O economista Ricardo Reis afirma que o conflito no Médio Oriente agrava os riscos de novas subidas de juros e pede coragem ao BCE para não ceder às pressões dos políticos e combater a inflação
Ricardo Reis, economista e professor da London School of Economics, afirma em entrevista ao ECO que o conflito no Médio Oriente, na sequência do ataque do Hamas a Israel no dia 7 de outubro, poderá obrigar o BCE a aumentar novamente os juros. “Há aqui mais um risco que pode puxar para termos de subir mais os juros, e esse risco é, de facto, a subida do preço do petróleo“, afirma. E pede coragem ao BCE. “Esse risco vai ser muito difícil para os bancos centrais, como foi nos anos 70, vai ser preciso muita coragem. Porquê? Porque a taxa de desemprego está a subir e a atividade económica está a decrescer na Europa. Isso era inevitável, mesmo sem o ‘7 de outubro’“.
Primeiro foi a pandemia, depois a invasão da Ucrânia. Agora o ataque do Hamas mais a Israel, e o risco de um conflito alargado regional, com consequências ainda imprevisíveis, nomeadamente na energia. O que é que falta acontecer para testar a resiliência da economia global?
Mais do que os choques negativos, o que conta é a resiliência das economias. Com a idade, e com certeza quando se começa a olhar para a história, percebe-se que não há um ano em que não haja um choque negativo, não haja um receio acerca de alguma coisa. Isto pode ser ao nível da família, da empresa, do país ou do globo como um todo. Há sempre choques, há sempre coisas negativas e, com elas, já agora, há sempre oportunidades. É verdade que a pandemia foi um enorme choque negativo para todos, claro que sim, mas também veio com oportunidades, como o trabalho à distância, por exemplo, no caso português, com a nossa capacidade de combatermos a periferia e termos quadros qualificados que cada vez mais [escolhem] Portugal. Quando se fala da crise energética com a invasão da Ucrânia, há também oportunidades para países como Portugal que não dependem tanto de petróleo, que produzem muitas energias renováveis. E onde temos uma vantagem comparativa, não absoluta, em relação aos países do centro da Europa.
E este novo conflito regional?
Quando falamos agora no início, talvez, de um novo conflito, podemos falar do lado muito negativo que vem daí, mas também podemos falar das oportunidades que ele traz e da capacidade da economia não só ser resiliente, mas também a criação de oportunidades. Os choques surgem e a capacidade de ver o outro lado é que podes aproveitá-la como uma economia de dados. Portanto, queria começar com essa mensagem de otimismo. Os choques, sobretudo numa economia estagnada como a portuguesa, há 20 anos, os abalos são uma boa ideia. Os abalos devem ser até bem-vindos porque permitem criar oportunidades onde não havia antes…
Mas seria preferível abalos positivos…
…Agora, olhando para o quadro internacional de uma forma mais sóbria, se quisermos mesmo a mais correta. Eu não sou um analista político, mas de facto o conflito no Médio Oriente tem lados muito assustadores. Para além do lado humanitário, nas próximas semanas vamos saber até que ponto é que isto é um conflito entre Israel e o Hamas ou se é um conflito que se estende, em primeiro lugar, ao Líbano, em segundo lugar ao Irão, em terceiro lugar, até de uma forma mais alargada, incluindo à Arábia Saudita e aos outros países árabes…
…grandes produtores de petróleo.
