Tem dois nomes, foi campeão no Uganda e é líder no Botswana

2 mai 2019, 00:35
Made in: Jorge Duarte foi campeão no Uganda e é líder no Botswana

A fantástica aventura de Jorge Duarte no continente africano, onde é mais conhecido por Miguel da Costa. Deixou marca forte em Kampala, comeu gafanhotos fritos e agora brilha em Jwaneng junto a uma das maiores minas de diamantes do mundo.

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@mediacapital.pt e rgouveia@mediacapital.pt

[artigo originalmente publicado às 23h52, 30-04-2019]

Sabia que há um treinador português a lutar pelo título no Botswana? Um treinador que o ano passado foi campeão no Uganda, com o Vipers, e agora lidera outro projeto de sucesso, o Galaxy, em Jwaneng, bem ao lado da jazida de diamantes mais próspera do mundo. Venha conhecer o incrível trajeto de um treinador que viu a carreira de jogador terminar subitamente nos juniores do FC Porto e agora anda a dar cartas em África e até já come gafanhotos fritos sem fechar os olhos.

Chama-se Jorge Duarte. Ou melhor, chama-se Miguel da Costa. «O meu nome é Jorge Miguel da Costa Duarte, mas eles aqui em África não usam nem o primeiro, nem o último nome. Preferem os do meio. Para estes lados, se falar em Jorge Duarte, ninguém conhece», começa por esclarecer.

Nasceu há 38 anos, em Espinho e, desde cedo, revelou uma atração irresistível pelo futebol. Até tinha jeito, fez a formação no FC Porto e até chegou aos juniores, mas o sonho desfez-se em pedaços depois de uma lesão que o impediu de continuar a fazer o que mais gostava. «Tive uma lesão no joelho, com ligamentos e tudo mais. Acabei por ficar com receio e deixei o futebol. Parei mesmo de jogar, mas o bichinho ficou lá», recorda.

O sonho ficou na gaveta por alguns anos, mas o tal «bichinho» não deixou de moer. Jorge Duarte não se rendeu e acabou por regressar por outra porta. Tirou o curso de treinador e, aos 28 anos, estava de volta, agora como treinador. Começou a trabalhar ao nível da formação no Maia Lidador. Depois passou pelo Maia e São Félix Marinha e, já com seniores, treinou o Cruzeiro de Silvalde e os Leões Bairristas, sempre ali, nos arredores do Porto.

Jorge Duarte ainda não sabia, mas este percurso acabaria por revelar-se determinante para adquirir bases para o que aí vinha. «O facto de ter trabalhado com camadas jovens em clubes com poucos recursos ajudou-me bastante aqui em África porque, apesar dos clubes terem algum nome, em termos de condições nós temos de nos reinventar quase todos os dias. Isso deu-me uma base importante. Por outro lado, tive a felicidade das equipas que tenho treinado em África serem muito jovens, com jogadores entre os 18 e os 24 anos. Como tinha trabalhado essencialmente com a formação isso deu-me uma bagagem importante para agora as coisas serem mais fáceis».

O primeiro contato com África surgiu há cerca de dois anos e meio. De forma inesperada. «Por estranho que pareça recebi uma proposta para a seleção nacional do Uganda. Fui ao Uganda, estive lá só dois ou três dias, mas, entretanto, as coisas não correram como o desejado e acabei por voltar». Jorge Duarte acaba por regressar a Portugal, mas deixou sementes em Kampala, a capital do Uganda. «Houve uma pessoa que na altura estava na federação que gostou de mim e passado ano e meio voltou-me a chamar para treinar um clube».

Desta vez era a sério. Jorge Duarte voltava a aterrar no Aeroporto Internacional de Entebbe, a trinta quilómetros da capital do Uganda, para assinar pelos Vipers. Foi tudo diferente. «No início é um choque grande de culturas. O meio ambiente é completamente diferente. Apesar das pessoas serem bastante alegres e bem-dispostas, por norma vivem em condições que nós não estamos habituados. Para eles é normal, mas para quem chega é um choque grande. Mas, com o tempo, acabamos por entrar na cultura, na comida, na maneira de estar. A forma que eles têm de se entrosar é bastante positiva e acaba por tornar tudo mais fácil».

O Uganda é uma antiga colónia inglesa, independente desde 1962, portanto, Jorge Duarte não teve problemas de comunicação. «Todos falam inglês, é a língua oficial». Faltava conhecer o clube. «O Vipers é um clube emergente, é o único clube do país que tem o próprio estádio, tudo o resto são campos municipais ou estatais. Um clube que tem vindo a crescer paulatinamente e tem uma visão estratégica interessante. Gosta de apostar nos jovens».

