Milhares de alunos e professores com problemas nos kits digitais

7 nov, 08:00
Criança no computador (foto Ryutaro Tsukata/Pexels)

Há pais indignados, alunos que não conseguem fazer trabalhos de casa, professores que não conseguem cumprir planos de aula e docentes que não conseguem trabalhar em casa. No início do ano letivo, o Governo deu ordem às escolas para recolher os hotspots dos professores e deu continuidade à medida do anterior executivo de restringir a atribuição de hotspots a apenas alguns alunos

O filho de Ana Isabel Cabrita tem usado “a Internet de casa” para as pesquisas e para os trabalhos que os professores mandam fazer fora do horário escolar. Por isso, só há cerca de três semanas se apercebeu que estava sem acesso à Internet no hotspot que lhe tinha sido fornecido no ano anterior, quando lhe entregaram o kit digital, disponibilizado pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI).

“Uma professora pediu para levar o computador. Na véspera, tentámos ligar o computador com a ligação ao hotspot e percebemos que não tinha Internet. Fui à secretaria no dia seguinte e perguntaram-me se ele tinha escalão e mostraram-me um documento de meados de agosto que dizia que só os alunos que tinham escalão é que tinham acesso à Internet”, conta Ana Isabel, em declarações à CNN Portugal.

O filho de Ana Isabel apercebeu-se da falta de material em casa, mas teve colegas que só deram conta em plena sala de aula, quando a professora os mandou fazer um trabalho que exigia conectividade nos computadores e que a própria rede da escola não era capaz de suportar. “O que a professora na altura me disse é que nem os próprios professores têm acesso à Internet da escola, porque a rede WiFi é muito fraca. Essa professora, quando usa Internet nas aulas, é com acesso à própria Internet”, acrescenta a encarregada de educação.

No início deste ano letivo, as escolas foram confrontadas com uma ordem para pedirem a devolução dos hotspots de Internet aos professores. Quanto aos alunos, o anterior governo já tinha decidido, em novembro de 2023, que só os alunos com escalão de ação social escolar e, portanto, mais carenciados, continuariam a ver incluído no kit digital uma ligação à Internet. O atual Executivo deu seguimento à medida e acrescentou à lista de alunos prioritários para receberem a ligação móvel à Internet os “alunos abrangidos pelo projeto-piloto ‘Manuais Digitais’ e os “alunos que realizem provas em suporte digital”.

As especificações constam da resolução de Conselho de Ministros 103-C/2024, de 16 de agosto deste ano, que autoriza “a Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) a realizar a despesa com a aquisição de serviços de conectividade, durante os meses de outubro a dezembro de 2024 e os meses de janeiro a junho de 2025, correspondentes ao ano letivo de 2024/2025, até ao montante máximo de € 31.526.033,40”, mais IVA. O mesmo documento prevê ainda que, “em cada sala de aula”, seja disponibilizado “um dispositivo de conectividade nos ensinos básico e secundário dos estabelecimentos de ensino públicos”.

"Medida contraditória" e "retrocesso"

Contudo, se há escolas onde a intervenção com vista à melhoria da rede está a ser feita, há ainda muitas que não viram a cor aos novos dispositivos. “Ainda que esteja presente na resolução do Conselho de Ministros, não está a ser aplicado em todas as escolas. É uma medida que não está a ser equitativa em todas as escolas. Há escolas onde os professores continuam a usufruir do hotspot individual, outras não. Há escolas que já foram modernizadas nesta matéria e outras não”, conta Cristina Mota, porta-voz do movimento cívico Missão Escola Pública (MEP) e professora de Matemática na Escola Secundária do Pinhal Novo.

Enquanto professora e diretora de turma, Cristina Mota tem sido confrontada com a indignação de muitos pais e com a frustração de colegas que não conseguem cumprir o planeamento: “Na disciplina de Matemática, por exemplo, entraram em vigor este ano, as novas aprendizagens essenciais. Há aulas previstas para fazer um projeto com recurso à Internet em sala de aula. Muitos professores não estão a conseguir cumprir as planificações porque não conseguem colocar todos os alunos a aceder à Internet”.