Claro que, num conflito muito alargado, é muito difícil ver como é que isso não afetará o mercado de petróleo. E o preço do petróleo continua a ser um dos grandes determinantes do preço da energia. Nesse sentido, o que é que assusta nesse choque no quadro meramente económico, não humanitário? De repente, começam os últimos anos e os próximos a parecer-se demasiado com os anos 1970. O que tivemos nos anos 1970? Numa altura, no final dos anos 1960, os bancos centrais, com a inflação a começar a subir aos pouquinhos, aos pouquinhos, foram muito confiantes com o facto de terem tido a inflação controlada durante 20 anos seguidos. Tivemos depois um choque petrolífero, em 1972, que levou a uma grande aumento da inflação, com o preço da energia, ao qual os bancos centrais responderam de uma forma que hoje, historicamente dizemos, foi correta, mas modesta. E a inflação começou a cair durante os anos de 73, 74 e 75 de uma forma lenta, não tão acelerada como hoje achamos que deveriam ter feito. E depois, o que é que aconteceu? Tivemos um novo choque petrolífero na segunda metade dos anos 70, que levou a que a década se tornasse na década da estagflação. 20 anos de inflação controlada, bancos centrais complacentes em 2021, e que agora ainda dizem “bem, não é preciso subir muito mais taxas de juro porque a inflação já está a descer devagarinho e vamos lá chegar a 2025, e não é preciso ter aqui grande pressa“… E, de repente, um novo choque petrolífero que pode deitar tudo a perder é que pode levar a inflação a estender-se. De facto, começa a haver demasiados pontos comuns com a estagflação dos anos 70, quer em termos de choques, que em termos em erros. Espero que isso não aconteça, mas é isso que preocupa.
O que é que devemos aprender do que não foi feito nos anos 70?
O que aprendemos nos anos 70 é que o erro, sobretudo na segunda metade dos anos 70, foi, em primeiro lugar, um enorme receio de que, ao subir as taxas de juro se causasse desemprego, sem perceber que o desemprego nos anos 70 resultava dos choques de oferta, daí se chamar estagflação, e que havia uma estagnação da economia inevitável, que não poderia ser combatida com juros baixos. Essa política de juros baixos, a única coisa que faziam era produzir mais inflação, mas não evitavam a subida do desemprego, todo o seu primeiro erro. O segundo erro foi uma tentativa persistente de achar que se conseguiam enganar os agentes económicos com estímulos monetários que escondessem ou camuflassem essa estagnação resultado do que acontecia no lado da oferta da economia e tentar que, com o clima de inflação e os salários controlados, houvesse uma desvalorização dos salários reais. Em terceiro lugar, uma falta de credibilidade dos bancos centrais, porque os agentes económicos, designadamente os investidores, os trabalhadores e outros, começaram a achar que a inflação nunca iria descer.
E hoje?
Quando olhamos para hoje, estamos numa altura crítica. Olhando para os mesmos três pontos, temos sempre muito receio do desemprego, [apesar] o desemprego continua a níveis historicamente baixo, mas vai subir, e de forma inevitável por causa do que foi o choque energético para o continente que importa energia… A questão é até quando os governos centrais reagem a uma mudança de 0,2% na taxa de desemprego, dizendo “não, não, não, tenho de descer a taxa de juro“. Em segundo lugar, ao fim de dois anos de inflação acima dos 2%, continuamos a dizer “não, mas a inflação está a descer“, e as pessoas continuam a acreditar, e acreditam bem, mas a determinada na altura começam a não acreditar se continuamos a adiar o controlo da inflação. Em terceiro lugar, não só os salários, não só as taxas de juro, mas também esta falta de credibilidade [dos bancos centrais], novamente o adiar do controlo da inflação. O que vemos são desafios semelhantes aos anos 70. Até agora, penso que os bancos centrais têm reagido muito bem nos últimos 12 meses. Eu fui muito crítico do que fez o BCE, a FED, em 2021…
Do que não fez…
…Ou do que não fez. Fui muito crítico, fui de uma forma muito vocal, muito pública. Da mesma forma, os últimos 12 a 15 meses, sou muito elogioso. O que fizeram foi o maior aumento das taxas de juro da história do BCE. É maior em dimensão, mas também em ritmo. O que tivemos foram bancos centrais muito empenhados a falar no mandato, os 2% da inflação, aconteça o que for, ‘what ever it takes’, no que é o seu grande objetivo, que é a missão da inflação. E, também, com grande louvor, a admissão do erro de 2021 e a reversão desse erro, mas sobretudo a admissão intelectual de não estar a tentar justificar o que se fez em 2021. Nos últimos 12 meses, dou nota 19 aos bancos centrais. Os 12 meses seguintes são cruciais.
Porquê?