O estádio, chamado St. Mary, tinha acabado de ser construído de raiz e foi inaugurado precisamente na estreia de Jorge Duarte, num jogo para as competições africanas, frente ao Platinum Stars, da África do Sul. Novo treinador, estádio a brilhar e uma vitória logo a abrir, com o adolescente Milton Karisa a marcar o primeiro golo no novo recinto. «Tive essa felicidade de fazer a estreia. É um estádio já com uma boa dimensão, com um bom relvado e, inclusive, com quartos para que os jogadores possam lá estagiar. Em ternos de infraestruturas é um clube interessante. Tentei dar uma ajuda em termos estruturais, que é o grande problema em África».

Jorge Duarte chegou com a época a decorrer, pega na equipa em oitavo lugar e acaba em terceiro. Na época seguinte, a equipa está ainda mais forte e chega ao ambicionado título. Os jornais ugandeses destacam os novos métodos do treinador português e relacionam o sucesso súbito à motivação que o novo treinador trouxe não só aos jogadores, mas também ao clube.

«Eles queriam que eu fosse só no início da época seguinte, mas pedi para ir logo a meio da época para me ambientar com o país e com tudo o que rodeia o futebol. Fiz meia época e ficámos em terceiro. Na época seguinte fomos campeões, fomos à final da Taça e fomos aos quartos de final da Taça Interclubes da CECAFA (torneio reconhecido pela FIFA que inclui as equipas da África Central e Oriental)».

Um sucesso repentino que está relacionado com a forma como Jorge Duarte, neste caso, Miguel da Costa, motivou a equipa. «É um dos meus pontos fortes, vem do trabalho de formação, do tato com os mais jovens. Muitas das vezes as condições que encontramos aqui em termos estruturais nem sempre são as melhores, por isso um dos segredos com que nos deparamos aqui em África é a forma como envolvemos os jogadores. Isso depois transporta-se para os adeptos, para as direções e conseguimos criar um grupo bastante forte e, assim, é mais fácil vencer».

Foram várias as conferências de imprensa em que o treinador português se referiu aos seus jogadores como «os melhores do mundo». «A forma como abordava os jogadores faz com que eles acreditem e confiem mais em nós. Criámos uma mentalidade diferente. Incluímos bola em todos os treinos e eles não estavam habituados a isso. Trabalhei muito ao nível da mentalidade. Depois é moralizar as tropas e conseguirmos resultados, é mais fácil trabalhar em cima de vitórias. Quando estamos a trabalhar, estamos a trabalhar, depois do trabalho somos uma família. Se eles são os meus jogadores, tenho de acreditar de facto que são os melhores do mundo. É com eles que temos que ir para a frente, daí estar sempre a frisar isso. Para mim eram os melhores do mundo».

Além do aspeto motivacional, Miguel da Costa era também conhecido pelo seu temperamento, não só em campo, mas também nas conferências de imprensa. «Acabamos por criar as nossas defesas consoante o ambiente em que estamos. Muitas das vezes em África, às vezes não é fácil, há sempre coisas para além do futebol. Os jornalistas, por exemplo, são muito diferentes dos que temos na Europa. Eles preocupam-se muito mais com coisas extra-futebol do que com o jogo. Preocupam-se mais em saber porque é que A, B ou C não jogam do que aqueles que jogam. Acabei por criar defesas para lidar com a pressão que é criada por eles. É a minha maneira de reagir, nunca fui agressivo, mas tento passar a imagem de mau da fita para que, dentro do grupo, possamos estar tranquilos».

A verdade é que o Vipers acabou a temporada, na época passada, a festejar o título. Kampala saiu à rua. «Foi uma festa incrível. É um clube jovem, procurava já há algum tempo o título. Foi uma explosão de alegria, foi o concretizar do sonho que eles tinham: a primeira vez a jogar no novo estádio foram campeões e podiam jogar nas competições africanas. Foi o culminar de um sonho que todos os adeptos tinham. Os adeptos são fervorosos, adoram futebol, adoram a equipa que suportam. O fim da época foi um êxito para eles».

A festa deu lugar a apreensão, dois meses volvidos, Jorge Duarte estava de saída do clube e do país. «Houve um desentendimento com a direção. Queríamos reforçar a equipa tendo em conta as competições africanas. Foram dados alguns nomes por mim, mas no dia em que vamos embarcar para a Tanzânia, para os jogos da Taça CECAFA, deparo-me com sete jogadores novos, sem qualquer conhecimento da nossa parte e foi-me dito, inclusive, que esses jogadores teriam que jogar».

