Com cada vez mais alunos migrantes, as escolas públicas debatem-se com questões práticas como permitir ou não determinada indumentária ou proporcionar ou não determinado tipo de alimentação. Mas há quem sublinhe que o acolhimento de estrangeiros no sistema de ensino em Portugal vai muito além do respeito pelas diferenças culturais e que ainda há um caminho longo a percorrer
Chamemos-lhe “Yasmin”. Alberto Veronesi, agora diretor do Agrupamento de Escolas de Santa Maria dos Olivais, em Lisboa, recorda com carinho a pequena “Yasmin” que lhe entrava sala adentro todos os dias, desde o primeiro ano e de quem foi professor até final do ano letivo que agora termina. Com quase nove anos e a frequentar o terceiro ano, “Yasmin” já não se debatia com a língua portuguesa como no início, mas continuava a deparar-se diariamente com outros dilemas.
“A Câmara Municipal proporcionava natação aos alunos, mas ela não podia fazer, porque não podia usar fato de banho. Ainda tentou ir uma vez, com uma roupa que lhe cobria o corpo todo, mas não deixaram porque não podia entrar na piscina com roupa normal. A ginástica fazia com calças e com a túnica por cima e com hijab colocado. A meio lá conseguimos que ela tirasse, porque notávamos que era incómodo, mas ela dizia logo que a mãe não podia saber”, recorda o professor do 1º ciclo.
“Sentia-se que ela gostaria de se aculturar mais. Mas sentia que a família não permitia. No refeitório, por exemplo, muitas vezes só comia arroz ou os hidratos, porque não podia comer carne e não gostava da alternativa que lhe proporcionávamos”, acrescenta.
Antes como professor e agora como diretor escolar, Alberto Veronesi depara-se diariamente com questões relacionadas com o acolhimento de alunos migrantes, que “são cada vez mais” e conclui que “estamos muito pouco capazes de receber estes miúdos”.
"Começar a casa pelo telhado"
Desde o ano letivo de 2020/2021, o número de alunos migrantes nas escolas públicas portuguesas aumentou 71%. De acordo com números do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), no ano letivo que agora terminou, os alunos estrangeiros eram quase 13% da população escolar. Há escolas com mais de três dezenas de nacionalidades. A realidade da imigração em Portugal também se alterou, com mais entradas de países asiáticos, como Nepal, Paquistão ou Bangladesh. Uma realidade que se pode revelar “enriquecedora”, mas que pode também trazer problemas de acolhimento e adaptação.
“Para já, não sinto grandes diferenças e nem sinto grande preocupação das escolas em relação a essa matéria. Mas vão acentuar-se à medida que chegarem cada vez mais jovens de outras culturas”, sublinha Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), defendendo que “é bom que o assunto seja discutido amplamente dentro da comunidade escolar”, para melhor se acolher os alunos migrantes.
Muitos não falam português e as aulas de Português Língua Não Materna (PLNM) não existem ou são, na maioria das vezes, insuficientes. “Estes alunos deviam estar seis meses a um ano com PLNM para poderem comunicar minimamente. Pensar nestas questões práticas de vestuário e alimentação, sem facilitar a questão da língua é começar pelo telhado. Mas é preciso haver vontade da tutela. Devia haver um crédito de horas para PLNM a nível nacional. Pode-se fingir e até fazer relatórios bonitos. Mas sabemos que na prática isso não funciona”, considera Veronesi.
"Inclusão deve ter sempre lugar"
Mas, em causa, estão diferenças culturais que vão muito além da língua. Há muitos casos de jovens como o da pequena “Yasmin”, em que as famílias não permitem o uso de equipamento para as aulas de Educação Física.
“A inclusão deverá ter sempre lugar. Seja em que circunstâncias forem. Seja por igualdade de género, religião ou cultura”, começa por ressalvar Cristina Mota, porta-voz do movimento cívico de professores Missão Escola Pública.
