Uma negociação forçada, um cheque em branco e uma guerra económica. O presidente-eleito norte-americano prepara-se para romper completamente com a política externa iniciada pela administração de Joe Biden
O fim relâmpago das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente e uma nova visão para Pequim. Donald Trump prepara-se para regressar à Casa Branca com promessas de uma rotura com a política da administração Biden. Os especialistas acreditam que o regresso do antigo presidente norte-americano e da doutrina “América Primeiro” vai trazer de volta a visão de que o país deve ser gerido como uma empresa, levando a América a questionar-se seriamente sobre se vale a pena continuar a "investir" na defesa da Ucrânia e na Europa, mas a dar "um cheque em branco" a Benjamin Netanyahu no Médio Oriente.
“A torneira dos Estados Unidos da América vai fechar. Donald Trump vai obrigar Volodymyr Zelensky a avançar para a mesa das negociações, apesar de o presidente ucraniano já ter enviado o recado de que não aceita concessões territoriais. Trump vai responder colocando em cima da mesa a possibilidade de acabar com o apoio militar à Ucrânia, o que teria consequências quase imediatas”, afirma José Filipe Pinto, professor catedrático especialista em Relações Internacionais.
Durantes os meses que antecederam à eleição, Donald Trump sugeriu ser capaz de acabar com a guerra “em 24 horas” mesmo antes da tomada de posse, em janeiro, embora tenha sempre recusado elaborar detalhes em relação ao seu plano para resolver o conflito. A pista mais concreta dos planos de Donald Trump vem do seu vice, J.D. Vance, que sugeriu que a administração planeia “congelar” a linha da frente e criar uma região “fortemente fortificada” de forma que a Rússia não volte a invadir a Ucrânia.
Tal acordo seria profundamente impopular em Kiev. No entanto, quase três anos depois do início da guerra e com a entrada de tropas norte-coreanas no campo de batalha, a possibilidade de o apoio militar norte-americano parar abruptamente poderia ter “consequências dramáticas” para Kiev. Zelensky está ciente desse perigo e emitiu um comunicado a dar os parabéns ao presidente eleito onde elogia o compromisso de Trump em “manter a paz através da força”, sublinhando que continua a contar com o apoio bipartidário à Ucrânia.
Apenas em 2024, os Estados Unidos da América forneceram cerca de 61 mil milhões de dólares (aproximadamente 57 mil milhões de euros) em apoio militar à Ucrânia. Apesar de tudo, a Ucrânia diz ter recebido apenas 10% da ajuda prometida. A Alemanha, o segundo maior fornecedor de apoio militar a Kiev, entregou 7,1 mil milhões de euros em material de guerra em 2024. E o problema não fica apenas no valor do apoio, mas naquilo que cada país é capaz de contribuir. Sem o apoio da indústria de armamento norte-americana, Kiev pode ficar privada de um dos sistemas de defesa mais importantes.
“O apoio americano é a razão pela qual a Ucrânia continua a conseguir combater. A maior parte dos sistemas de defesa antiaérea utilizam munições norte-americanas e isso pode ser um problema. Isso é algo que a Ucrânia vai necessitar, não só agora, mas depois de 20 de janeiro. Se o seu fornecimento parar poderá ser uma verdadeira desgraça para os ucranianos que ficam completamente vulneráveis aos bombardeamentos russos”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.
Entre novembro de 2023 e abril de 2024, a Ucrânia teve uma amostra do que podem ser os primeiros meses sem o apoio militar norte-americano. O impasse na aprovação do pacote de apoio militar na Câmara dos Representantes quase terminou em tragédia, levando à queda de uma das principais fortalezas ucranianas no Donbass, a cidade de Avdiivka. Após a conquista desta localidade, as tropas de Moscovo conseguiram conquistar território a um ritmo sem precedentes desde os primeiros dias de guerra.
“Trump faz parte da elite económica norte-americana e encara esta situação com dúvidas acerca do que pensa ser a rentabilidade do investimento na Ucrânia. Trump parece considerar que não se justifica continuar a apoiar a Ucrânia enquanto investimento e recusa apoiá-la como uma despesa. Para garantir que Putin não exige ficar com muitas regiões ucranianas, Trump vai afastar a possibilidade da Ucrânia aderir à NATO. Deverá querer fazer da Ucrânia uma zona desmilitarizada”, defende José Filipe Pinto.
Programa nuclear iraniano pode ser alvo
Cenário muito diferente é esperado no Médio Oriente, onde a eleição de Trump foi recebida com entusiasmo. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, referiu-se à vitória do republicano como o “maior regresso da história”. O histórico de Trump no seu anterior mandato fazem dele um dos mais populares líderes americanos em Israel, após ter dado força às pretensões israelitas ao transferir a embaixada norte-americana de Telavive para Jerusalém.
