Do estágio no Benfica com 40 anos à conquista da Taça Sul-Americana

12 jan 2023, 09:18
Ricardo Pereira (Foto: Ricardo Pereira)

O percurso de Ricardo Pereira é inspirador. Após uma carreira nos escalões inferiores, largou a segurança do trabalho como coordenador pedagógico para se tornar treinador de guarda-redes. Do Benfica passou por Bélgica, Polónia e Arábia Saudita até chegar ao Independiente del Valle, o clube «mais europeu» da América do Sul

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@tvi.ptrgouveia@tvi.pt ou vemaia@tvi.pt 

O percurso de Ricardo Pereira é, no mínimo, inspirador. Depois de uma carreira de jogador em clubes da terceira divisão nacional e da distrital, decidiu largar a segurança do trabalho como coordenador pedagógico e cumprir o objetivo de ser treinador de guarda-redes.

Estudou, formou-se e iniciou um estágio no Benfica com 40 anos. Percorreu o escalão de sub-13 e sub-17 até chegar à equipa B dos encarnados. A partir daí, a carreira de Ricardo atingiu outros patamares: Arábia Saudita, Polónia, Inglaterra, Bélgica e Equador. 

É nos arredores de Quito, nas instalações do Independiente del Valle entre dois treinos de pré-época, que o Maisfutebol encontra Ricardo Pereira. O dia a dia do português que ousou a arriscar e foi feliz: fez parte da equipa que venceu a Taça Sul-Americana e a Taça do Equador.

 

Maisfutebol: Ricardo, como é que surgiu a oportunidade de ir para o Independiente del Valle?

Ricardo Pereira: Não estava na minha cabeça. Tinha acabado de chegar ao Nottingham para coordenar toda a formação quando um amigo finlandês me disse que ia sair do Independiente e que eu era pessoa ideal para o substituir. Disse-me também que o clube era completamente diferente dos outros e com uma forma de jogar distinta. O desafio era coordenar todo o trabalho de guarda-redes na formação e assumir o papel de treinador de guarda-redes na equipa principal.

O mister Renato Paiva descreveu, recentemente, o rigoroso processo de recrutamento do clube. O Ricardo viveu o mesmo?

Todo o processo impressiona. Apresentei uma análise do processo de construção da Roma do mister Paulo Fonseca. Depois escolhi o Standard Liège para o processo de controlo de espaço do guarda-redes e apresentei-o. Passei por duas ou três entrevistas nas quais me fizeram todas as perguntas e mais algumas até chegar aqui. Pode ser surpresa para muita gente, mas as condições financeiras eram fabulosas. Depois vi a equipa do mister Miguel Ángez Ramírez jogar e deixei-me fascinar. Senti que este era um modelo de jogo diferenciado.

O Equador é um mercado pouco explorado pelos treinadores portugueses. Já conhecia alguma coisa do país?

Vim para o meio do mundo, não para o fim do mundo. Fui à procura porque conhecia muito pouco do país. Sou uma pessoa de convicções e não tenho medo de arriscar depois de analisar o que poderei dar e receber. Conhecia muito pouco do país, mas hoje sou fã das suas gentes. É um país de gente humilde, a maioria vive com muitas dificuldades. Mas é um país riquíssimo na produção agrícola, na culinária, na bondade e na alegria. Além disso, o clima é fabuloso. A temperatura varia entre os 15 e os 20 graus todo o ano. Enquanto profissionais de futebol e trabalhadores deste clube, temos todas as condições a nível de habitação e de transporte para só pensarmos na nossa função.

O modelo do Independiente del Valle privilegia muito a posse de bola e o guarda-rede é muitas vezes solução com os pés.

Antes de vir, senti que o modelo de jogo era diferenciado e que eu ia crescer em função do que é pedido ao guarda-redes do ponto de vista ofensivo. Às vezes, confunde-se o que é jogar bem com os pés. O que é jogar bem com os pés? Muitas vezes, é saber estar muito bem posicionado. Neste modelo, por exemplo, o guarda-redes tem de abrir a baliza e ocupar o lugar de um central o que permite que este avance para o lugar do lateral. Vim para o Equador para partilhar, ajudar, mas também para receber e aprender. E não me enganei. Sinto-me em casa, mas acima de tudo, sinto-me a evoluir muito. Discuto e partilho ideias. Acertei na ‘muche’.

Como é um dia da vida do Ricardo no Equador?

Vivemos a cerca de 35/40 minutos das instalações do clube que ficam fora de Quito. Estamos longe da confusão, Quito é uma cidade que tem muito trânsito. Saímos de casa por volta das seis da manhã todos os dias. É quase condição sine qua non estar aqui às sete horas. Revemos o treino do dia anterior e o que vamos apresentar na sala de vídeo. Todos os dias vamos à sala de vídeo, mas não vamos por ir nem para massacrar os jogadores com informação. A maioria das vezes estamos lá cinco minutos, mas é lá que o dia começa. De seguida, os jogadores passam para o ginásio e muitas vezes, aproveito esse momento para retirar os guarda-redes e iniciar o meu treino.
 

