A morte da mãe, o cartaz de Pamela Anderson, a melhor feijoada do Rio de Janeiro. A história mirabolante inventada pelo espião russo apanhado em Haia

18 jun 2022, 11:00
Victor Muller Ferreira

Documentos tornados públicos pelos serviços secretos neerlandeses mostram a história que o espião russo que foi intercetado antes de se conseguir infiltrar no Tribunal Penal Internacional terá desenvolvido para enganar quem o rodeava

“Eu sou Victor Muller Ferreira, nasci a 4 de abril de 1989 no Brasil no Rio de Janeiro, em Niterói”. É desta forma que começa um texto longo, profundo e escrito em mau português que serviu, durante pelo menos 12 anos, para lembrar a Sergey Vladimirovich Cherkasov, o espião russo que foi apanhado pelos serviços secretos neerlandeses, qual era a sua identidade falsa. As gralhas do texto original foram corrigidas para facilitar a compreensão da história desta família inventada, já de si confusa o suficiente para confundir uma pessoa.

Cherkasov, de 36 anos, é acusado de ser um agente dos serviços secretos militares russos do GRU e foi detido quando se preparava para começar um estágio no Tribunal Penal Internacional, em Haia, onde poderia vir a ter acesso interno a documentos sobre crimes de guerra na Ucrânia.

Durante mais de uma década, o russo fez-se passar por Victor Ferreira e um documento tornado público pelos serviços secretos neerlandeses do Algemane Inlichtingen Veeiligheidsdienst (AIVD) conta a “lenda” criada à volta desta personagem brasileira inventada para ludibriar as autoridades ocidentais e assim chegar a um lugar de influência onde pudesse recolher informação útil para o Kremlin.

O documento descreve num longo enredo como, por exemplo, os pais de Victor Muller Ferreira se conheceram, após o pai, que é só conhecido como Victor, ter descoberto aos 15 anos que a sua mãe verdadeira tinha morrido durante o parto e ter viajado até ao Rio, onde viria a conhecer a sua futura companheira.

Esta narrativa que terá sido desenvolvida pelo espião russo explica que os pais de Victor já tinham perdido o amor um pelo outro quando a mãe engravidou, e que a mãe ganhava dinheiro em vários restaurantes e cafés de Niterói e do Rio, onde fazia “apresentações”. Esta família ficcional recebia ajuda de uma tia descrita como de “baixa estatura” e com as “mãos suaves”. “Ela mal podia falar português, ensinava-me várias palavras de espanhol”. O documento também descreve aquilo de que Victor se lembrava durante a sua infância, como os carros a passar a ponte Presidente Costa e Silva e o cheiro a peixe que vinha do porto localizado perto da casa onde morava.

Quando a sua mãe adoeceu, em 2001, Victor foi morar para a casa da tia, uma “pensão de três andares” onde moravam, na maioria, “estudantes de faculdades, aposentados e pessoas com trabalho constante”. A tia trabalhava como costureira e o quarto onde Victor dormia é também descrito como “cheio de moldes e rolos de tecidos de várias cores”. Por causa da crise de 2001 no Brasil, Victor mudou-se com a tia para uma pensão de dois andares “onde moravam na maioria pessoas de poucas posses”. “Nos tetos havia manchas de água e o chão rangia demais e por isso quando alguém estava no banheiro ou na cozinha todo o mundo ficava sabendo disso”. O documento faz ainda menção de que na mesma pensão, no primeiro andar, morava uma família de três pessoas com quem conviviam e com quem gostavam de tomar mate. O arrendamento custava entre “80 e 100 dólares”.

Nesta altura, a personagem inventada pelo espião russo tinha 12 anos e entrou numa escola que tinha entre 600 a 700 alunos e que tinha um mote muito específico: “avancemos juntos”. “Quando eu entrei na escola na turma havia cerca de 30 pessoas”. Já em fevereiro de 2004, o documento salienta que a tia de Victor foi internada no hospital por causa de problemas cardíacos e o rapaz foi obrigado a trabalhar para ter dinheiro para comprar medicamentos e pagar o arrendamento da pensão. Um dos trabalhos que teve foi numa loja de montagem de pneus e também aqui há uma grande atenção ao detalhe por parte do espião russo que explica que a sala onde trabalhava tinha um “cheiro a óleo de máquina e de vulcanizadora”, e que numa porta da despensa havia um cartaz da atriz Verónica Castro que depois foi substituído por um da Pamela Anderson. O chefe da loja, por outro lado, era um tipo “gordo pra caramba” que era famoso pelo seu temperamento “violento”.

O documento desenvolve também a história do encontro de Victor com a sexualidade, em particular, com uma professora de geografia do ensino secundário. “Ela era tão linda que todos os rapazes da turma eram apaixonados pra ela. Muitas pessoas diziam histórias, que comecavam no mesmo - uma vez em que lhes pediu ficar depois da aula, mas que acabavam de formas diferentes - um tinha sorte de ver um striptease dela, outros faziam sexo com ela”. Victor não gostava dessas histórias, porque se sentia verdadeiramente apaixonado pela professora. Victor também não gostava de se lembrar do liceu porque os colegas “faziam piadas sobre a minha aparência e sotaque” porque ele parecia um alemão. “Eles me chamavam gringo".

A tia de Victor acabou por morrer de insuficiência cardíaca, mas antes deu ao sobrinho um livro de orações e um medalhão que, supostamente, Victor ainda teria até hoje. 

Depois da morte da tia, Victor decidiu concentrar-se nos estudos e precisou de recorrer ao pai para ter dinheiro para pagar as propinas. Depois de vários anos sem se verem, Victor conseguiu encontrá-lo através de um velho endereço dado pela tia e marcaram um encontro, algures em 2010, no Rio de Janeiro. Numa primeira reação, o pai de Victor parecia-lhe uma pessoa “muito aberta e carinhosa”, mas ficou surpreendido ao descobrir que o pai o culpava pela morte da mãe. “Portanto, a conversa foi bastante tensa, apesar do desejo sincero do meu pai de participar na minha vida”, prossegue a história.

Um ano mais tarde, Victor mudou-se para Brasília e os eventos narrativos da sua “lenda” concentram-se apenas no seu estilo de vida na capital do Brasil, onde morava numa residência que custava 550 reais por mês e frequentava restaurantes como “A Tribo”, onde diz haver a “melhor feijoada na cidade”. 

Termina assim a história totalmente inventada pelo espião russo apanhado pelos serviços secretos neerlandeses. Numa nota que acompanha o documento tornado público pelo AIVD, é referido que esta cobertura arranjada por Cherkasov é “muito complexa e difícil - senão impossível - de ser corroborada”, isto porque contém uma combinação eficaz de informação autêntica e de impressões pessoais, possivelmente fabricadas.

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