Neste momento, ou melhor, antes do início do conflito entre Israel e o Hamas, parecia-me que o nível de taxas de juro estava apropriado. No caso do BCE, não seria preciso subir mais as taxas de juro, a discussão agora era saber quanto tempo até começarmos a descê-las. E quanto as descer. Mas subir mais [os juros] não parecia que fosse necessário para trazer a inflação para baixo e que chegaria aos 2% até o final do próximo ano. No entanto, já nessa altura, achava que os todos os riscos estavam do lado da subida, ou seja, parecia-me inconcebível uma descida das taxas de juro nos próximos cinco meses, era difícil imaginar qual era a reconfiguração económica que permitisse essa descida, mas conseguia imaginar alguns cenários que implicariam ter de subir um pouco mais [os juros]. E esses cenários eram simplesmente a inflação revelar-se mais pegajosa nos próximos dois, três, quatro meses, mais persistente do que o que pensávamos. Parecia-me que isso era possível, não me parecia que fosse o mais provável…
…aliás, cito um texto que escreveu no Expresso em que apontava para uma banda de variação da taxa de juro de longo prazo entre 2,5% e 3,5%. Escrito, é preciso acrescentar, antes de 7 de outubro.
Precisamente. Portanto, quando refletia sobre a taxa de juro adequada, temos de comparar a atual com a de longo prazo. No longo prazo, estou do lado dos ‘falcões’ (os que defendem uma política monetária mais restritiva e juros mais elevados). Acho que a taxa de juro de longo prazo vai rondar os 3,5%, 3%, talvez 2,5%, o que significa que, neste momento, uma política monetária nos 4% não é particularmente restritiva. Acima de tudo, quando começarmos a cortar as taxas de juro, vai haver 2 a 4, talvez cinco cortes, e não mais…
Por contraponto às dez subidas consecutivas de juros do BCE.
Essa é a minha ideia. Agora, onde é que vamos acabar? Um, acho que o corte dos juros não vai ser assim tão grande quando começar a acontecer. E dois, não vai acontecer assim tão cedo. Por fim, a terceira questão: Temos de subir mais ou não [os juros], que, obviamente, está relacionado com as duas condições.
Mas agora, depois do ataque do Hamas, a 7 de outubro, o que pode acontecer?
Parece-me que há aqui mais um risco que pode puxar para termos de subir mais os juros, e esse risco é de facto a subida do preço do petróleo. Esse risco vai ser muito difícil para os bancos centrais, como foi nos anos 70, vai ser preciso muita coragem. Porquê? Porque a taxa de desemprego está a subir e a atividade económica está a decrescer na Europa. Isso era inevitável, mesmo sem o ‘7 de outubro’. E porquê? Porque tivemos um grande choque energético. O preço de eletricidade no mercado grossista continua a ser mais do dobro do que era em 2019. E nós, na Europa, importamos eletricidade. É muito difícil a economia passar por isto, tendo em conta que nos últimos 12 meses não houve recessão nenhuma.
Durante estes 12 meses, essa recessão foi disfarçada com um enorme estímulo orçamental por parte dos diferentes países europeus. Mas a dívida pública é o que é, e as taxas de juro de longo prazo estão a subir de uma forma que está a apertar os orçamentos dos Estados. E não podemos deixar que, também para evitar um aumento de 1% na taxa de desemprego, tenhamos, antes, uma recessão, uma crise da dívida soberana. Ou seja, não podemos cometer o erro, e em Portugal sabemos bem o que isso é… Para combater o aumento do desemprego em 2008 e 2009, acabámos com uma crise de 2010 a 2014. Estou aqui a falar da Europa como um todo.
Já estávamos a entrar em recessão na zona euro, uma recessão inevitável, até uma recessão relativamente suave de alguma forma, mas é quase inevitável. Claro, se se acrescenta a isto um aumento dos preços do petróleo, que são mais um impulso para essa recessão, o BCE [fica] numa numa situação muito difícil. Não pode estar a acudir à economia real, está concentrado na inflação, não pode, como aconteceu no último ano, deixar que seja a política orçamental a fazer esse trabalho da economia real, por isso vai ser muito custoso subir as taxas de juro, porque, de facto, elas vão trazer um aumento significativo do desemprego. Mas a alternativa, e por isso é que falo de uma certa coragem, a alternativa é a inflação persistir e acabarmos com a estagflação, ou seja, com o desemprego subir e a inflação manter-se alta de uma forma que, sabemos hoje, foi tão custosa no final dos anos 70 e que só acaba, aí sim, com uma subida da taxa de juro brutal como a que fizemos em 80 e 81, e que leva a uma recessão brutal em 1982, a maior recessão que tínhamos tido na zona euro, quer nos Estados Unidos, até ao Covid. É este o cenário que enfrentámos agora. Espero que o preço do petróleo não suba, continuo otimista, continuo a achar que não vai haver mais subidas das taxas de juro, mas sei que há esse risco. E espero que a resposta esse risco seja, de facto, perceber que tem de subir as taxas de juro.
