Violência contra professores, mas também a polícias, militares, bombeiros, médicos, juízes, entre outros funcionários públicos passa a ser crime público. Deixa de ser necessária queixa da vítima para se avançar com um processo judicial. A Lei que também aumenta as penas entra em vigor, esta sexta-feira. Quem representa os professores, congratula-se. Porque se a vergonha é muita, a falta de acolhimento, por parte das direções das escolas, garantem, é ainda maior
Chamemos-lhe Lurdes. Não quer ser identificada, nem quer fornecer qualquer pormenor que possam identificar o aluno. O testemunho é enviado por escrito e sem direto a perguntas.
Lurdes é quadro de agrupamento e “quase em fim de carreira”. Também ela andou “com a casa às costas” e lecionou em mais de uma dúzia de escolas em várias regiões do país e “com diversos contextos socioeconómicos”. Nunca pensou que, no fim da sua vida como docente fosse agredida por um aluno.
“Fui vítima de agressão física, de um mata-leão, em plena sala de aula, por um aluno, numa escola do Grande Porto”, escreve com a cadência de quem ainda precisa de acreditar no que lhe aconteceu.
Não sabemos que idade tinha o aluno na altura, Porque Lurdes teme que isso ajude a identificá-lo e a identificá-la a ela. Mas é com mágoa que acrescenta: “Dei conhecimento à direção do agrupamento, pessoalmente. No entanto, a mesma, não agiu nem tomou qualquer medida, nem apresentou queixa. Só agiu, depois de eu fazer participação criminal junto do Ministério Público. Apenas instaurou o processo disciplinar, tendo sido aplicada uma suspensão de 12 dias [ao aluno]”.
O processo seguiu a via judicial possível. “Como se trata de um menor, o processo correu termos no âmbito do processo tutelar educativo. O tribunal aplicou ao menor uma medida tutelar de internamento em centro educativo em regime aberto, por oito meses (o Ministério Público pedia 12 meses). O aluno recorreu da decisão, mas, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão”, relata Lurdes.
Se a decisão deixou Lurdes conformada, a resposta surge numa citação que faz de Souto de Moura: “mostra-se tão irrealista considerar o menor irresponsável pelos seus atos, como ignorar o facto de a sua personalidade estar em formação”.
Mas não é a Justiça e a sua atuação que deixam Lurdes mais triste. O que ainda lhe provoca um nó na garganta, enquanto escreve este testemunho, é a falta de acolhimento que sentiu na escola onde aluno, mas também professores se deviam sentir seguros. “Porque não são responsabilizados os diretores das escolas pela omissão, encobrimento e silêncio da violência nas escolas? Porque se esconde da comunidade e da comunicação social as agressões aos professores, funcionários e agressões entre alunos? Porque se esconde que em algumas escolas há consumo de produtos ilícitos? Por que razão, qualquer pessoa entra em algumas escolas sem qualquer controlo?”, questiona, assim mesmo, de uma assentada.
Mais de metade dos professores dizem já terem sido agredidos por alunos
Não há números oficiais de agressões a professores. Mas, em outubro do ano passado, o movimento cívico de professores Missão Escola Pública (MEP) revelou os resultados de um inquérito que fez junto de 1368 escolas e deu conta de que 55% dos professores admitiam já terem sido agredidos física ou verbalmente pelos alunos. Os dados foram tornados públicos e enviados ao Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI). Até agora, o grupo não foi chamado à Infante Santo para falar destes números e das suas eivindicações.
“A indisciplina é um dos fatores que mais perturbam os professores no seu desempenho e no seu bem-estar. Todos os dias, nas salas de professores ou em reuniões formais ouvimos relatos ou desabafos de professores que foram agredidos física e verbalmente por alunos”, lamentava, na altura, Cristina Mota, porta-voz do MEP, em declarações à CNN Portugal.
