Anny foi vítima de bullying durante um ano. "Cuspiam na minha água e atiravam o meu material pela janela"

10 nov 2024, 08:00
Anny Silva

O bullying em idade escolar deixa marcas para a vida inteira. Na semana em que se assinalou o Dia Internacional contra a Violência e o Bullying na Escola, ouvimos uma vítima e três especialistas. Saiba quais são os sinais de alerta

Era uma “excelente aluna” no Brasil. Veio para Portugal com os pais, com a esperança de evoluir nos estudos e para encontrarem “uma vida melhor” deste lado do Atlântico. Mas o primeiro ano da vida de Anny Caroline Silva em Oeiras foi um pesadelo.

“Foi em 2018. Agora percebo que tudo começou logo no início e quem abriu o caminho para os meus colegas foi a minha professora de Físico-Química, que era também diretora de turma, logo em setembro”, começa por contar, numa conversa telefónica com a CNN Portugal.

Anny ainda tem na memória bem marcadas as frases que ouvia da professora, sempre que se atrevia a colocar uma dúvida ou a fazer alguma pergunta: “Sempre que perguntava alguma coisa, ela perguntava ‘não percebeste? Se não percebeste o que é que estás aqui a fazer? Porque é que não voltas para o Brasil?’. Inicialmente, e muito inocentemente, não percebia bem o que ela queria com aquilo e respondia que tinha vindo com a minha família em busca de uma vida melhor”.

Mas as provocações continuavam: “Quando tinha notas más numa prova, ela perguntava ‘onde é que você pensa que vai com esta porcaria de nota?’ e fazia questão de falar para toda a turma a nota que eu tinha tirado.”

“O dia inteiro com sede”

Até aí, os colegas votavam-na ao isolamento, mas não a agrediam. Mas Anny sente que o comportamento da professora “abriu caminho” às agressões dos colegas. “Ninguém queria ficar sentado ao meu lado. Um dia, numa aula de computadores, a professora obrigou um colega a sentar-se ao meu lado e ele perguntou onde é que eu tinha a arma, porque no Brasil andávamos todos armados”, conta.

O pesadelo estava só a começar: “Começaram a cuspir-me na água e a atirar o material pela janela. A janela dava para um matinho e, se queria o meu material de volta, tinha de sair da escola e ir lá buscar. Era a turma inteira. Só tinha uma menina que me avisava ‘olha, não bebe tua água não, porque eles cuspiram na tua água’”.

Anny deixou de levar água para a escola e recorda que “às vezes, ficava o dia inteiro com sede, porque a escola não tinha bebedouros”. Mas a vergonha e o medo impediam-na de contar o tormento pelo qual estava a passar.

“Cheguei a falar com os meus pais, mas tinha muita vergonha e tinha medo de que eles fossem à escola falar com a professora e piorassem a situação. Afinal, tudo tinha começado com a atitude da própria diretora de turma. Partindo de um adulto, é ainda pior, porque sentimos que não temos em quem confiar”, lamenta.

Pedia “para que parassem”, mas sem efeito. “Para eles era só uma brincadeira e estava tudo bem”.

“Se me batessem, era até melhor”

Nunca houve agressões físicas, mas Anny não sente que, por isso, o sofrimento tenha sido menor. “Se me batessem, era até melhor. Pelo menos teria um motivo real. Assim, nem tinha provas. Ia lá e falava o quê? Que eles cuspiram na minha água? E provava como? Não tinha câmaras para filmar”, questiona.

“Comecei a faltar recorrentemente, porque não me sentia bem na escola. Só não faltava mais porque sabia que ia arranjar problemas aos meus pais. Comecei a comer muito e, por isso, engordei muito. Tinha muitas crises de ansiedade. Tive de repetir o ano… eu, que, no Brasil, sempre tinha passado em todas as matérias e era uma excelente aluna”, lamenta.

Só a mudança para a Margem Sul do Tejo e a consequente transferência de escola a vieram “salvar”. Ainda hoje, seis anos depois, garante que teve “muita sorte em mudar de escola” e se sentiu “muito mais acolhida e muito mais bem tratada”. “Principalmente pelas meninas”.

Os maus-tratos ficaram na escola antiga, mas os efeitos, ainda hoje os sente. No corpo e na alma. Com a compulsão alimentar que criou nesse tempo, veio o excesso de peso e os complexos com o corpo. “Ainda custo a me reconhecer no espelho, sabe?”, confessa.

