Grande entrevista | Quarta vaga do feminismo? “Houve uma espécie de insurreição, uma revolta quase popular contra a violência sexual”

16 ago, 08:00
Luisa Posada Kubissa (montagem CNN)

O ESPELHO ESPANHOL || Os movimentos trans ou queer têm sido uma espécie de cavalo de Troia para atacar o feminismo, alerta Luisa Posada Kubissa, que frisa que “o feminismo só faz sentido se houver um projeto de emancipação da mulher”. Espanha “tem sido líder na implementação de políticas públicas e leis relacionadas com a igualdade de género”, mas há muito caminho pela frente. “O poder judicial é muito forte” em Espanha: “cada vez que uma mulher violada apresenta queixa, há uma confraternidade entre os juízes que tende a descartar a queixa como falsa”.

Doutorada em Filosofia e professora de Teoria do Conhecimento, Estética e História do Pensamento na Universidade Complutense de Madrid, Luisa Posada Kubissa (Madrid, 1957) é uma das figuras mais destacadas da teoria feminista em Espanha. Escreveu e participou em inúmeras publicações, incluindo os livros 'Sexo e Essência' (1998), 'Apontamentos de teoria feminista' (2012) e 'Feminismo: lugares e ecos' (2023), onde percorre algumas das questões centrais da agenda feminista, como a violência sexual ou a "feminização da pobreza".

Em entrevista à CNN Portugal, a segunda de uma série de cinco sobre grandes temas que dominam a atualidade em Espanha, Luisa Posada Kubissa alerta para erros a evitar para que o o feminismo em Portugal não caia nas armadilhas e divisões que o movimento enfrenta em Espanha.

 

"Em Espanha o feminismo tem sido um movimento emergente"

O que é, ou o que significa, o patriarcado em Espanha, em 2025?

Existe ainda um sistema de desigualdade entre um sexo e o outro. A filósofa Alicia Puleo distingue entre patriarcado do consentimento e patriarcado da coerção. Em Espanha, não haveria um patriarcado da coerção, típico dos países islâmicos onde o patriarcado é imposto pela força, mas sim um patriarcado do consentimento, que é um patriarcado muito mais brando, que consiste na transmissão de estereótipos, etc., mas não com a força e a violência dos patriarcados da coerção. Esta distinção, entre patriarcados violentos e outros menos óbvios, já tinha sido feita pela teórica feminista Kate Millett em 1970, no seu livro 'Política Sexual'.

Sim, mas o que é exatamente o patriarcado? Um sistema de dominação?

Em termos gerais, é um sistema de dominação de um sexo sobre o outro — um sistema ancestral de dominação que existiu ao longo da história da humanidade, de acordo com a investigação realizada na teoria feminista e no 'corpus' feminista. O patriarcado não foi inventado pelo feminismo, é um termo que já existia na antropologia do início do século XX. A partir daí, o feminismo retomou-o e redefiniu-o precisamente como um sistema de dominação masculina sobre todas as mulheres, manifestando-se não só em práticas políticas amplas, mas também em 'micropráticas' sociais, isto é, na vida privada, com as múltiplas formas de opressão das mulheres — por exemplo, a violência.

Existe uma grande diferença se pensarmos, por exemplo, nos países islâmicos, onde o patriarcado é exercido com força bruta, e compararmos com países nórdicos, como a Dinamarca ou a Finlândia, que apresentam níveis de igualdade elevados."

Alguns afirmam que estamos atualmente a viver a 'quarta vaga' do feminismo, mas claramente não é uma vaga global. Há países onde ainda nem sequer chegou a primeira vaga...

Claro que não. Há uma filósofa espanhola, Amelia Valcárcel, que diz que a agenda feminista é a mesma em todos os países, mas está aberta em páginas diferentes. A agenda é a mesma, mas nem todos os países estão no mesmo ponto ou no mesmo momento. Existe uma grande diferença se pensarmos, por exemplo, nos países islâmicos, onde o patriarcado é exercido com força bruta, e compararmos com países nórdicos, como a Dinamarca ou a Finlândia, que apresentam níveis de igualdade elevados.

E porque é que a agenda feminista não está aberta na mesma página em países tão semelhantes, com uma história recente quase idêntica, como Espanha e Portugal? Porque é que o feminismo é muito mais visível, ou mais forte, do lado espanhol da fronteira?