O que é que podemos ouvir da reunião do BCE que se vai realizar esta semana na Grécia?
Acho que vamos ouvir muito pouco, porque não há grandes notícias ainda. Ou seja, em relação à última reunião, de facto uma reunião crucial, foi uma reunião em que foi decidido subir mais uma vez os juros, mas com um claro sinal de que paravam ali. E havia diferentes opiniões, aliás, ouvimos Mário Centeno, umas semanas antes, a tentar influenciar, acabou por perder, depois. Houve outros que puxavam noutro sentido, acabou por ganhar um certo consenso, e há um certo consenso neste momento acerca dessa direção. Os acontecimentos das últimas semanas não mudam esse consenso, porque, aí está, o preço do petróleo subiu um pouco, mas ainda não muito, estamos todos à espera de ver o que acontece. Não vejo o BCE a fazer grandes anúncios, simplesmente a dizer que está vigilante, a dizer que, de facto, o que foi anunciado há semanas está… Não tivesse acontecido o ‘7 de outubro’ e estariam a dizer “confirma-se que o que dissemos aqui há umas semanas, vamos manter-nos aqui, quando é que vamos cortar [os juros], não sabemos, mas não esperem nada até ao final do ano”.
Mas o mundo mudou.
Tendo em conta o que aconteceu, esperaria um discurso mais cauteloso… “bem, vamos avaliar um novo choque, não podemos excluir novas subidas de taxas de juro, contamos não o fazer como anunciámos na última reunião“, e pouco mais.
No quadro dos movimentos populistas, à esquerda e à direita, qual é a capacidade de independência verdadeira, neste caso do Banco Central Europeu, para ter essa coragem.
Deixe-me contar-lhe uma história pessoal. Aqui há pouco mais de um ano, fui convidado para ser uma testemunha numa audição do Parlamento Europeu. Na altura, as taxas de juro do BCE eram -0,25%, e eu, sendo um dos críticos do que estava a acontecer, disse na altura que as taxas de juro tinham de subir, pelo menos, até 1%, e achava mais provável 2%. Já estamos nos 4%… Na altura, não só os outros especialistas, mas sobretudo os parlamentares, representantes do povo, gritaram que estava louco e que, a fazer isso, teríamos o fascismo de volta na Europa. Porquê? Porque havia eleições em Itália, os fascistas iam ganhar, porque se subisse as taxas de juro para os 0,5%, sequer, causaria uma recessão brutal na Europa que levaria à subida dos populistas em todo o lado. Na altura, disse que que continuava a achar que o pior seria não o fazer, os populistas seriam eleitos à mesma, mais, com a subida da inflação, teríamos ainda mais eleições. E que o fascismo não voltaria por causa do BCE fazer o seu trabalho.
Esta era a pressão a que Christine Lagarde estava sujeita na altura, aqui há um ano e meio. Um ano e meio depois, o BCE subiu [os juros] para 4%, o fascismo não voltou à Europa. É verdade que Meloni foi eleita em Itália, mas está a revelar não ser uma líder assim tão fascista quanto isso e, ao mesmo tempo, na Polónia, até ganharam os liberais. Ou seja, há sempre pressão política que vai abanar com bandeiras como o retorno do fascismo ou dos populismos, para nos convencer a não fazer a coisa certa. Mas confio que quem foi nomeado para estes cargos consiga fazer o seu trabalho certo.
"Aqui há pouco mais de um ano, fui convidado para ser uma testemunha numa audição do Parlamento Europeu. Na altura, as taxas de juro do BCE eram -0,25%, e eu, sendo um dos críticos do que estava a acontecer, disse na altura que as taxas de juro tinham de subir, pelo menos, até 1%, e achava mais provável 2%. Já estamos nos 4%… Na altura, não só os outros especialistas, mas sobretudo os parlamentares, representantes do povo, gritaram que estava louco e que, a fazer isso, teríamos o fascismo de volta na Europa."