“Mas acredito que um dia vai passar. Antigamente, quando falava disto, contava chorando. Atualmente, conto como uma superação. Já me defendo, já não baixo a cabeça”, reconhece.

Procurou apoio psicológico junto da escola, junto do Serviço Nacional de Saúde, mas nunca o conseguiu. E, sem capacidade financeira para o pagar, foram os pais e o namorado quem a ajudaram a superar aquela fase, que quer ultrapassada, mas não esquecida. Está convencida que é hoje uma mulher forte e uma profissional dedicada porque passou pelo que passou.

O psicólogo Luís Fernandes, um dos fundadores do projeto bullying.pt, ressalva que “não há ex-vítimas de bullying. Há sempre uma marca que fica, por mais terapia que seja feita”.

60% das vítimas sofrem caladas

Anny faz questão de contar a sua história, com nome e rosto, para ajudar outras vítimas e acordar a consciência de potenciais agressores. Faz parte de uma minoria.

O psicólogo Luís Fernandes, que se dedica precisamente ao trabalho com vítimas e agressores, sublinha que “60% das vítimas não contam a ninguém o que se passa e, quando contam demoram em média 13 meses”. “Passam mais de um ano em sofrimento. São números assustadores”, resume.

Na primeira quinta-feira de novembro, instituiu-se o Dia Internacional contra a Violência e o Bullying na Escola, pela UNESCO. Um drama que não é exclusivo de um país ou de uma região do planeta. Em todo o mundo, há jovens vítimas de bullying em idade escolar. Em outubro deste ano, no arranque de mais uma campanha contra o bullying, a Polícia de Segurança Pública (PSP) revelou que, no ano letivo 2023/24, nas mais de 2.900 ocorrências criminais registadas pelas equipas do Programa Escola Segura (EPES), 134 estavam relacionadas com situações de bullying e 30 com casos de ciberbullying.

De acordo com Luís Fernandes, o 8.º ano é aquele onde se registam mais situações de bullying, coincidindo com faixa etária entre os 13 e os 15 anos. “Estudos apontam para 35% dos jovens nesta faixa etária estão envolvidos em situações de bullying, seja como vítimas ou como agressores e muitas vezes com duplo papel”, sublinha.

São os rapazes quem mais se envolve em situações de bullying, tanto como vítimas como agressores. Os rapazes praticam mais bullying verbal e físico e as raparigas mais relacional. “O bullying sexual surge numa idade mais tardia”, acrescenta o psicólogo.

Os sinais de alerta

O bullying em idade escolar não escolhe vítimas e é preciso estar atento. O psicólogo Luís Fernandes pede aos pais e professores que não ignorem sinais como:

  • Alterações bruscas de comportamento;
  • Perturbações do sono;
  • Descida abrupta dos resultados escolares;
  • Alheamento da realidade;
  • Maior desmotivação;
  • Perturbações alimentares (mais comuns no género feminino);
  • Comportamentos de automutilação (mais comum também no género feminino) – E neste aspeto, o especialista o papel dos colegas, que terão maior facilidade em detetar lesões muitas vezes escondidas de pais e professores;
  • Deixar de praticar algum desporto ou alguma atividade (“Muitas vezes, sobretudo em meios mais pequenos, o agressor está na escola, mas o mesmo agressor está também no futebol ou na natação”, alerta Luís Fernandes);
  • Deixa de estar ligado aos dispositivos móveis (“Nestas idades, fazem tudo para estarem ligados. Se, de repente, deixam de querer estar com os dispositivos móveis, isso deve ser um sinal de alerta”, diz o psicólogo).

Pode até “nem ser nada”, mas “é sempre melhor pensarmos que é uma situação de bullying e depois percebermos que não é do que detetar uma situação tardiamente”, sublinha o especialista.

O cyberbullying

Há um tipo de bullying que trespassa os muros das escolas, não têm horários e não conhece férias ou interrupções letivas. “No tempo da pandemia, até costumava dizer que o cyberbullying não sabe o que é confinamento”, destaca Luís Fernandes.

Cristiane Miranda e Tito de Morais, fundadores do projeto Agarrados à Net, assinam por baixo. “O cyberbullying tem ainda a componente do anonimado. No bullying presencial, normalmente conseguimos saber quem nos está a ofender, quem nos está a agredir ou quem nos está a humilhar. No cyberbullying, posso estar a ser agredido nas redes sociais, através de perfis falsos e nem saber quem me está a agredir”, acrescentam os dois especialistas.