Não penso que haja uma diferença tão grande entre Espanha e Portugal. Uma sondagem de 2023 afirmava que a Espanha é o país mais feminista da União Europeia, com 53% da população a declarar-se feminista. Em segundo lugar neste inquérito ficou Portugal, onde 46% da população se declarou feminista. A diferença não é tão grande quanto isso, mas é verdade que em Espanha o feminismo tem sido muito forte e tem sido um movimento emergente, especialmente porque as políticas públicas têm sido amplamente promovidas. Por exemplo, com a famosa Lei da Violência de Género de 2004 e a Lei da Igualdade entre Homens e Mulheres de 2007. Ou seja, a Espanha tem sido líder não só em relação a Portugal, mas também a quase todos os outros países vizinhos, na implementação de políticas públicas e leis relacionadas com a igualdade de género.

As leis que citou coincidem com governos socialistas de José Luis Rodríguez Zapatero.

Exatamente, durante o primeiro mandato de Zapatero, pois foi ele que promoveu ambas as leis. Mas em Portugal também existe uma tradição de feminismo de longa data. Conhecemos sufragistas portuguesas, como Ana de Castro Osório, que surge na transição entre os séculos XIX e XX. Em Espanha, quase simultaneamente, estava a acontecer o movimento de libertação das mulheres. E em Portugal, após a ditadura de 1974, formaram-se as primeiras organizações feministas — tal como em Espanha, onde surgiriam após a ditadura de Franco. Há um paralelismo. A diferença, talvez, na minha opinião, seria que, em Espanha, foram implementadas muito mais políticas públicas em relação à igualdade.

4 de maio de 2004. O primeiro-ministro espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, à esquerda, e o seu homólogo português, José Manuel Durão Barroso, à direita, durante uma conferência de imprensa conjunta após a sua reunião no Palácio de São Bento, residência oficial do primeiro-ministro, em Lisboa. AP Photo/Armando França

Na década de 1970, conheceu Celia Amorós, uma das pioneiras do feminismo em Espanha, e estudou com ela. O que quer dizer Amorós quando afirma que "o bom feminismo é emancipador"?

O que ela quer dizer com isto é que tudo o que não tem um projeto de emancipação da mulher não pode ser feminismo. Uma emancipação em grande escala: sexual, mas também económica, política e cultural. O feminismo só faz sentido se houver um projeto de emancipação da mulher, o que pressupõe um projeto de emancipação da humanidade. Caso contrário, o feminismo não é nada. Com isto, ela pretende distanciar-se de um feminismo meramente reformista; ou seja, para Amorós, deve ser um movimento de renovação completa das relações entre os sexos que seja, de facto, emancipador para as mulheres.

A Espanha até pode ser o país mais feminista da Europa, mas, ao mesmo tempo, há correntes que dividem o movimento. Houve inclusive agressões em algumas manifestações recentes. O que é que está a acontecer? Porque é que o feminismo em Espanha está tão divido, apesar de ser forte?

Neste momento, o feminismo em Espanha não é tão forte como há dois anos. Não é que não esteja presente, mas já não é uma força emergente — como era, sobretudo depois de grandes movimentos como o 'Comboio da Liberdade' contra o plano de um ministro do Partido Popular, [Alberto] Ruiz-Gallardón, de restringir o direito ao aborto. Em 2014, houve uma grande manifestação com um milhão de pessoas, e esse foi o tiro de partida para o movimento feminista em Espanha emergir com grande força. Depois, em 2017, com o movimento 'Me Too', houve grandes mobilizações nas greves feministas, e a população estava muito consciente. Mas agora declinou um pouco. E muito deste declínio teve a ver, sem dúvida, com a divisão que ocorreu dentro do feminismo — não apenas em Espanha, também internacionalmente devido ao surgimento de movimentos transgénero, ou 'queer', ou pós-feministas. Estes movimentos têm sido uma espécie de cavalo de Troia para o feminismo, com as suas reivindicações e a sua agenda. O maior desacordo que houve foi sobre a mal chamada "lei trans" sobre a autodeterminação de género. Foi uma lei promovida pela antiga ministra da Igualdade, Irene Montero, e surgiu uma divisão total dentro do feminismo: entre os que apoiavam esta lei trans e os que se opunham a ela. Houve um debate muito tenso e intenso. A partir de posições "transinclusivas", denunciou-se que o feminismo que não as aceitasse era transfóbico, ou "transexcludente". Alguns eventos foram cancelados e, tal como apontou, houve inclusive agressões. Mas também houve divisões em Inglaterra, nos Estados Unidos, em Itália. A ascensão da teoria "queer" e o seu confronto com o feminismo transcendem as fronteiras espanholas.