Ricardo Pereira e os seus guarda-redes antes de mais uma sessão de trabalho.


Como é o treino?

Preciso sempre de 40 a 45 minutos de trabalho específico. É a minha metodologia. O campo de futebol é para jogar futebol. Para realizar trabalhos de compensação, utilizamos o ginásio. No campo, fazemos trabalho específico e depois, os guarda-redes integram o trabalho coletivo. No final, os guarda-redes ainda fazem trabalhos preventivos no ginásio, maioritariamente exercícios de trem superior porque das pernas tratamos nós no campo. Depois almoçamos e ficamos a preparar o treino do dia seguinte. Aproveito também para cortar o treino e sem massacrar, passo uma coisa ou outra por WhatsApp ou Telegram. Sinto que aproveitamos tão bem o tempo que não há necessidade de sair às 18h ou 19h. Por vezes, às 16h, já estamos a sair.

O Ricardo não tem aí a família. Como aproveita esse tempo após os treinos?

Aproveito para falar com a família. Normalmente tento falar com a minha família às cinco da manhã [no Equador], dez horas em Portugal. Caso não consiga falar durante o dia, aproveito antes da minha esposa se deitar, para lhe ligar. Graças a Deus temos uma equipa técnica fantástica. Estou com argentinos, gente amante de assados e então temos momentos fantásticos. Outra vezes, prefiro estar sozinho. É claro que há um período de alguma solidão, não é fácil.

Quais as principais diferenças que encontrou entre o futebol europeu e o equatoriano no que respeita à sua função?

O clube investiu em treinadores estrangeiros e a maioria veio da Aspire já com uma filosofia de jogo bem vincada. Os guarda-redes já chegam à primeira equipa com um entendimento de jogo parecido com o que tínhamos no Benfica. Por exemplo, na Polónia encontras animais físicos enquanto aqui tens craques com 1,82m ou 1,84m. Por vezes, há uma obsessão pelas medidas dos guarda-redes. Essa foi uma das adaptações que tive de fazer. O perfil dos guarda-redes está a mudar no clube. Deixamos de comprar guarda-redes e subimos continuamente miúdos da formação à equipa principal. Trabalho com guarda-redes de 22, 21, 19 e 17 anos.

Existe uma continuidade no clube desde a base.

O meu antecessor, o Jarkko Tuomisto, fez um trabalho fantástico e a minha linha de pensamento de jogo é a mesma: obrigar a decidir rápido, discutir continuamente o posicionamento e posições para atacar o espaço. Defender o espaço é estar bem posicionado para chegar muito antes no um contra um, é estar muito fora para definir um cruzamento entre linha defensiva e o espaço do guarda-redes. Isso observa-se quando se vê os nossos guarda-redes. Encontrei aqui a minha casa para o que acredito que deve ser um guarda-redes moderno.

O que é um guarda-redes moderno?

É um guarda-redes que defende o espaço, que sabe defender a baliza reduzindo esse mesmo espaço ou dando profundidade. Tem de ser um guarda-redes que é continuamente o homem livre no processo de construção. Dá um ‘charuto’ quando não tem outra opção. É estimulado a fazê-lo quando não viu nada previamente. No entanto, há um trabalho contínuo desde os sub-12 até à equipa principal para que os guarda-redes se saibam posicionar e se mostrem disponíveis para jogar. Os guarda-redes aprendem, desde cedo, que julgamos muito mais a decisão do que a execução ou o resultado.

Mas há o risco de falharem.

O meu guarda-redes ‘entregou’ duas vezes com os pés no ano passado, mas quando analisas tudo o que deu, as linhas que quebrou para teres uma saída limpa e o risco com que jogou… Tens de estar disponível para correr esse risco. Todos sabem dar um ‘charuto’, mas assumir o risco não é para qualquer um. Gosto de equilibrar a forma de trabalhar porque a parte defensiva é fundamental assim como a parte ofensiva. Mas o que dá pontos à equipa são as mãos.

O quão difícil é adaptar o seu trabalho às ideias do chefe de equipa, ideias essas que podem ser diferentes das suas?

É uma excelente questão. É o maior desafio que existe para um treinador de guarda-redes. Não seria inteligente não adaptar o meu processo de treino às necessidades da equipa e ao que me pedem. No jogo da equipa o guarda-redes abandona continuamente a posição convencional para dar uma boa linha de passe portanto, tenho de trabalhar isso. Não é o mesmo que fazer exercícios padrão de técnica pura. Não lhe traria a realidade do jogo para o treino. Temos de entender que no exercício mais simples e básico, se usarmos a massa cinzenta, conseguimos a aproximar o treino do guarda-redes à forma de jogar da equipa.

Ainda assim continua a ser difícil reproduzir em treino o que é o jogo.

