Quem é a lenda que uniu os guarda-redes rivais em Espanha

7 mar 2023, 09:13
Iribar no Mundial 1966 (Foto Getty)

Todos os guardiões vestiram de negro neste fim de semana em homenagem a Iribar, figura maior do Athletic Bilbao e campeão da Europa

Uma figura vestida de negro frente a cada baliza, em todos os relvados da Liga espanhola. Antes de cada jogo, um abraço entre guarda-redes rivais a assinalar o momento. Foi assim o fim de semana que o futebol espanhol dedicou a homenagear Iribar, lenda das balizas e figura maior do Athletic Bilbao, que festejou 80 anos a 1 de março.

O desafio foi lançado pelo clube basco, a sugerir que todos os guarda-redes usassem uma camisola preta como aquela que foi imagem de marca do Txopo. Com o aval da Liga espanhola, em campo assistiu-se a uma manifestação de unanimidade. Oblak e Bono lado a lado no At. Madrid-Sevilha, Ter Stegen e Mamardashvili no Barcelona-Valência e no Betis-Real Madrid posou para a foto Claudio Bravo, com o português Rui Silva no banco, ao lado de Courtois.

A homenagem estendeu-se a outras divisões e chegou até a Stamford Bridge, onde Kepa, o guardião do Chelsea formado no Athletic Bilbao, subiu para o aquecimento do jogo frente ao Leeds com uma camisola de homenagem a Iribar.

Uma jornada de foco na figura dos guarda-redes, inspirada num nome mítico. José Ángel Iribar é o jogador com mais presenças em campo na história do Athletic Bilbao, que promove este ano uma série de iniciativas associadas aos 125 anos da sua fundação. Foram 614 jogos ao longo de quase duas décadas, ele que é símbolo maior dos jogadores de um clube só.

Foi também 49 vezes internacional pela Espanha e festejou com a Roja a conquista do Europeu de 1964, pouco depois de se estrear. Com o Athletic, venceu duas Taças do Rei e chegou a uma final da Taça UEFA.

Casillas, Valdano, Zubizarreta e o que o distinguia em campo

Virou lenda, referência para os guarda-redes que se seguiram. Iker Casillas, por exemplo, contou recentemente como, apesar de nunca o ter visto jogar, cresceu a ouvir falar sobre o mito. «Ficava nervoso sempre que me cruzava com uma figura como ele», disse o antigo guarda-redes à Cadena Ser, numa reportagem em que Jorge Valdano, que o defrontou em campo, resumiu assim a dimensão de Iribar: «Enchia uma baliza, enchia o campo com a sua estampa.»

Andoni Zubizarreta, outro guarda-redes saído da cantera de Bilbau que se fez grande, sempre teve Iribar como ídolo e explica assim o que o distinguiu. «Foi um precursor no futebol espanhol, pela sua forma de entender o jogo a partir da baliza e pela forma como lançava o contra-ataque. O guarda-redes não era só um elemento defensivo, também participava na criação de jogo e no ataque. Era uma novidade, um elemento diferenciador, coisas que parecia que então não se pediam a um guarda-redes», diz, citado pelo As. Zubizarreta conta ainda que quando começou quis também jogar de preto, como o seu ídolo, mas foi o próprio Iribar quem o dissuadiu: «Aconselhou-me: ‘Deves ter a tua personalidade e marcar a tua imagem, agora as pessoas têm de te ver a ti’.»

Iribar distinguia-se também pela tal «estampa» física e foi essa figura longilínea e elegante, aliada à agilidade, que deu origem à sua alcunha – Txopo, choupo. Ela nasceu cedo, logo que o jovem José Ángel, natural da localidade basca de Zarauz, começou a jogar no Baskonia, impressionando um artigo guarda-redes às primeiras defesas. «Viu-me apanhar uma bola alta e, ao ver-me saltar com os braços esticados, disse: ‘Parece um choupo!’ E assim ficou a alcunha», contou Iribar numa entrevista à revista Jotdown.

A camisola do ídolo Yashin

Há muitas histórias para a lenda de Iribar, desde logo aquela que conta como ainda adolescente deu nas vistas na baliza do Baskonia com uma exibição que eliminou o Atlético Madrid da Taça do Rei. Na eliminatória seguinte o pequeno clube basco foi cilindrado pelo Barcelona, perdeu por 1-10, mas ainda assim Ladislao Kubala, outro mito como jogador que treinava então os catalães, disse que queria contratá-lo. O Baskonia tinha relações privilegiadas com o Athletic Bilbao, que se chegou à frente. Mas para isso teve de pagar, nada menos que um milhão de pesetas.

Tinha 19 anos quando se estreou pelo Athletic e ao fim de um ano já era o dono da baliza. Também chegou rapidamente à seleção espanhola. Estreou-se em março de 1964 frente à Irlanda, nuns quartos de final do Europeu – então Taça das Nações Europeias. Depois foi dele o lugar da baliza nos dois jogos da fase final, que se disputou em Espanha e que terminou com a Roja a levantar o troféu frente à URSS.