Noutro inquérito realizado junto de todo o país, entre 13 e 26 de janeiro deste ano, em que o MEP obteve 2.529 respostas, uma “amostra, representativa de várias faixas etárias, regiões geográficas e grupos de recrutamento”, são revelados dados no mínimo inquietantes. Pelo menos 59% dos professores ouvidos revelam já se terem sentido vítimas de bullying no exercício da sua profissão. Quinze por cento admitem mesmo já terem estado de baixa médica por causa do bullying que sofreram enquanto professores.
Apenas 18% dos inquiridos revelam ter reportado os incidentes à Escola Segura ou a qualquer outra autoridade. A ausência de denúncia, garante o movimento, deve-se ao sentimento de desamparo e de falta de apoio institucional sentido pelos docentes. “O estudo revela também que, embora a maioria dos professores reconheça o impacto do bullying no seu bem-estar e saúde mental, 70% dos docentes afirmaram que não existem medidas eficazes por parte das instituições para lidar com estas questões, o que aumenta o cansaço e a frustração profissional”, nota o movimento Missão Escola Pública.
Crime público e penas mais pesadas
Mas alguma coisa parece estar a mudar. As penas para quem agredir professores vão agravar-se já a partir deste 18 de abril, com a entrada em vigor da nova lei que protege os docentes, mas também a polícias, militares, bombeiros, médicos, juízes, entre outros funcionários públicos. As agressões a profissionais passam, a partir desta sexta-feira a ser crime público.
“Esta foi uma das lutas do Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE), que batalhou por este reconhecimento”, congratula-se o SIPE.
“A nossa petição solicitava que a agressão aos docentes fosse considerada crime público e que houvesse um agravamento das penas para os agressores. Agora, vai ser aplicado exatamente o pedido da nossa petição. É uma grande vitória de todos os educadores e professores. O respeito pela dignidade do ser humano, da pessoa mais velha, do professor, deve fazer parte da cultura da sociedade. Os nossos atos têm de ter consequências e a violência não pode ficar impune. Por isso, consideramos que foi uma vitória de todos, de toda a sociedade. Foi uma grande caminhada, mas vale sempre a pena lutar”, afirma Júlia Azevedo, presidente do SIPE.
O crime de agressão passa a ter penas mais pesadas - de um a cinco anos - e nos casos de violência, ameaças graves e ofensas à integridade física, a pena poderá chegar aos oito anos. O lançamento de projéteis contra carros de docentes poderá dar origem a uma condenação de prisão de dois anos ou a uma multa até 240 dias.
A nova lei determina, igualmente, a isenção de custas judiciais por parte do agredido e mesmo na ausência de uma queixa da vítima poderá ser aberto um inquérito, porque se trata de um crime público.
“Empurrou-me. Chamou-me nomes. Disse que eu estava maluca”
Isabel Silva é professora numa escola do distrito de Setúbal. Também ela foi agredida por um aluno, que estava, na altura em processo de transição de género. Isabel acredita que a medicação a que o jovem estava a ser sujeita terá tido alguma responsabilidade.
“Na altura em que isto aconteceu, ainda estava nos registos com nome de rapariga. À saída de uma aula, envolveu-se numa discussão muito acesa com um colega. Pedi-lhe que saísse da sala e que o colega ficasse. Ficou muito transtornado e empurrou-me. Eu reagi e disse-lhe que não lhe admitia que me empurrasse e que lhe exigia respeito. Continuou a ameaçar-me e foi a namorada que intercedeu e pediu que parasse. Continuou a ameaçar o colega e disse-lhe que ‘olha que eu dou-te um tiro nos cornos’”, relata, assim, a cru.
“Foi uma outra professora que veio de outra sala que veio em meu auxílio. Mandou todos os alunos saírem da sala, incluindo a namorada dele e ele empurrou a minha colega e gritou-lhe ‘na minha mulher ninguém manda’”, acrescenta.
