Convocar eleições não é sinal de fraqueza, mas um ato de coragem para devolver a confiança aos cidadãos. Sánchez terá de escolher: persistir na teimosia do poder ou reconciliar-se com a legitimidade que apenas o voto pode conceder
Sim, Pedro Sánchez deve convocar eleições. Não por fraqueza, não porque seja culpado ou abdique da presunção de inocência, mas porque o ambiente político em Espanha se tornou irrespirável. A democracia, para viver, precisa de debate e não de gritos, de justiça e não de justicialismo, de adversários e não de inimigos. Hoje, respira-se numa atmosfera saturada de acusações, manipulações e escândalos que substituíram a governação pela guerrilha. A justiça deixou de ser árbitro para se tornar parte. E a política, aquela que deveria mediar o conflito democrático, converteu-se num pântano onde ninguém pode manter-se de pé com dignidade.
Sánchez resistiu mais do que muitos esperavam. Impediu a extrema-direita de chegar ao poder, defendeu uma ideia de Espanha plural e aprovou medidas que reverteram anos de austeridade. Mas também falhou. Para se manter no poder, aceitou alianças no mínimo questionáveis, pactuando com os herdeiros políticos da ETA e cedendo a Puigdemont. A amnistia, já avalada pelo Tribunal Constitucional, é vista por uns como gesto de reconciliação, mas por outros, como o preço da “investidura”. A convivência, já frágil, tornou-se refém de um jogo tático permanente.
Mas há momentos em que resistir é a resposta errada. Quando a erosão institucional se torna estrutural, a continuidade não é um sinal de força, mas de bloqueio. E a democracia bloqueada apodrece. A tensão entre a tentativa de garantir unidade territorial e o reconhecimento de uma Espanha plurinacional deixou de ser episódica: tornou-se permanente. A política judicializou-se, os tribunais substituem as urnas e os ataques entre o líder da oposição, Núñez Feijóo, e Sánchez já ultrapassaram os limites do admissível no debate democrático.
Em vez de debate, temos assistido a insinuações. Em vez de oposição, deslegitimação. Em vez de verdade, ruído. Um país não é governável desta forma e torna-se impossível confiar num projeto político quando dois dos colaboradores mais próximos de Sánchez, José Luís Ábalos, antigo Ministro dos Transportes, e Santos Cerdán, número três do PSOE, que se encontra em prisão preventiva, estão a ser investigados por pertencer a organização criminosa.
Neste cenário, adiar eleições por medo do resultado seria transformar a democracia num ritual de manutenção do poder. Convocar eleições não é render-se, mas desafiar o país a reencontrar o seu caminho. Quando o principal argumento contra um plebiscito é o risco da escolha popular – por muito que envolva o VOX – o essencial já se perdeu: a confiança nos cidadãos e na própria democracia. Mas convém não confundir esta necessidade com penitência. Sánchez não deve sair de cena como bode expiatório de um sistema permeável aos interesses, onde as responsabilidades se estendem a todo o espectro político, da direita à esquerda.
A corrupção, o compadrio e a degradação institucional não nasceram com este Governo. O Partido Popular, que hoje se apresenta como guardião da “limpeza ética”, foi, durante anos, protagonista de algumas das mais obscuras redes de corrupção da democracia espanhola. Com um moralismo seletivo e conveniente, celebra as decisões judiciais que servem os seus fins e denuncia sempre que os tribunais escrutinam os seus, como tem vindo a acontecer com Isabel Díaz Ayuso, Presidente da Comunidade de Madrid.
O caso Gürtel expôs uma teia de subornos, com contratos públicos adjudicados a troco de comissões e favores, envolvendo dirigentes do partido ao mais alto nível. O caso Bárcenas revelou uma contabilidade paralela, sustentada por pagamentos ocultos a figuras do PP, incluindo antigos primeiros-ministros. E o caso Púnica trouxe à luz práticas de favorecimento e corrupção enraizadas nas administrações regionais de Madrid e Valência. Estes episódios não são desvios pontuais, fazem parte de uma lógica de poder e abuso institucionalizada.
É neste terreno minado que o VOX pode crescer, como parceiro do PP ou isoladamente. Um partido que não procura apenas influenciar políticas, mas reescrever a história, branquear o franquismo e impor uma ideia de “ordem”. Ou seja, um projeto de regressão autoritária. O desgaste da democracia, alimentado por escândalos, impunidade e oportunismo, não abre apenas caminho à alternância: escancara as portas à extrema-direita. O seu discurso não é de oposição democrática, mas de rejeição do pluralismo. A sua crescente presença no poder local e regional não pode ser encarada apenas como um efeito secundário da política de coligações do Partido Popular, mas como uma ameaça estrutural à democracia.
A questão que se coloca, portanto, não é apenas tática. É ética. A democracia espanhola está perante uma encruzilhada. Continuar neste ciclo de polarização, suspeita e degradação institucional seria perpetuar um estado de “guerra civil” permanente. Rompê-lo exige coragem política, que se mede também na capacidade de confiar nos cidadãos. Convocar eleições é uma forma de respirar. Uma forma de devolver ao povo a palavra e à política a sua função.
Sánchez pode e deve assumir essa responsabilidade, independentemente do que digam o Sumar ou o Podemos. Não como fuga para a frente, mas como gesto de confiança. Não se trata de salvar um governo, mas de salvar a dignidade da democracia espanhola. O que está em causa não é apenas quem governa, é o tipo de sociedade que Espanha quer ser. Uma sociedade onde a justiça não sirva de arma, mas onde as instituições sirvam o bem comum. Uma sociedade onde se possa discordar sem ser acusado de traição. Onde o pluralismo não seja visto como fraqueza, mas como base da convivência.
Num tempo em que várias democracias se veem confrontadas com a tentação da exceção permanente, dar a palavra aos cidadãos é muito mais do que uma decisão política. Há momentos em que manter-se lúcido é, por si só, um ato de coragem. Este é um desses momentos.