Vão surgir pressões políticas? Claro que vão, a toda a hora elas existem. Vão ser mais intensas? Talvez sejam, sim. Mas a independência de uma instituição depende muito da independência de quem a lidera, e quem lidera estas instituições tem um mandato claríssimo, não pode ser despedido, e tem um mandato alicerçado num tratado internacional, ao contrário de um governador do Banco de Portugal, que não tem um tratado tão forte que o proteja. O BCE tem hoje um mandato que diz precisamente o que tem de ser feito, que é concentrar-se na inflação, precisamente para evitar o que foi os erros dos anos 70, onde a pressão política, por exemplo, foi muito séria e muito clara, e levou a más decisões. Confio que isso não aconteça, com certeza que isso depende da coragem das pessoas, mas, institucionalmente, temos mecanismos para proteger essa independência? Temos. Christine Lagarde não pode ser despedida pela pressão dos que acham que uma subida de taxas de juro vai trazer o fascismo.
Marcelo Rebelo de Sousa dizia isso mesmo: o BCE, com a subida dos juros, está a criar as condições para o avanço dos populistas…
Eu disse isto, não me surpreende que isso aconteça, vai acontecer mais, e Lagarde deve sorrir delicadamente, e fazer o que está certo para controlar a inflação.
Os governos têm contribuído para controlar a inflação?
Quando olhamos para os últimos três anos, o que vemos é que, em 2020, tivemos um grande estímulo orçamental para combater a pandemia. Pareceu-me muito bem, embora nessa altura, para muitos países me parece que os apoios tenham sido exagerados, Portugal não, gastou-se muito dinheiro de uma forma pouco eficiente. Portugal até está muito bem nesse sentido, e foi dos que gastou menos e de uma forma até mais eficiente. Em 2021, quando a economia já estava a recuperar, havia receios de que não subisse o suficiente e, na Europa, com o atraso de reação de 2020, tivemos a negociação do PRR, nos Estados Unidos o Inflation Redution Act, e tivemos um novo estímulo orçamental. No caso europeu, com um objetivo de médio e longo prazo. Em 2022, a Rússia invade a Ucrânia e tivemos um estímulo orçamental de forma a proteger os mais desfavorecidos, de forma a ajudar a nossa economia a ajustar-se a um aumento do preço da energia.
São três anos seguidos…
Estamos agora em 2023, e o que vemos é que vários países da zona euro que deviriam ter algumas das medidas de emergência 2022 a expirarem ou mesmo algumas 2020, estão a resistir a deixá-las expirar. Portanto, neste momento, em termos orçamentais, o peso em vários países da zona euro, não tanto em Portugal, está-se a determinar até que ponto é que há novos estímulos orçamentais ainda este ano e mesmo em 2024. Começam a ser muitos estímulos orçamentais e a dívida pública mostra, as taxas de juro da dívida começam a mostrar isso, começam a ser muitas emergências todos os anos a dizer “vamos abrir os cordões à bolsa”… A certa altura, a bolsa começa a ficar completamente vazia.
Todos os estímulos tiveram uma razão de ser, que possa apoiar em termos de política económica, todos estes estímulos contribuíram para puxar a inflação para cima, mas a mim, pelo menos isso não me assusta, mas quando começamos a olhar para a frente e começamos a falar de ainda mais estímulos orçamentais, significam mais 1% de taxa de juro.
É esse o preço a pagar?
É contraprodutivo. Mais estímulos levam, simplesmente, a uma reação do BCE de mais taxas de juro. Não diria que os Ministérios das Finanças têm tornado o papel do BCE mais difícil, não têm feito sua tarefa com independência, e ainda bem que assim é. Mas, de facto, sobretudo quando falamos de expirar algumas coisas temporárias em França, na Bélgica e Holanda, há discussões políticas muito importantes em que está a ver que os ministros de Finanças não têm, eles, coragem de dizer que não podemos continuar a pagar tudo. E ao fazê-lo, estão a contribuir para o aumento da inflação, estão a contribuir para que BCE tenha de subir ainda mais as taxas de juro.