“Já nos chegaram informações, através de outros professores, em que algumas alunas que usavam niqab recusaram identificar-se ao portão da escola. Também nos chegou o caso de um aluno, numa escola da Grande Lisboa, que ocultou os fones no turbante durante os exames nacionais. Também têm chegado relatos de colegas de Educação Física que têm alunas com algumas restrições de vestuário e os colegas têm cuidado de adaptar as atividades. Mas não há nenhum documento que dê orientações gerais como agir”, acrescenta.
Portugal sabe "acolher bem"
Na verdade, nem o estatuto do aluno, nem o Guia para a Inclusão de Alunos Migrantes em Meio Educativo, divulgado pela Direção Geral da Educação, trazem diretrizes para agir nestas circunstâncias respeitando as diferenças culturais e religiosas, sem colocar em causa a igualdade, a segurança e a comunicação. “Nem sempre se trata o mesmo assunto de forma igual, por não haver diretivas de forma central. São questões resolvidas pelo órgão de gestão da escola, que sabemos estar centrado na figura do diretor. E sabemos que dois diretores diferentes podem ter duas visões diferentes do mesmo assunto”, frisa Cristina Mota.
Khalid Jamal, conselheiro sénior da Comunidade Islâmica de Lisboa, garante que os portugueses têm sabido “acolher bem” os estudantes migrantes e que “a comunidade islâmica também tem sabido acomodar-se no seio da comunidade portuguesa e adaptar alguns dos seus hábitos àquele que é o modus vivendi da comunidade acolhedora”.
O responsável da Comunidade Islâmica de Lisboa sublinha que têm sido “muito poucos” e “sem expressão estatística” os casos de discriminação em meio escolar em Portugal. E, acrescenta, os que existem têm mais a ver “com a cor da pele” do que com aspetos religiosos ou culturais.
Também Khalid Jamal sublinha a necessidade de adaptação mútua. “Não sou contra a indumentária específica. Um véu não traz mal ao mundo se a pessoa achar que é indispensável à sua vivencia em sociedade e faz parte da sua personalidade. Mas não há que olhar para isto como um valor absoluto e, se estiver em causa um valor de segurança (uma situação em que não se consegue identificar uma aluna por causa do niqab), se estiver em causa a comunicação [uma situação em que a comunicação é dificultada por causa do uso do véu que tapa o rosto] ou o valor da igualdade (como o caso do aluno apanhado a cabular com os fones escondidos pelo turbante), o valor religioso e da indumentária tem de ceder, porque está em causa um valor comum maior”, explica.
“E não tem de passar necessariamente por proibir. Uma jovem que use o hijab pode ser revistada antes de um exame por uma professora, salvaguardando a dignidade da pessoa”, acrescenta.
"Cautela" e "prudência"
Khalid Jamal e Filinto Lima estão de acordo na necessidade de “prevenir para não ter de remediar” e colocar por escrito algumas regras que devem ser comuns a todas as escolas. “Deve haver alturas em que, quando sentimos que a malha da rede escolar está a mudar, devemos registar essas mudanças. Se quem presta o serviço - as escolas, as autarquias, o ministério - tiverem boa vontade e a capacidade de adaptação for mútua, não haverá problemas. É preciso é criar regras, estar sensíveis e atentos”, diz o representante da comunidade islâmica.
“Neste momento, há um regulamento interno em cada escola, que se adapta às circunstâncias. Tem de haver exceções e esses casos são exceções. São questões muito específicas e deviam ser discutidas dentro do Ministério da Educação. Devia haver diretivas e terá de haver alguma cautela e alguma prudência na aplicação de determinadas regras”, sublinha Filinto Lima.
Cristina Mota também defende que “para garantir igualdade, equidade e inclusão, convém termos diretrizes”, acrescentando que deveria “ser elaborado um diploma, que viesse refletido no estatuto do aluno e nos regulamentos das escolas”.