O MEP fala em “retrocesso de procedimentos” e “medida contraditória” em relação ao discurso do ministro Fernando Alexandre de avançar no processo de digitalização das escolas. “Não se compreende. Se o digital dependeria de verbas do PRR e se continua a haver verbas do PRR, porque é que há este retrocesso?”, questiona ainda Cristina Mota.

"Desigualdades"

Ana Isabel Cabrita considera também que a medida de atribuir a ligação à Internet apenas a alguns alunos é “injusta” e potencia “desigualdades”: “Na turma do meu filho, os alunos com ação social escolar conseguem fazer os trabalhos. O meu filho e os outros que não têm escalão não conseguem”. “Não é justo pedirem ao meu filho para levar o computador para a escola e ele não poder fazer os trabalhos por falta de Internet”, contesta.

Nuno Reis é diretor do Agrupamento de Escolas de Portela e Moscavide e alerta para outra “desigualdade” acentuada pela medida. “Somos um agrupamento com escolas carenciadas de professores e temos muitos professores deslocados. Chegam aqui, alugam um quarto ou uma casa e não vão fazer mais um contrato de Internet. A maioria já tem de arcar com as despesas da casa que deixou na terra de origem. Estes professores não têm como trabalhar em casa”, nota.

“Esta nova lógica do ministério diz que a escola tem Internet e, para aceder à Internet, o professor vai à escola. Ora, os professores estariam mais concentrados e até mais confortáveis a trabalhar no seu quarto ou na sua casa, mas têm de ir para a escola, porque precisam de Internet para trabalhar e não têm”, acrescenta, rematando com a esperança de que “haja um recuo nessa medida”.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) concorda com a encarregada de Educação Ana Isabel e com o diretor Nuno e contesta o fim da ligação à Internet nos kits digitais da maioria dos alunos e dos professores. “Fora das exceções decretadas pelo Governo ficarão milhares de alunos que muitas vezes têm mais necessidades que muitos dos que usufruem de escalão de ação social escolar. Espero que o Governo esteja a trabalhar para que os outros alunos tenham Internet em suas casas. E também que todos os professores possam ter acesso à Internet fora das escolas, incluindo os professores deslocados”, sublinha.

Muitos alunos sem computador

Mariana Carvalho, presidente da Confederação das Associações de Pais (Confap) sublinha que não tem recebido queixas sobre o fim da ligação à Internet nos kits digitais e deposita confiança na palavra do Governo de que o processo de modernização da rede nas escolas estaria completo “em breve”. Mas alerta para o facto de muitos alunos não terem sequer acesso ao kit digital. “Há muitos casso em que o kit digital não existe. Há alunos do primeiro ciclo que entregam o kit no final do ciclo ou cujo computador avariou e não há kits disponíveis para lhes atribuir”, denuncia, acrescentando que está prevista uma reunião com o MECI para debater especificamente este assunto.

À semelhança da representante dos pais, também Filinto Lima destaca que há falta de computadores funcionais para atribuir aos alunos e que, em contrapartida, as escolas se veem a braços com centenas de computadores avariados que não podem ser usados. “Às vezes são avarias fáceis de resolver e que seriam muito mais baratas de reparar se isso fosse feito dentro da escola. Temos de insistir na ideia de as escolas poderem ter técnicos para fazer a manutenção deste material digital”, sublinha o dirigente escolar.

A CNN Portugal contactou o Ministério da Educação para pedir esclarecimentos sobre a recolha de hotspots de professores e questionar se o fim da ligação à internet nos kits digitais seria para manter, mesmo nas escolas que ainda não foram intervencionadas. Mas, até ao momento da publicação deste artigo, não obteve resposta.

Educação

Mais Educação

Patrocinados