1 de fevereiro de 2014. Manifestantes gritam slogans enquanto marcham em direção ao Parlamento espanhol durante um protesto contra o plano do governo de implementar restrições significativas ao aborto em Madrid, Espanha. A manifestação foi organizada no sábado por dezenas de grupos de mulheres que lutam pelos direitos reprodutivos. A faixa diz: «... Porque eu decido. Comboio da Liberdade». AP Photo/Andres Kudacki

A mesma ex-ministra, Irene Montero, promoveu uma outra lei que ficou conhecida como a lei do consentimento "só sim é sim". Foi apresentada como uma conquista civilizacional, mas ao mesmo tempo foi uma lei muito controversa e até ineficaz...

A lei "só sim é sim" visava travar a violência sexual. O problema desta lei, criticada por muitas feministas, é que, por exemplo, não incluía a prostituição como violência — a prostituição foi deixada de fora da lei. Outro problema é que, quando foi implementada, levou a uma revisão das penas existentes para o abuso sexual e a violação, e algumas penas foram reduzidas, porque esta lei foi criada dentro de uma ideia não punitiva. A redução de penas para alguns violadores causou muito alarme na sociedade. Depois, claro, tem sido uma lei muito controversa, porque, além disso, dentro do feminismo, entendemos que o que é preciso incentivar é a mensagem "não é não", como se dizia antigamente.

Falou sobre a prostituição, que é outra questão que divide o feminismo. Porquê? E porquê há também divisões quanto à gestação de substituição?

A questão da prostituição é calorosamente debatida, entre posições abolicionistas e posições regulamentaristas. Ou seja, posições que querem abolir e posições que querem regular e legalizar a prostituição. A prostituição, o tráfico de mulheres e crianças para a exploração sexual, e a pornografia, constituem os três pilares de uma enorme indústria: a indústria do sexo. Aquilo em que uma parte do feminismo acredita é que a violência sexual não pode ser eliminada sem acabar com estes três pilares — não apenas um, mas os três. Em relação às barrigas de aluguer, a posição é mais unânime. Em Espanha, são poucas as feministas que defendem a regulamentação da gestação de substituição. Pode haver algumas, mas a maioria opõe-se porque entendem — no sentido da máxima do filósofo Kant — que a pessoa é um fim em si mesma e nunca um meio. E é por isso que não pode ser transformada numa mercadoria, num recetáculo vazio para os desejos dos outros. Em Espanha, o feminismo levanta-se em armas cada vez que há uma conferência ou um evento sobre barrigas de aluguer. E uma grande parte do feminismo acredita que a gestação de substituição deve ser tratada de forma punitiva, como tráfico humano, porque implica o tráfico de crianças.

A prostituição, o tráfico de mulheres e crianças para a exploração sexual, e a pornografia, constituem os três pilares de uma enorme indústria: a indústria do sexo. Aquilo em que uma parte do feminismo acredita é que a violência sexual não pode ser eliminada sem acabar com estes três pilares — não apenas um, mas os três"

Outro cavalo de batalha para algumas feministas em Espanha foi a condenação do antigo presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales. Diria que o episódio teve a dimensão que teve porque é raro alguém tão conhecido fazer uma coisa assim... à frente de tantas pessoas?

Este caso foi útil para o feminismo trazer à tona tudo o que está relacionado com assédio e violência sexual não consentida. Acho que Rubiales nem sequer se apercebeu do que estava a fazer, mas o facto é que ele deu aquele beijo não consentido à frente de milhões de pessoas, e Jenni Hermoso não deixou passar o incidente e denunciou Rubiales. Portanto, para o feminismo, foi uma questão-chave, que ainda por cima está contemplada na lei do "só sim é sim", porque esta lei aborda o abuso sexual e inclui beijos indesejados. A lei foi, portanto, rigorosamente aplicada. Para as pessoas em geral, foi um exagero — não pensaram que fosse um problema tão grande quanto isso. Mas a lei, se for aplicada, tem esse resultado. Foi também uma forma de trazer à tona a questão do consentimento sexual, que é uma questão muito debatida. Podemos falar de consentimento sexual por parte das mulheres quando estas se encontram em situação de desigualdade?

15 de setembro de 2023. O ex-presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, passa por uma viatura policial após prestar depoimento no Tribunal Nacional, em Madrid, Espanha. AP Photo/Manu Fernandez, Arquivo

No caso de Rubiales, houve também uma questão de poder, porque ele era o chefe da federação, e Jenni Hermoso era apenas uma peça na engrenagem.

As duas coisas se juntam: a desigualdade enquanto mulher e a relação de poder. O facto é que Jenni Hermoso levou o caso à justiça. Foi a própria vítima que se recusou a pôr a questão de lado, e tinha todo o direito de o fazer.