A direção da escola foi chamada à sala e agressões verbais continuaram: “Chamou-me nomes. Disse que eu estava maluca”. “Quando o vice-diretor me perguntou o que se passava, eu contei-lhe e referi-me a ele com o nome que constava dos registos, que era ainda de rapariga, e ele ficou ainda mais transtornado. Chamou-me burra e que eu ainda não tinha percebido que era um rapaz”, relata.
Isabel faz questão de frisar que não tem qualquer preconceito quanto a questões de identidade ou de transição de género. “Só me referi ao nome de rapariga, porque era o nome que constava nos registos da escola”, garante.
As agressões físicas e verbais a Isabel e à colega não tiveram qualquer consequência. Isabel teve de continuar a dar aulas ao jovem. “Entrava na minha sala, colocava a mochila em cima de mesa, não tirava material nenhum e ficava ali sentado. Sempre com olhar desafiador. Deixou de recolher o meu material, nem tocava nas folhas das fichas que eu deixava em cima da mesa para os alunos resolverem”, relata.
Só três meses depois, quando o jovem agrediu a namorada é que houve consequências. “Foi uma agressão feia. Todos os que a tentaram separá-lo da namorada, funcionários, professores… tiveram que isolar a namorada noutra sala e fechar a porta. Desta vez, teve um processo disciplinar, acabou por ficar suspenso duas semanas e foi obrigado a mudar de turma, para não conviver com a namorada. Mas nunca mais o vi. Presumo que tenha mudado de escola”, conta.
Também Isabel sente que se expôs diante da direção da escola “para nada”: “O que eu notei foi a tentativa de arranjar uma desculpa para o comportamento do aluno”.
“Gosto muito da escola, gosto muito dos colegas com quem trabalho. Sinto-me bem na escola. Mas se me voltar a acontecer uma situação destas, saio da escola e vou procurar as autoridades”, sublinha.
“A mãe já sabe como é que eu sou”
Eduarda Raposo criou, no ano letivo de 2017/2018, um gabinete contra a indisciplina na Escola Secundária do Pinhal Novo. É uma espécie de mediadora de conflitos. Diz que as situações mais comuns são mesmo os conflitos entre alunos. “Com professores, a violência física é rara. É mais verbal. Aí sim, há bastantes casos”, admite.
Eduarda está convencida que a culpa da indisciplina e da falta de visão de autoridade do professor não é só da escola. A sociedade tem um contributo muito forte. “Ainda agora houve um miúdo que se recusava a sair da sala, a turma estava estarrecida e os dois professores que estavam na sala, dois docentes muito jovens, estavam estarrecidos. Porque todos achavam que ele ia bater nos professores. Eles vão para o Gabinete contra a Indisciplina. E normalmente, comunicamos logo aos encarregados de educação. A mãe nem sequer tinha telemóvel e o padrasto não atendeu. Ele diz que, em casa, ‘a mãe já sabe como é que eu sou’”, recorda.
Sem querer “desculpar o indesculpável”, Eduarda sublinha que “a maior parte destes miúdos sofrem de abandono paternal. Abandono do pai”. “E não sabem falar sobre isso. Não há psicólogo que lhes valha, porque eles não sabem falar sobre isso. São todos meninos que precisam de ajuda. É muito raro não serem… muitos têm pais muito malformados…”, analisa Eduarda.
“A grande maioria agradece que sejamos céleres em comunicar a ocorrência. Há uma parte importante, que é um clássico, que é ‘o meu filho nunca mente’. Essa menor parte é a dos miúdos mais problemáticos. Há miúdos que entram na escola e nunca vão as aulas. Vagueiam pelos corredores, vão para o bar… e nós temos de andar à procura deles e para os levar para as salas. E há pais que acham isso normal”, conta a professora.
Eduarda Raposo garante ainda que “a indisciplina sempre aumentou nas escolas. As pessoas é que deixaram de participar a quem de direito”.