Já Alberto Veronesi considera que os professores têm sabido lidar com as diferentes situações que se deparam. Consideram que é necessária uma “maior sensibilização” da comunidade, “mas mais guiões, não muito obrigada”. “Não perdemos nada em sermos mais sensíveis e acomodar melhor estas crianças. Temos todos muito boa vontade, mas depois faltam-nos os meios”, lamenta.
“Chegam ao fim do ano e acabam por passar, porque depois lhes são aplicadas as diferentes medidas de recuperação universais. Mas assim não os estamos a ajudar”, remata o docente e diretor escolar.
A alimentação e o caso de Odivelas
A alimentação é outro dos problemas práticos de integração de muitos jovens migrantes nas escolas públicas nacionais. Os muçulmanos, por exemplo, não comem carne de animais abatidos pelos métodos tradicionais. Khalid Jamal recorda que ele próprio, nos tempos de estudante, só comia carne quando a mãe lhe mandava o almoço de casa.
Os muçulmanos só comem carne de animais abatidos segundo o método halal (que significa lícito, em árabe). “É um conjunto de regras e preceitos que a religião islâmica observa no abate de animais com vista ao consumo da sua carne. O islão é contra o sofrimento de animais, seres humanos e plantas. Quando abatemos um animal para consumo humano, fazemo-lo em nome de Deus, de forma manual, num golpe na jugular, causando morte imediata, sem sofrimento e sacralizando esse ato, recitando algo como ‘em nome de Deus e para minha alimentação eu sacrifico este animal’”, explica o dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa.
Khalid Jamal reconhece que a dieta halal é difícil de aplicar em muitas escolas: “tem a ver com a lei da oferta e da procura… se houver um jovem muçulmano nas escolas é mais difícil essa adaptação. Se houver vários é mais fácil”. O responsável reconhece também que, “às vezes, há disponibilidade de benefícios e as próprias comunidades desconhecem”.
E dá como exemplo o município de Odivelas, onde “a comunidade islâmica já tem uma deita halal na sua rede de escolas, com um pedido prévio e observando um conjunto de procedimentos”.
O exemplo europeu
Há cerca de um ano, a França proibiu o uso da abaya (a túnica islâmica que cobre todo o corpo, deixando apenas o rosto à vista) nas escolas. "Não será mais possível usar abaya na escola", declarava, em agosto do ano passado, Gabriel Attal, numa entrevista ao canal TF1, considerando que a indumentária vai de encontro às normas estritas de laicidade no ensino francês.
"Quando o aluno entra numa sala de aula, não se deve poder identificar a sua religião ao olhar para ele", justificava.
Já em março deste ano, o diretor do liceu Maurice Ravel, em Paris, renunciou ao cargo depois de ter sido alvo de ameaças de morte nas redes sociais, por ter pedido a três alunas que não usassem o véu islâmico na cabeça enquanto estivessem na escola. O pedido não foi bem aceite por uma das estudantes, que rejeitou retirar o véu. A jovem apresentou queixa contra o diretor.
Em maio de 2019, o Parlamento austríaco aprovou uma lei que proíbe meninas muçulmanas com idades entre seis e dez anos de usar o véu nas escolas. A principal associação islâmica do país considerou a medida "discriminatória", até porque o kipá (usado por judeus) e o patka (usado por jovens do sikhismo) não tinham sido proibidos.
Em 2020, um tribunal em Hamburgo autorizou uma jovem de 16 anos a continuar a usar o niqab durante as aulas. A mãe da adolescente entrou com uma ação na Justiça depois de o colégio proibir a menina de frequentar a escola com o véu islâmico que cobre o rosto, deixando apenas os olhos de fora.
Filinto Lima olha para estes exemplos e diz que devemos tirar deles ensinamentos. “Devemos aprender com aquilo que se passa noutros países, como França. Aprender com o que de menos positivo se passa ou se passou lá”, sublinha o representante dos diretores.
Khalid Jamal olha para o futuro e vê ainda muito caminho a percorrer: “É um caminho que se vai fazendo com avanços e recuos. É uma aprendizagem de ambas as partes que se vai fazendo ao longo do tempo”.