Pelo que consegui apurar, ela inicialmente não deu ao episódio a importância que algumas das suas colegas lhe deram. E foram elas que a convenceram a apresentar queixa, porque Jenni não queria ser o centro das atenções após a vitória no Mundial, uma conquista coletiva.

Provavelmente convenceram-na e aconselharam-na. Mas o facto é que ela seguiu em frente e ganhou o processo.

O movimento 'Me Too' parecia que ia ser um fenómeno de massas, mas gradualmente perdeu força. Desde o início, por outro lado, houve mulheres que se posicionaram contra o "puritanismo sexual" do 'Me Too', como afirmava um manifesto assinado por cem artistas e intelectuais francesas.

O movimento 'Me Too' teve início em 2017. Foi um movimento forte e emergente dentro do feminismo, que se consolidou internacionalmente. E foi precisamente esta forte emergência do feminismo que provocou uma reação patriarcal — sempre foi assim, sempre que o feminismo avança ou faz as suas conquistas o patriarcado reage. A partir de 2018, houve uma reação mediática, uma reação social… uma reação em todas as frentes para neutralizar o poder de um movimento que, na altura, era muito predominante. Parte desta tentativa de desmobilizar e neutralizar o feminismo teve a ver com o empoderamento da política trans e 'queer'.

Mas enquadra as intelectuais e artistas francesas que assinaram o manifesto dentro desta reação patriarcal?

Sem dúvida. Como dizia Simone de Beauvoir, o inimigo não seria tão forte se não tivesse cúmplices. Não estou a dizer que as mulheres que assinaram o manifesto contra o "Me Too" estivessem a agir de má-fé; o que estou a dizer é que respondiam a uma política patriarcal. Porque, claro, se vivemos num patriarcado, as mulheres, os homens, as crianças, os gatos... e todos os outros seres, são patriarcais. Portanto, estas mulheres estão imbuídas de patriarcado e são, de certa forma, cúmplices.

 

"Os juízes [de Espanha] têm grande conivência com sectores da direita e extrema-direita. Não são propriamente feministas"

María Jesús Montero, uma das pessoas mais influentes do atual governo espanhol, teve de recuar nas suas críticas aos juízes que absolveram o ex-jogador de futebol Dani Alves, acusado de violação, por falta de provas. Perante a presunção de inocência, Montero e outros disseram à alegada vítima: "Acreditamos em ti porque és mulher".

É muito delicado ser ministro e questionar os juízes. Penso que poderia ter dito o mesmo que disse... de uma forma menos expressiva. Mas estamos a falar de um sistema de justiça patriarcal. Os juízes deste país, e está a tornar-se claro, são juízes que têm grande conivência com sectores da direita e da extrema-direita. Não são propriamente feministas. E não sou só eu que o digo; até juízes como Joaquim Bosch, presidente da [organização progressista] Juízes pela Democracia, o dizem. Isso ficou demonstrado na decisão sobre 'La Manada' [um caso de violação coletiva]. Cada vez que uma mulher violada apresenta queixa, há uma confraternidade entre os juízes que tende a descartar a queixa como falsa e presume que a mulher não fez tudo o que podia para se defender. O poder judicial é muito forte neste país. María Jesús Montero disse o que pensava.

Foi uma reação impulsiva?

Exatamente, e rapidamente percebeu que tinha cometido um erro.

A agenda trans é uma coisa e a agenda feminista é outra, e não coincidem em quase nada."

A Espanha estaria a viver a 'quarta vaga' do feminismo, como discutimos no início da entrevista. Pode resumir o caminho percorrido desde o Iluminismo, que foi a primeira vaga?

O feminismo começa antes até do Iluminismo, no final do século XVII, com o filósofo Poullain de la Barre. A primeira vaga esteve muito focada na reivindicação da educação para as mulheres, pois entende que a igualdade depende do acesso à educação. Figuras icónicas, como Olympe de Gouges, em França, e Mary Wollstonecraft, na Grã-Bretanha, reivindicam que a igualdade do Iluminismo seja estendida às mulheres. A segunda vaga é a luta pelo voto feminino — o sufragismo, uma vaga muito ampla que dura quase cem anos. Começa em 1848, com a Declaração de Seneca Falls, nos Estados Unidos, e estende-se até à Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. A terceira vaga é a do feminismo radical, que entende que, embora tenham sido conquistados alguns direitos, como o direito ao voto, o direito à educação, ou o direito a exercer determinadas profissões, as mulheres continuam a ser excluídas tanto na esfera privada como na pública. Há figuras muito importantes, e todas elas se inspiram em Simone de Beauvoir, que publicou 'O Segundo Sexo' em 1949. Falo de Betty Friedan, com 'A Mística Feminina' em 1963, Shulamith Firestone com 'A Dialética do Sexo' em 1970, ou Kate Millett com 'Política Sexual', também em 1970. São pensadoras que vão moldar o que hoje entendemos como feminismo. Não tenho a certeza se podemos dizer que estamos numa 'quarta vaga', porque ainda não temos distância suficiente. Mas, se for o caso, o que impulsionou esta vaga foi uma espécie de insurreição, uma revolta quase popular contra a violência sexual. O movimento 'Me Too', por exemplo, é uma rebelião contra a violência sexual.