Gosto de dar exemplos. Imagina que vou trabalhar situações de cruzamento curto. Não tenho uma linha defensiva, não tenho a linha avançada adversária nem a linha média contrária a chegar à área. Mas tenho dois ou três guarda-redes e sei onde vou meter o air-body. Além disso, sei também até onde vai a linha defensiva. Tento trazer a realidade do jogo para o treino através de situações simples.

 

Ricardo Pereira fez parte da equipa do Independiente del Valle que venceu a Taça Sul-Americana.


...

Se calhar tive a sorte de beber muita coisa logo no Benfica, mas depois fiz o meu processo e evoluí. Nem poderia ser de outra forma. Penso muito o meu treino em função do que é que a equipa vai fazer. Isso tem influência. Por vezes, os treinadores dizem que o treino vai ser suave para a equipa, que será só finalização, mas se eu só tiver dois guarda-redes no treino… eles vão acabar ‘mortos’. Tenho de jogar com isso e saber quantos guarda-redes vou ter. Além disso, tenho de jogar com tudo o que foram as sensações com que eu e o meu guarda-redes saímos do último jogo.  É uma tontice trabalhar apenas no erro. Prefiro fazê-lo de forma a ele nem dar conta. Preciso também de saber como é que o meu adversário joga, como me vai pressionar e por onde é que a minha equipa quer entrar. Faço sempre um ou outra adaptação nos meus exercícios em função da estratégia para o jogo.

Quando é que decidiu ser treinador de guarda-redes?

Tenho um percurso um bocadinho diferente. Fui guarda-redes toda a vida, mas dentro do nível a que podia jogar. Andei pela terceira divisão e pelas distritais. Costumo dizer que tenho tido muita sorte, mas também tenho muita paixão. Tentei e ainda tento saber sempre mais. Iniciei a minha carreira com 40 anos como estagiário nos sub-13 do Benfica a receber zero. Arrisquei muito na minha carreira. Vivo uma segunda carreira, no fundo. Nunca atingi como guarda-redes o que sonhei, mas consegui-o como treinador de guarda-redes.

O que fazia antes de ser treinador de guarda-redes?

Era coordenador pedagógico da Kidzania. Sou educador de infância de formação e psicólogo clínico. Precisei de estudar para sustentar a família. Continuava a treinar às 21 horas pela paixão, pelas sandes e pelos sumos. Quando estava a preparar o final da carreira, fiz todos os cursos que havia em Portugal. Fui à Escócia de mochila às costas e dormi num quarto com mais oito pessoas porque não tinha dinheiro para mais. O que tinha como guarda-redes de distrital não era suficiente para ser um treinador de guarda-redes com algum nível. Sem dúvida que o futebol distrital me ajudou muito, mas não era suficiente. Depois no Benfica, houve gente que me ajudou muito. O Hugo Oliveira foi quase um mentor nos meus primeiros anos. Fui dos sub-13 aos sub-17, dos sub-17 à equipa B e depois para a Arábia Saudita, Bélgica e Polónia.

Como é ser treinador de guarda-redes?

É tão ou mais bonito do que ser guarda-redes. És guarda-redes do lado de fora. Evito muito o protagonismo e tento viver na sombra destes rapazes. Valorizo muito o segundo e terceiro guarda-redes. Tens de fazer isso para que eles não sintam que estão a perder tempo. Quando estive no Standard, havia um miúdo [Bodart] que era suplente do Ochoa e do Gillet e hoje é o titular indiscutível. Era o meu terceiro guarda-redes, passou o ano inteiro a levar bolada e foi quem mais trabalhou. Hoje estou mais tranquilo, mas sei que vivo numa profissão em que no final de um jogo posso não ter emprego. No entanto, ajudar a mudar a vida destes rapazes ou raparigas, não tem preço. Agradeço muito ao futebol por tudo o que me deu, mas encaro a minha profissão como uma oportunidade para mudar a vida de alguns jovens.

Para terminarmos, uma vez que tem de ir para o treino, como define o Independiente del Valle?

O clube cresceu de um sonho de empresários de grande sucesso. Eles sonharam dar uma vida diferente aos jovens equatorianos através de uma formação de qualidade. A força do clube nasceu a partir daí. O clube tem uma formação humana e desportiva do mais alto nível. Quem deixa o Independiente para jogar na Europa não fica surpreendido com uma forma de jogar mais elaborada, porque passaram por tudo isso na formação. Este clube baseia-se muito no futebol de formação e o seu jogar passa por ter bola e em querer recuperá-la muito depressa. Para as pessoas terem noção, dois dos cinco milhões de euros que o clube encaixou com a conquista da Taça Sul-Americana foram investidos em novas instalações para a formação e para o futebol profissional. É o clube mais europeu da América do Sul, se é que temos o direito de dizer isso. É um clube que estima os seus, que faz as pessoas sentirem-se em casa e que honra os seus compromissos. É suposto recebermos os vencimentos no dia 30 e muitas vezes, não sabemos se recebemos dia 15 ou 20. Todos são muito bem tratados e isso faz toda a gente querer dar um bocadinho mais. Estas são as organizações de sucesso.
 

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