Inaceitável para os padrões de Jorge Duarte. «Se sou eu que treino toda a semana, sou eu que escolho quem joga. Sou eu quem escolhe quem é melhor para representar a equipa e não a estrutura. Achei por bem sair, havia um conflito de interesses, pelo qual não me revejo». Começava aqui um desentendimento crescente que acabaria por levar mesmo à saída do treinador.

Jorge Duarte ainda passou por um momento complicado no regresso a Kampala. Cortaram-lhe a televisão por cabo, depois a água e a luz. Três dias às escuras e sem tomar banho na capital do Uganda que acabaram com o regresso a Portugal. Um episódio feio a manchar uma história feliz. «Nada que eu desse valor, não me enquadro nessa maneira de estar. Já tinha tomado a decisão e, mais dia, menos dia, ia regressar a Portugal». Apesar de tudo, Jorge Duarte acabou por esclarecer todos os mal-entendidos. «É um clube de que gosto, os adeptos têm um enorme respeito por mim».

II capítulo: a caminho dos diamantes

Jorge Duarte regressa a Portugal, mas por pouco tempo. Ainda não tinha passado uma semana e o jovem treinador já tinha recebido chamadas do Quénia, da Etiópia e do Botswana. «Uma pessoa depois de estar em África acaba por criar contatos, por abrir novos caminhos». Jorge Duarte teve de fazer uma escolha e, tendo em conta os projetos, acabou por optar pelo Botswana, para treinar o Jwaneng Galaxy. Assim, quase sem desfazer as malas de Kampala, Jorge Duarte estava a caminho de Jwaneng, uma cidade que fica a pouco mais de 150 quilómetros da capital Gaborone e que é sustentada por uma das minas de diamantes mais rentáveis do mundo.

«É um país completamente diferente do Uganda, bem mais desenvolvido em termos estruturais, comunicacionais, organizacionais. É um país que já podemos comparar com a nossa Europa, com algumas dificuldades, claro, mas um país já bastante desenvolvido, como acontece com a vizinha África do Sul». Jwaneng, em particular, teve um crescimento exponencial graças à mina gerida pela empresa Debswana que tem produzido as melhores gemas do mundo. «A vida aqui anda à volta da mina, é uma das maiores do Mundo, com os melhores diamantes do mundo. 85 por cento do produto interno bruto do país é proveniente das minas de diamantes. Duas em Jwaneng e outra em Orapa que pertencem à mesma empresa, a Debswana».

O novo clube de Jorge Duarte, o Galaxy, nasceu precisamente há cinco anos, impulsionado pela dinâmica criada pelos valiosos diamantes. «Este é o quinto ano de vida do clube, o terceiro na I Divisão. Tem uma estrutura já muito bem delineada, com uma visão estratégica muito interessante. Todos sabem o que têm de fazer em prol do clube o que nos dá um apoio muito bom». O plantel é limitado, pelo regulamento local, a três estrangeiros: «Temos dois da África do Sul e um do Zimbabwe».

A verdade é que, a três jornadas do fim, o Galaxy é líder com mais um ponto do que o Township Rollers, o clube com mais troféus no país e o eterno favorito ao título. «São os tubarões cá do sítio, com uma história já grande, que está habituado a ganhar quase sempre em todas as épocas quase todos os troféus. Está a ser uma luta bastante interessante, daí ter escolhido vir para cá, um projeto bastante aliciante em termos individuais e coletivos. Já ganhámos um dos títulos em disputa, o Mascom Top 8 que corresponde à nossa Taça de Portugal e, neste momento vamos lutar até à última gota para sermos campeões pela primeira vez na história do clube».

Já esta quarta-feira, o Galaxy vai ter um jogo importante, frente ao Orapa United, o terceiro classificado. «É um jogo de extrema dificuldade, mas jogamos em casa. Sabemos que temos de ganhar para continuar na luta pelo título. Vamos para o jogo com tudo para somarmos três pontos e continuar em frente na luta pelo campeonato».

Ao olhar para a classificação do campeonato do Botswana, deparámos-nos com alguns nomes de clubes inusitados, como os Police XI, o Prisions XI ou o Security Systems. «É engraçado. São clubes que têm por base as instituições do país. O BDF, por exemplo, é o clube do exército, o Police, como o nome diz, foi criado pela polícia, o Security Sistems está ligado a uma empresa muito antiga de segurança. É uma forma que eles têm de conseguir patrocínios para alavancar os clubes. Por outro lado, eles valorizam muito a parte social, as instituições e as empresas acabam por patrocinar projetos que, na cabeça deles, podem ter alguma importância na sociedade. Mas todos esses clubes têm organizações interessantes. O Police, por exemplo, vamos lá e eles têm um quartel-general interessante. Além do estádio têm mais três campos de futebol, campos de basquetebol».

