As táticas, o espião conselheiro de Putin e as fake news. O papel dos serviços secretos russos na Ucrânia

27 fev 2022, 08:01
Vladimir Putin a bordo de um helicóptero, em Novorossiisk, sul da Rússia, em 2015. À direita, está o chefe do FSB, Alexander Bortnikov, acompanhado pelo ministro russo dos Transportes (AP)

No centro de tudo isto está o FSB, herdeiro do KGB, cujo líder é Alexander Bortnikov. Foi um dos sancionados pelos Estados Unidos, que o acusam de "compartilhar da ganância corrupta das políticas do Kremlin e, como tal, deve compartilhar da dor também"

A data, hora e local em que os militares russos desembarcaram nas cidades de Odessa e de Mariupol foi coordenada pelos serviços secretos de Putin, que deram a luz-verde para o início de uma invasão em larga escala na Ucrânia. “Transmitiram uma mensagem semelhante a algo como ‘estamos prontos ou é agora ou a seguir pode ser pior’”, indica o coronel Carlos Mendes Dias, presidente do Centro Português de Geopolítica, sublinhando que os atos de espionagem levados a cabo pelo novo KGB “influenciaram e facilitaram” o início da operação militar que precipitou a Europa para uma guerra.

Os atos de espionagem tiveram ordem direta do FSB, o Serviço Federal de Segurança - sucessor do KGB - e que em 1998 teve Putin como seu diretor. Na Rússia, este órgão executivo federal tem autoridade para implementar medidas de contraterrorismo, proteção e defesa das fronteiras e responde diretamente ao presidente da Federação Russa.

Desde 2008, o homem ao comando do FSB é Alexander Bortnikov, que fez parte dos círculos internos tanto de Dmitri Medvedev, que o apontou como diretor dos serviços secretos, como de Putin, que o conhece desde os anos 70 quando ambos trabalhavam para o KGB. “Num regime como o russo, Bortnikov tem um grande peso. Até porque é membro do Conselho de Segurança que ajudou Putin a reconhecer os territórios separatistas de Donetsk e de Lugansk como independentes”, refere a investigadora Sónia Sénica, do Instituto Português de Relações Internacionais. 

Alexander Bortnikov (AP)

 

Pela sua influência na decisão russa de apoiar a independência de Donetsk e de Lugansk, tal como uma invasão militar à Ucrânia, Bortnikov foi, aliás, sancionado pelos Estados Unidos, que o acusam de “compartilhar da ganância corrupta das políticas do Kremlin e, como tal, deve compartilhar da dor também”. Mas esta não foi a primeira vez que o líder do FSB foi sancionado pelo Ocidente - o mesmo aconteceu depois do envenenamento do líder da oposição russo Alexei Navalny, em 2020.

Para Sónia Sénica, este serviço secreto russo foi responsável pela “necessária recolha de informação para as tomadas de decisão” que levaram a Rússia a invadir a Ucrânia. Entre essa recolha de dados essenciais está o “número e o grau de preparação militar das forças ucranianas, as regiões que são mais ou menos hostis a uma presença das forças de Putin e os detalhes geográficos das regiões onde a intervenção é levada a cabo”, explica o coronel Mendes Dias, acrescentando que antes da intervenção há um trabalho estratégico a fazer. 

Esse trabalho, afirma Mendes Dias, é o de, por um lado, “promover os regimes militares que querem tomar o poder” e, por outro, “manter a estrutura a funcionar a uma só voz que oriente”. Ou seja, o FSB é responsável também por colocar civis no terreno que possam exercer funções a nível administrativo, “prontos para ocupar, pela calada da opinião pública, as instituições do país”. 

A análise surge em linha com a denúncia feita pelo Reino Unido a 14 de fevereiro de que o FSB iria promover golpes nas principais cidades ucranianas, no seguimento de uma invasão russa. Londres prevê que, após um cerco a Kiev, os agentes do FSB vão ser responsáveis por instalar líderes pró-Rússia no país.

Esta pode ser uma via de ação plausível para o coronel Carlos Mendes Dias, que destaca uma máxima da doutrina da espionagem: “Um pé militar é precedido de vários pés civis. Até porque não se pode utilizar apenas a força para controlar efetivamente um território”.

 

Forças especiais ao serviço do FSB (AP)

 

Já o historiador Manuel Loff destaca que uma das funções centrais do FSB não é simplesmente a recolha de informação estratégica, “mas também a produção de informação estratégica e não há prurido nenhum em colocar informação falsa”. A leitura de Manuel Loff reflete-se na realidade vivida nos últimos dias nas redes sociais. Um vídeo divulgado pela República Popular de Donetsk mostrava um “sabotador ucraniano” a ser abatido porque alegadamente “planeava explodir uma fábrica de cloro na cidade de Horlivka, em Donetsk”. 

O problema? Os sons de tiros e explosões no vídeo tinham, na verdade, mais de uma década, de acordo com várias publicações internacionais - como a CNN, o The Guardian e o The New York Times, que identificaram que o vídeo foi filmado em 2010 durante um exercício militar finlandês. 

Os investigadores consultados pela CNN Portugal consideram que exemplos como este servem para demonstrar que a “primeira vítima de todas as guerras é a verdade”, como descreve Manuel Loff. O mundo vai observar uma cadeia de criação de retóricas justificativas, “narrativas para que os povos se identifiquem com uma determinada decisão, juntamente com a tentativa de justificar uma ação violenta perante o seu próprio povo”, completa o coronel Mendes Dias, acrescentando que “é normal” que a Rússia, através dos seus serviços secretos, procure “alavancar motivos para a invasão militar” utilizando narrativas como a proteção do povo russo e a corrupção da Ucrânia pelo Ocidente, teses que “colhem muito bem com a ignorância dos povos”.

Esta narrativa foi mais recentemente utilizada por Alexander Bortnikov quando alertou esta semana para a presença de "dois grupos militares de sabotagem ucranianos” que alegadamente “chegaram à fronteira com a Federação Russa na região de Luhansk vindos de Mariupol". Este alerta, feito durante o Conselho de Segurança que antecedeu a decisão de Putin de considerar como independentes as regiões separatistas da Ucrânia, foi apoiado por um vídeo disseminado na comunicação social russa.

Esse vídeo mostrava um posto de fronteira dentro do território russo de Rostov a ser alegadamente bombardeado por forças ucranianas, com o FSB a relatar que o incidente ocorreu “a 150 metros da fronteira russo-ucraniana". No entanto, uma análise feita pela CNN à geolocalização do vídeo mostra que as imagens foram filmadas na fronteira entre a Rússia e Donetsk e não numa área próxima da fronteira controlada pelas forças ucranianas.

As forças ucranianas acusam o FSB da Rússia de estar por trás desta desinformação, já que todas as agências de informação de Putin trabalham sob a orientação do serviço liderado por Bortnikovo. Este serviço emprega cerca de 66.200 funcionários, incluindo pelo menos 4.000 militares das forças especiais, o que levanta a questão: seria possível existir espiões russos do lado ucraniano? “É a coisa mais simples do mundo”, garante o historiador Manuel Loff, sublinhando que um grande número de ucranianos tem dupla nacionalidade e autonomização linguística. “Haver ucranianos ao serviço dos FSB não deve ser nada difícil, até porque há 30 anos eram o mesmo país.”

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