De acordo com o jornal Financial Times, que cita antigos conselheiros, dificilmente o presidente eleito utilizará a possibilidade de reter o apoio militar a Israel de forma a condicionar as ações do primeiro-ministro israelita. Pelo contrário, espera-se que Trump procure um fim mais rápido do conflito através da derrota do Hamas em Gaza e do Hezbollah no Líbano. Em conversa, o antigo presidente americano deu carta branca a Netanyahu para “fazer o que tem a fazer” para terminar com o conflito rapidamente.
Menos certo é o apoio do líder norte-americano à pretensão israelita de destruir o programa nuclear iraniano. Durante o seu primeiro mandato, Trump foi um dos principais críticos do acordo entre os Estados Unidos e o Irão para conter a possibilidade de Teerão obter armas nucleares. Assim que tomou posse, o republicano fez cair o acordo e mudou completamente a estratégia para uma campanha de “máxima pressão” através de sanções económicas. Só que a estratégia não surtiu efeito e desde então o Irão recomeçou o processo de enriquecimento de urânio.
“Não tenhamos a menor dúvida, a administração Trump será completamente a favor da causa de Israel e o apoio vai ser reforçado. Dificilmente veremos linhas vermelhas em relação ao Irão. Com Trump, o Irão não será uma potência nuclear enquanto Israel existir. Mais dia menos dia, Irão retalia e Israel poderá atacar o programa nuclear iraniano e a economia”, sugere Isidro de Morais Pereira.
Não deixando de parte um elemento surpresa, Donald Trump deixou em aberto a possibilidade de negociar diretamente com o Irão o futuro do seu programa nuclear. No entanto, uma fonte próxima do executivo israelita afirmou à Bloomberg que Netanyahu está a considerar seriamente a “oportunidade histórica” e aproveitar a janela de oportunidade para atacar o programa nuclear iraniano, que Israel considera ser um perigo existencial, particularmente as instalações de enriquecimento de urânio de Natanz e de Isfahan. Outras instalações podem ser mais difíceis de atingir.
“A central de enriquecimento de Fordow será mais complicada, uma vez que está enterrada no subsolo e fortemente fortificada. Mas Israel demonstrou a sua profunda penetração no aparelho nuclear, de segurança e de informação do Irão e pode ter surpresas desagradáveis à espera do ayatollah”, considera Mark Dubowitz, diretor executivo da Foundation for Defense of Democracies, um think-tank norte-americano focado em politica externa e segurança nacional.
JD Vance, vice-presidente de Trump, referiu durante a campanha que uma guerra direta entre os Estados Unidos e o Irão não é do interesse dos Estados Unidos da América.
Diplomacia das tarifas
Na sua reação à vitória de Donald Trump, Pequim disse esperar por uma “coexistência pacífica” com os Estados Unidos guiada pelo “respeito mútuo” e uma cooperação “win-win”. Só que estas declarações escondem a tensão entre as duas potências, que tem vindo a aumentar nos últimos anos, particularmente em torno de Taiwan, que a China considera ser parte integral do seu território. E de acordo os serviços de informações norte-americanos, as forças armadas chinesas estão a preparar-se para invadir o arquipélago e “reunificar” o país à força.
Este cenário arrisca colocar as duas maiores economias do mundo em confronto militar direto, numa guerra que teria consequências devastadoras para a economia mundial. No passado, apesar de Trump ter descrito o líder chinês como “um amigo muito bom”, a relação entre os dois países durante o seu primeiro mandato foi marcada pela proliferação de taxas alfandegárias sobre várias matérias-primas chinesas.
“Tarifa é uma das palavras preferidas de Trump. Se ele perceber que o estado da economia americana não está em condições de desafiar a China vai ter uma posição cautelosa em relação a Taiwan. Se ele decidir que tem capacidades, vai ter apoio claro a Taiwan”, refere José Filipe Pinto.
E esse parece aparenta ser o caminho escolhido pela nova administração para tentar travar as ambições territoriais chinesas. Questionado sobre qual a sua estratégia para tentar travar uma invasão chinesa a Taiwan, Trump disse que diria a Xi Jinping que colocaria taxas alfandegárias até 200% ou travando por completo o comércio entre os dois países. Sobre se utilizaria as forças armadas para travar um bloqueio naval chinês a Taiwan, Trump afastou essa possibilidade. “Não teria de o fazer porque ele [Xi Jinping] respeita-me e sabe que sou... louco”.