Tal como no Uganda, Jorge Duarte criou laços fortes com os jogadores do Botswana. «Há tantas histórias. Por exemplo, gosto de dar liberdade aos jogadores para que se possam expressar. Às vezes, como bons portugueses que somos, quando estamos irritados com alguma coisa, sai sempre uma ou outra asneirada. É incrível, mas às vezes, quando acontece alguma coisa no treino e eu não estou contente, dou por mim a ouvir os próprios jogadores, entre eles, a dizerem palavrões em bom português. É muito engraçado, acabamos todos a rir. É sinal do bom ambiente que temos no dia a dia».

Futebol à parte, Jorge Duarte leva uma vida pacata em Jwaneng. «Além das horas que passo no escritório, também gosto de trabalhar em casa, à noite, antes de ir dormir. Quando tenho um tempinho vago, gosto de ver televisão, tenho a felicidade de aqui, como estamos perto da África do Sul, que tem uma forte comunidade portuguesa, ter aqui canais portugueses, a RTP, a SIC Notícias, a TVI. Acaba por ajudar a matar as saudades e ouvir a nossa língua, apesar de estarmos tão longe».

O treinador do Galaxy aproveita ainda o tempo livre para passear, até porque sente segurança para isso. «Completa segurança, aliás, de todos os países de África, o Botswana é o único que nunca teve uma guerra. Em ternos políticos também é um país muito bem alavancado. Pode-se sair à noite, pode-se dar uma corrida à noite, pode-se ir ao café, sem qualquer tipo de problema».

Jwaneng, além dos diamantes, também tem procurado impulsionar o turismo, através do Jwana Game Park, um parque com animais selvagens, impulsionado pelas minas, que atrai muitos estrangeiros Ainda recentemente o parque adicionou dois rinocerontes brancos, uma espécie em vias de extinção. «Já visitei, está inserido nos terrenos da mina. É muito interessante, é a vida animal africana em todo o seu esplendor, podemos encontrar todos os animais que podemos pensar. É espetacular ver todos aqueles animais no seu ambiente natural».

Jorge Duarte também adaptou-se facilmente à exótica alimentação do país e assume que já experimentou alguns «petiscos» fora do vulgar. «Acabámos por nos adaptar, tanto no Uganda, como aqui no Botswana, apesar de ser tudo bastante diferente. Acabo por experimentar coisas que provavelmente em Portugal nunca experimentaria».

Por exemplo? «Eles fritam uns insetos que chamam grasshoppers [gafanhotos]. Acabei por comer e posso dizer que é fantástico. Ao início tinha de fechar os olhos e não pensar no que estava a comer, mas agora já como normalmente como um aperitivo. São fantásticos».

Uma carreira a todos os níveis surpreende, dos pequenos clubes do Porto, para agora estar a dar cartas em África. «Sinceramente não estava à espera de, em dois anos e meio, alcançar em África três títulos e de estar à porta de conseguir um quarto. É um sinal do nosso empenho, do nosso querer, da nossa vontade. Isso deixa-me feliz e esperançoso que outras coisas possam aparecer. Vim sem saber bem o que ia encontrar, esperamos sempre o melhor, mas, com o andar do tempo, ambientei-me bem às situações nos dois países em que estive e as coisas correram bem».

Jorge Duarte tem convites para continuar em África, não só do Galaxy, mas também de outros países, mas também não descarta um regresso a Portugal para estar mais perto da família. «Agora estou aqui sozinho. Quando estava no Uganda, a minha família foi passar o Natal comigo. Este ano o clube permitiu-me ir a Portugal passar o Natal. Gostava de ter um projeto no nosso país, mais perto da família e dos amigos».

No entanto, a verdade é que Miguel da Costa, nesta altura, tem melhor currículo do que Jorge Duarte, que é como quem diz, o treinador com quem estamos a falar tem mais nome em África do que na Europa. «Um regresso a Portugal é difícil, sei que aqui em África tenho mais saída. Já tive contatos de dois clubes de dois países diferentes. Aqui sei que posso continuar com projetos aliciantes», conta ainda Jorge Duarte. Ou melhor, Miguel da Costa, assim é que é.

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