Acredita que há uma solução para as divisões dentro do feminismo e que pode voltar a haver um movimento unificado?

Gostaria de pensar que sim, mas acho muito complicado porque as coisas chegaram a um ponto tão extremo e a um confronto tão grande... De resto, são agendas quase opostas. A agenda trans é uma coisa e a agenda feminista é outra, e não coincidem em quase nada.

Estas agendas acabarão por tomar caminhos diferentes?

São, na verdade, coisas diferentes. O feminismo tem o seu próprio sujeito político, que são as mulheres. E a teoria 'queer' e o pensamento trans têm outra agenda e outros sujeitos políticos. Gostaria que caminhassem juntos para poder enfrentar, por exemplo, a situação angustiante das mulheres no Afeganistão ou no Irão. No entanto, não conseguimos fazer nada enquanto movimento feminista. Porquê? Porque não temos força suficiente, porque estamos totalmente divididas. O ideal seria que cada agenda mantivesse o seu próprio território e, depois, na prática e na ação política, pudessem caminhar juntas.

O primeiro-ministro socialista da Espanha, Pedro Sánchez, com a vice-primeira-ministra e ministra das Finanças da Espanha, Maria Jesus Montero, no Parlamento espanhol em Madrid, Espanha, em 2024. AP Photo/Manu Fernandez

Para além da desigualdade de género, persiste a desigualdade económica. No seu último livro, diz que 70% dos verdadeiramente pobres no mundo são mulheres...

Esta desigualdade está na agenda feminista há anos, mas tem sido um pouco negligenciada. E, no entanto, das 1.300 milhões de pessoas absolutamente pobres que se calcula que há no mundo, 70% são mulheres. Portanto, devemos voltar a colocar a questão na agenda feminista, porque é gritante. A agenda feminista é muito ampla, uma mistura de problemas que já tínhamos e outros que foram surgindo: violência física contra as mulheres, feminicídios, aumento da violência sexual... prostituição, barrigas de aluguer e, mais recentemente, a reivindicação de um sujeito político. Mas todas estas questões não devem ofuscar o que acaba de salientar — a desigualdade económica das mulheres, a desigualdade de recursos, a incapacidade de desenvolver as suas capacidades, que é como o economista Amartya Sen define a pobreza.

Que erros pode evitar o feminismo em Portugal para não cair nas armadilhas e divisões que enfrenta o movimento em Espanha?

Não se deve cair no erro de sobrepor uma agenda que não seja feminista. Ou seja, precisamos de ter muita clareza sobre as questões-chave da nossa agenda, e acabo de referir algumas delas. Trata-se de unir forças com outros movimentos e outros aliados. Juntar forças, em vez de suplantar forças. E devemos ter a noção clara de que o feminismo, desde 1975 — uma data simbólica, porque foi o primeiro Ano Internacional da Mulher — está a diversificar-se e fragmentar-se. Falar de feminismo hoje é falar de raça, etnia, alternativas ecológicas, grupos de mulheres negras, "chicanas" e migrantes, orientações sexuais… Tudo isto compõe uma rede de variáveis que diversifica os interesses das mulheres. Precisamos de determinar onde se posiciona cada mulher em relação a estas variáveis para perceber quais são os seus interesses.

 

8 de março de 2025. Milhares de pessoas nas ruas de Barcelona, Espanha, numa manifestação massiva pelo Dia Internacional da Mulher. Foto de Albert Llop/NurPhoto via Getty Images

 

Pela sua dimensão e proximidade, Espanha funciona também como um espelho — ou mesmo bola de cristal — para muitos assuntos que estamos a viver em Portugal ou que vão bater à nossa porta. Assim nasce O Espelho Espanhol, uma série de cinco entrevistas sobre grandes temas que dominam a atualidade em Espanha. Não perca a entrevista seguinte de O Espelho Espanhol no próximo sábado. 

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