

RF – Sim. Tivemos alguma atenção à parte do homem fora do futebol. ‘Onde vives?’, ‘como vives?’, ‘todos comem bem na tua casa?’, ‘alguém passa mal?’, ‘o que é que te preocupa?’

MF – Como viviam os jogadores?

RF – Como tínhamos o apoio do Turki Al-Sheikh, que de vez em quando dava uns bons bónus aos jogadores, eles conseguiam viver bem. Mas são muito poucos os casos de jogadores que ganham o suficiente para terem uma vida tranquila depois de deixarem de jogar: dois, três ou quatro jogadores, no máximo, e têm de passar umas temporadas no Egito ou na Argélia. Todos têm o seu carro, uma vida normal, não lhes falta comida, mas depois do futebol têm de fazer outras coisas. E nós até éramos uns privilegiados, porque tínhamos o apoio de uma direção fantástica. Conseguimos aumentar salários de jogadores e até por isso tivemos uma ligação fantástica com os jogadores, porque sentiram que nos preocupávamos com eles e também com o bem-estar das famílias deles. E isso deu-nos uma vantagem grande. Porque os jogadores ‘pagam-nos’ por essa preocupação: acreditam em nós e seguem as nossas ideias. O Al-Hilal é hoje uma equipa completamente diferente da que era quando eu lá cheguei. Até nos horários.

MF – Como assim? Era normal os jogadores chegarem atrasados aos treinos, por exemplo?

RF – Quase. Os treinos eram marcados para as 10h00 e havia jogadores que chegavam às 10h15 como se nada se passasse. Claro que têm é de chegar muito antes das 10h00 e nós conseguimos incutir isso.

MF – Colecionou histórias caricatas?

RF – O nosso melhor jogador, que é o melhor marcador de toda a África e que podia jogar em Portugal num clube médio – não era titular. Antes de pegar na equipa, assisti a um jogo em que ele só entrou na segunda parte e perguntei porquê. Responderam-me que era porque estava muito calor e ele jogava melhor nas segundas partes: os adversários estavam cansados e ele fazia mais a diferença. Quando tomei conta da equipa, pu-lo a jogar logo: ganhámos 4-0 e ele marcou três golos, dois deles logo na primeira parte. Esse era e continua a ser um hábito instituído nos clubes: os melhores jogadores ficam para a segunda parte.

MF – Mais histórias?

RF – Algumas ficam em Vegas [risos]. Mas posso contar outra história. Lá, é obrigatório estar em campo um jogador com menos de 22 anos e outro com menos de 20. Tínhamos um jogador de 19 que era titular absoluto, mas estava castigado para um jogo, e o habitual suplente adoeceu na véspera. Fiquei sem um jogador de 19 anos e fui dizer a um responsável do clube que precisava de um jogador com essa idade. Mandaram-me um que afinal já tinha mais um ano do que o permitido e lá disse para me mandarem qualquer um desde que tivesse 19 anos.

MF – (…)

RF – Eu nem sabia o nome dele. A 10 ou 15 minutos do fim do jogo, estávamos empatados 0-0 e esse tal rapaz já mal andava. Chamei-o, meti-o a ponta-esquerda e pedi-lhe para se preocupar só com o lateral. E se eu disser que ganhámos 1-0 e foi ele que fez o golo? [risos].

MF – Não me diga…

RF – Absolutamente! Claro que, depois, eu disse à imprensa que sabia que ele podia ser a solução [risos]. Mas a verdade é que nem sabia o nome dele. Depois, fez mais jogos: não era titular, mas era sempre a segunda opção para jogador com 19 anos.

DR: Al-Hilal SC

MF – O Ricardo é um treinador viajado. Além dos projetos nos quais acompanhou Mourinho, passou por Angola, Arábia Saudita, Tunísia, Malásia, Vietname e agora Sudão. Se pudesse escolher um destes países para voltar amanhã, qualquer escolheria e porquê?