“No bullying presencial, quando chego a casa, estou a salvo das agressões das humilhações e das agressões. O cyberbullying não tem horários escolares e não sabe o que são paredes. Soluções como mudar criança de escola ou até mudar a família de cidade não têm efeito”, destaca ainda Tito de Morais.

Um episódio gravado na escola e disseminado nas redes sociais, as ameaças por mensagem de telemóvel, ou um ‘simples’ meme podem provocar estragos mais profundos e mais alargados do que um episódio presencial. “Recordo-me de um caso de um jovem que tinha uma deformação física e a sua fotografia foi usada num meme. A mãe dizia-me, ‘mas já não chega o meu filho ter este problema? Agora ainda tem de se ver e tenho de o ver num meme partilhado por toda a gente?’”, conta Tito de Morais, sublinhando que “às vezes esquecemo-nos que estas pessoas existem, têm família”.

Cristiane Miranda alerta também para o bullying exercido através de plataformas de jogos online, “algo que muitos pais desconhecem que pode acontecer”. “Recentemente, tivemos connosco, numa palestra, uma especialista brasileira e perguntámos-lhe que plataformas ofereciam maior perigo. Ela não hesitou em dizer-nos que o Roblox era a que colocava maiores problemas, por ser uma plataforma descentralizada e difícil de controlar o que os utilizadores fazem”, exemplifica.

Os efeitos do bullying

Seja online ou presencial, o bullying pode deixar marcas para a vida toda. Luís Fernandes lembra que o bullying “ataca o coração da adolescência, a altura em que estamos a desenvolver a nossa personalidade”.

Estudos internacionais, “sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido”, apontam para “mais consumos de substâncias, mais taxas de desemprego, mais taxa de divórcio, mais problemas com a justiça”, entre adultos que foram agressores. “Muitas vezes exercendo, na vida adulta, bullying no trabalho, o chamado mobbing”, diz Luís Fernandes.

“As vítimas têm tendência a serem adultos mais inibidos, mais contidos nas suas relações, em equipas de trabalho”, exemplifica o psicólogo.

A curto prazo, os efeitos nas vítimas podem ser confundidos com sinais de alerta, tornando um processo num círculo vicioso difícil de romper. “São jovens mais inibidos, que acabam por interagir menos com os pares, participam menos nas aulas, refugiam-se mais no quarto, com piores resultados escolares, com níveis altíssimos de ansiedade. O bullying compromete relações sociais, relações com a turma, as relações com os pais e restantes familiares. Há também uma forte ligação entre o bullying e distúrbios alimentares, como anorexia, bulimia, principalmente nas raparigas”, elenca Luís Fernandes.

O combate e a prevenção

Os especialistas pedem regulamentação e empenho nacional no combate ao bullying e ao cyberbullying.

“É preciso regulamentar, mesmo na própria escola, dizendo claramente no seu regulamento que tem tolerância zero para estes comportamentos. É preciso que sejam estabelecidos procedimentos e regras para agir em caso de uma denúncia. Não precisa de ser o ministério a dizer ‘as regras são estas’. A própria escola pode definir essas regras e esses procedimentos. No caso do cyberbullying, era importante também que as plataformas assumissem as suas responsabilidades e, dentro da família, também tem de haver a parte reguladora, no sentido de definir regras de utilização de dispositivos móveis”, reclamam Tito de Morais e Cristiane Miranda.

“É preciso integrar estas questões em termos de currículo escolar. A maior parte das escolas abordam estas questões numa ótica de bate e foge. As escolas têm de começar a adotar programas para fazer face a estes fenómenos”, destaca Tito de Morais.

Luís Fernandes, psicólogo escolar numa escola do distrito de Beja, insiste na importância de um diagnóstico nacional para combater e prevenir o fenómeno, ironizando que “o que não está contabilizado não existe”.

O especialista pede também que seja criada uma linha de denúncia nacional de casos de bullying, “como existe noutros países”. Fala da importância do desenvolvimento de uma sociedade “mais empática”, um trabalho que “tem de ser feito pelas escolas, com campanhas e ações de sensibilização”, mas também pelas famílias.

“A prevenção e o combate ao bullying são diários e nunca estão terminados. Não conseguiremos nunca acabar com o bullying no mundo inteiro. Mas conseguimos diminuir o impacto e trabalhar numa sociedade mais empática, em que cada um seja mais capaz de se colocar no lugar do outro”, remata.

Cristiane Miranda destaca ainda o “papel fundamental” dos assistentes operacionais, sublinhando que, muitas vezes, são eles quem estão mais próximos dos alunos, de quem recebem as primeiras queixas e os principais desabafos.

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