Na baliza da União Soviética estava um dos ídolos de Iribar: Lev Yashin. Foi também por causa da «Aranha Negra» que o guardião basco decidiu que o preto seria a sua cor em campo. No fim, Iribar pediu a camisola a Yashin. Tímido, foi um companheiro de equipa que o incentivou a ir até ao balneário rival para fazer o pedido. Percebeu mais tarde que não era a camisola da URRS, mas do Dínamo Moscovo, o clube onde jogava Yashin. Outros tempos, conta Iribar à Jotdown: «Ao ver as imagens confirmei que jogou mesmo a final com a camisola do Dínamo. Naquela altura era assim. Anos mais tarde eu também dei a minha camisola a um guarda-redes grego que ma pediu, do AEK Atenas, e o tipo jogou uma eliminatória da Taça das Feiras frente ao Ajax com a minha camisola da seleção com o símbolo da águia.»

A lenda que se alimentou de uma derrota

Iribar é dos poucos jogadores cuja lenda se alimentou de uma derrota. Foi em 1966. O Athletic – que na altura, sob o Franquismo, era obrigado a denominar-se Atlético – perdeu uma final da Taça do Rei, então Taça do Generalíssimo, frente a um poderoso Saragoça. O resultado foi 2-0 e não foi mais avultado graças a Iribar. No final do jogo puseram-lhe na cabeça a txapela, a tradicional boina basca, e levaram-no em ombros, enquanto os adeptos reciclavam um cântico dedicado a um toureiro para o dedicar a ele. Ficou para sempre: «Iribar, Iribar, Iribar es cojonudo, como Iribar no hay ninguno».

Ele diz que não queria aquela homenagem, mas recorda como aquele momento definiu a sua relação com os adeptos do Athletic. «Eu queria que me pusessem no chão e tirei a txapela, porque a txapela é do txapeldun, o campeão, o vencedor. E nós tínhamos perdido», disse na mesma entrevista: «Mas dessa noite saiu a canção ‘Iribar es cojonudo, como Iribar no hay ninguno’. Aí comecei a conhecer os nossos adeptos. Gente capaz de celebrar para se consolar por ter perdido. Uma afición alegre. Isso são coisas que marcam. Algo que tem influência na hora de decidir se sais ou ficas, se acabas a tua carreira num clube ou não.»

Ele ficou, até terminar a carreira no final de 1979. Esteve na baliza do Athletic nas conquistas da Taça do Rei em 1969, frente ao Elche, e em 1973, frente ao Castellón. Neste caso, depois de superar uma doença grave, uma febre tifóide que o manteve longe das balizas por três meses. Também esteve muito perto do título de campeão espanhol em 1970, quando o clube terminou a um ponto do campeão Atlético Madrid. Nessa temporada ganhou o prémio Zamora, que distingue o melhor guarda-redes da Liga espanhola.

A ikurriña em campo no dérbi, em nome da identidade basca

A identidade basca foi transversal ao percurso de Iribar e ele levou-a para o campo no final de 1976. Vivia-se a transição da ditadura franquista para a democracia, tempos conturbados ainda naquele dia 5 de dezembro em que, ao lado de Kortabarria, capitão da Real Sociedad, Iribar exibiu no velho estádio de Atocha a ikurriña, a bandeira símbolo da identidade basca, ainda ilegalizada nessa altura. Foi o resultado de um plano arquitetado ao pormenor, a que Iribar se juntou sob a condição de que a tomada de posição fosse unanimemente aceite por todos os jogadores. Assim foi.

Iribar ainda jogava quando em 1978 integrou a primeira mesa nacional do Herri Batasuna, o partido que seria ilegalizado em 2002, por associação à atividade terrorista da ETA. Deixou o partido e a atividade política ao fim de pouco mais de um ano. Sobre esse tempo, disse na entrevista à Jotdown que acreditou «poder acrescentar algo» como desportista. «Ia a escolas com o Sannti Brouard, para que as crianças não caíssem na droga e fizessem desporto», afirmou, referindo-se ao político basco que seria assassinado pelas GAL, brigadas paramilitares criadas ilegalmente por membros do governo espanhol para combater a ETA. Iribar admite que também a violência associada à ETA o levou a afastar-se: «Tudo entra. Eu, insisto, sempre me senti desportista. Tentei fazer as coisas de forma muito civilizada, o que refleti nos terrenos de jogo foi o que quis também refletir na vida.»

Pelo meio tinha chegado ao fim o seu percurso na seleção espanhola, que representou pela última vez em 1976. Não voltou a ser chamado, mas continuou a defender a baliza do Athletic, com ponto alto na final da Taça UEFA de 1977. Jogava-se a duas mãos, a Juventus ganhou em casa na primeira e na decisão os bascos venceram por 2-1, mas valeu o golo fora marcado pelos italianos para decidir o vencedor.

Pendurou as luvas em dezembro de 1979, quando jogava já muito limitado por uma hérnia discal. Depois passou como treinador pela formação do Athletic e em 1986/87 teve uma experiência à frente da equipa principal. Mas não continuou nos bancos e assumiu um papel de embaixador do clube, que mantém até hoje.

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