RF – Pelo contexto atual?

MF – Pelo que viveu lá.

RF – Vivi coisas muito boas em todos os países. Gostei muito de ter estado na Tunísia e no Vietname. Quando fui para o Vietname, fui com a ideia que quase todas as pessoas têm do Vietname. Não é nada disso: é muito melhor do que isso. Adorei a Malásia, para onde fui acompanhado pela minha esposa. E o Sudão, apesar da forma como terminou, foi fantástico pelos resultados desportivos e por todo o contexto. Voltava a qualquer um deles sem qualquer problema! Com outra estabilidade, gostava de voltar ao Sudão para acabar o que comecei e ver o que era capaz de fazer na Champions League.

MF – E já tem novos projetos em mente?

RF – Estou a olhar para o Médio Oriente, como quando saí do Tottenham. Não quero com isto dizer que sou obcecado pelo Médio Oriente, porque voltaria ao Sudão. Mas tenho contactos e sondagem do Médio Oriente. E estou a apontar mais para aí. Porquê? O futebol dá-nos quase tudo o que podemos ter na vida, mas também tira-nos muito: a família e alguma liberdade. Eu não vou morrer – penso eu – a ser treinador de futebol. Haverá uma altura da vida em que direi basta. Mas aí quero estar numa situação económica estável e poder viver o resto da minha vida com tranquilidade. Neste momento vou atrás da emoção, de um bom campeonato, mas a pensar num futuro que é já amanhã.

MF – E voltar a trabalhar a integrar uma equipa técnica de José Mourinho?

RF – Duas coisas: depois de ser adjunto do José Mourinho, não sou adjunto de mais ninguém. E eu não coloco essa questão [de voltar a ser adjunto], nem ele a põe. Temos uma amizade muito boa, de irmãos, e uma amizade profissional fantástica. E eu não tenho mais 50 anos pela frente como treinador. Penso que o sonho da maior parte dos treinadores é ser adjunto do Mourinho. Eu já realizei esse sonho e agora tenho de ir à procura de outros.

Com José Mourinho no Tottenham

 

MF – Como é que olha para os últimos anos da carreira de Mourinho? Há quem diga que ele perdeu aquele brilho de antigamente…

RF – O futebol é o momento e os adeptos avaliam muito o momento e nós compreendemos. Mas a realidade é esta: para além de ser um dos treinadores mais titulados do Mundo, o José – com todo o respeito por quem tem opiniões diferentes – continua a ser o número 1. O Manchester United não ganhava há muito tempo, mas as pessoas esquecem-se que nós ganhámos três títulos quando lá estivemos.

MF – Incluindo uma Liga Europa.

RF – Que não é um título qualquer. No segundo ano ficámos em segundo lugar no campeonato, só atrás do Manchester City, que era quase imbatível. O terceiro ano não foi tão bom, mas não o terminámos, pelo que não sabíamos como acabaria. No Tottenham, o José é despedido na véspera de uma final que talvez viesse a ganhar. Quem fez melhor do que ele depois de sair do Tottenham?! Quem fez melhor do que ele no Man United?! Falar é fácil. O futebol é o momento e o momento pode não ser o melhor, mas ele continua a ser o melhor. Vai voltar a ganhar e fazer obra na Roma, porque vão dar-lhe tempo.

MF – Considera, portanto, que mantém intactas as qualidades que fizeram dele o melhor treinador do Mundo?

RF – Mais apuradas! Porque é nas dificuldades que os homens inteligentes crescem. E ele tem acompanhado a evolução do futebol, porque é um homem altamente atualizado, ao contrário do que possam pensar.

MF – Para fechar e voltando ao Sudão: voltaria a fazer tudo da mesma forma mesmo que soubesse que no fim teria de voltar a Portugal só com a roupa que tinha no corpo?

RF – Sem dúvida! Em toda a minha vida, a nível profissional e pessoa, dificilmente me arrependo de algo que faço.

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