"Quando dizemos que Mário Centeno tem perdido [nas decisões do BCE], não gosto de usar essa expressão. Tem dado, de certeza, um contributo muito positivo em trazer para a discussão uma perspetiva que tem muito de intelectualmente sólido, correto, honesto, valioso para as decisões do Conselho de Governadores. Portanto, essa opinião tem ganho… se não estivesse ali, e outros como ele, às tantas as taxas de juro tinham subido demasiado em relação ao que subiram."
Mário Centeno senta-se no Conselho de Governadores do BCE em nome próprio — e não em representação do Banco de Portugal, porque estão em causa decisões de política monetária da zona euro como um todo –, e tem defendido a estratégia das “pombas”, isto é, contra a subida de juros como foi seguida. Estará a defender os interesses económicos e políticos portugueses?
Antes de mais, num comité em que as pessoas têm diferentes opiniões, é salutar um governador defenda um caminho e outro defenda o oposto. É por isso que temos um comité com várias pessoas que votam, para terem opiniões, cada uma delas alicerçada num staff de mil, dois mil, três mil pessoas que trabalham nos respetivos bancos centrais, cada um a fazer a sua investigação, olhar para os dados, a interpretá-los. Quando dizemos que Mário Centeno tem perdido [nas decisões do BCE], não gosto de usar essa expressão. Tem dado, de certeza, um contributo muito positivo em trazer para a discussão uma perspetiva que tem muito de intelectualmente sólido, correto, honesto, valioso para as decisões do Conselho de Governadores. Portanto, essa opinião tem ganho… se não estivesse ali, e outros como ele, às tantas as taxas de juro tinham subido demasiado em relação ao que subiram. Centeno tem publicamente estado do lado dos que acham que se deve cortar mesmo as taxas de juro. E talvez daqui a 12 meses esteja aqui a dizer “olhe, Mário Centeno tinha razão e, de facto, tendo em conta o que aconteceu, os juros já subiram demasiado”. O que Mário Centeno tem defendido não é a minha, não tem sido a da maioria dos observadores, mas tem contribuído para a a discussão e para as votações.
Mas estará condicionado pela realidade portuguesa, quando o BCE decide tendo em conta o conjunto da zona euro?
O papel dos governadores dos diferentes bancos centrais é usarem a informação local que têm, a evolução da economia, usarem o seu staff independente para trazerem estas perspetivas para a discussão do que é apropriado para a zona euro como um todo. Eles estão de olho na inflação na zona, e é isso que determina a subida das taxas de juro. Aliás, para a economia alemã nos últimos seis meses, António, provavelmente seria mais apropriado cortar mais os juros, ou subir menos, do que para a economia portuguesa, que não tem sofrido tanto como a alemã. E, no entanto, na votação do BCE temos visto precisamente o oposto, o governador do banco central alemão tem estado do lado mais “falcão” e o governador do banco português mais “pomba”. isto acaba por ser uma prova daquilo que disse, Mário Centeno não está a votar tendo em conta os interesses só de Portugal, mas antes tendo em conta os da zona euro como um todo.
Claro, estamos a falar de seres humanos, que, com certeza, estão sujeitos a pressões. Da mesma forma que os membros internos do conselho de governadores do BCE, em Frankfurt, têm um mandato oito anos muito independente, o governador do Banco de Portugal é nomeado, renomeado e despedido, e sujeito a pressões internas, como aliás vimos, as terríveis pressões internas a que o anterior governador Carlos Costa foi sujeito pelo governo de António Costa e a forma como foi atacado brutalmente…
E publicamente…
…e publicamente, de uma forma na altura desapropriada e mesmo vista como bastante deselegante, exigindo até uma intervenção do próprio BCE na altura, como foi amplamente noticiado. Essas pressões existem e são difíceis às vezes de resistir. Esperemos que políticos como o nosso estimado e respeitável presidente Marcelo Rebelo de Sousa percebam isso e, portanto, também protejam as instituições portuguesas. Eu esperaria que o primeiro-ministro pudesse pôr alguma pressão, mas que não fosse o Presidente da República a pôr essa pressão.